Dívida do Estado (e os seus credores)

Na nota de análise das contas públicas de 2016 o Conselho das Finanças Públicas tem um excelente quadro com a decomposição da dívida pública por sector financiador. É uma grande ideia. Há algum tempo que andava às voltas dos números do Banco de Portugal para perceber os contributos relativos de cada fonte de financiamento, mas nunca consegui saber ao certo como é que as aquisições do BCE são registadas nas estatísticas monetárias e financeiras. O resultado é o seguinte.

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Se bem percebo este quadro, cada barra mostra mostra a dívida pública de cada ano, dividida por sector financiador: a composição do stock em termos de quem o detém. Ora, é possível pegar nestas barras, calcular as diferenças de ano para ano e assim obter os fluxos correspondentes.

E isto permite-nos, se eu não tiver metido o pé na poça algures por aqui, perceber quem está a ‘entrar’ ou a ‘sair’ do negócio da dívida pública portuguesa. E, pelas minhas contas, o resultado é mais ou menos o seguinte.

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Meter as mãos na massa

Há uns anos comecei a brincar com simuladores de dívida pública. A minha primeira experiência constava do menu habitual: três variáveis exógenas (saldo primário, taxa de juro e crescimento do PIB) que se combinavam entre si para produzir um caminho dinâmico para a dívida pública. Mas o modelo rapidamente cresceu até se tornar num enorme Frankenstein, com juros endógenos, multiplicadores variáveis, prémios de risco e curvas de Phillips pelo meio. A versão final tinha mais de 15 inputs, e permitia gerar dinâmicas muito interessantes.

Além do mais, era divertido. O problema é que, apesar de poder falar sobre as lições que extraí do uso desses modelos, não tinha forma de ajudar o leitor a fazer o mesmo tipo de aprendizagem acompanhada. Por muito engraçado que seja ver as simulações de terceiros, há poucas coisas que substituam a experiência de operar um simulador com as próprias mãos.

O programa Fronteiras XXI, feito pela FFMS e pela RTP, deu-me a possibilidade de fazer uma versão pública desta ferramenta. Está aqui, para quem tiver interesse.

O modelo segue as regras convencionais, mas inclui duas extras que não costumam estar disponíveis: permite ao utilizador incluir (ou ignorar) os custos de longo prazo do envelhecimento da população e dá-lhe a possibilidade de fazer variar o multiplicador da consolidação orçamental. Esta opção permite, por exemplo, perceber em que medida é que as previsões podem sair furadas se quem está ao leme do Ministério das Finanças tiver uma ideia errada do impacto que a consolidação das contas tem na economia – um tópico que há uns anos gerou uma pequena guerra na academia.

Se quiserem uma leitura guiada do simulador, também podem seguir para o blogue da FFMS, onde deixei umas pistas para os curiosos. Boas leituras.

 

Os juros descem há 30 anos (e ninguém deu por ela)

A descida das taxas de juro é um dos factos económicos mais extraordinários da história recente dos países desenvolvidos. E é extraordinária por duas razões – ou três, se lerem até ao fim.

Primeiro, por causa da sua persistência. Ali em cima associei a descida dos juros à “história recente” , mas a verdade é que não há nada de recente neste movimento. As taxas de juro estão a descer sem parar praticamente desde os anos 80, de forma mais ou menos transversal1.

Segundo, porque este movimento apenas em parte reflecte a descida da inflação dos anos 80 para cá. Em teoria – e, felizmente, também na prática – as taxas de juro são tanto maiores quanto mais alta for a inflação prevalecente, de forma a compensar os aforradores pela perda de valor do empréstimo (o chamado efeito Fisher). E, como a inflação tem descido de há umas décadas para cá, é pelo menos plausível que uma coisa explique a outra.

Mas não. As taxas de juro reais – isto é, as taxas de juro nominais menos a taxa de inflação – também estão a descer. Da mesma forma persistente, ritmada e transversal que as taxas nominais. A inflação é sem dúvida um dos culpados; mas, neste crime, continua algum cúmplice lá fora à solta.

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Ok, agora a parte engraçada – e aqui chegamos ao terceiro ponto. Apesar de isto não ser novo, parece que ninguém deu por ela ao longo dos últimos 30 anos. Ou, se deu, não percebeu muito bem que era mais estrutural do que transitório.

E isto nota-se forma muito clara no gráfico seguinte, retirado de uma apresentação de Jason Furman. O que se vê na linha azul é a incessante descida dos juros desde 1995; e o que se vê nas outras linhas é a crença (errada) do mercado de que as taxas acabarão, a prazo, por convergir para os valores passados.

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Estas taxas são nominais – mas, para o período de tempo considerado, em que não houve variações de inflação, isso provavelmente interessa pouco. O que vamos aqui é o mercado a prever uma taxa de juro real constante. E a acertar sistematicamente ao lado (ou, neste caso, por cima).

Porquê? De onde vem esta bizarria? A minha suspeita é que Larry Summers pode ter razão. (E, se tiverem tempo para perceber porquê, não deixem de ler o melhor estudo que eu conheço sobre o assunto – e, já agora, de dar uma vista de olhos nos comentários de Ben Bernanke). Mas gostava de ouvir mais gente a falar disto.

1 Para o período anterior aos anos 80 não deve ser fácil usar o mercados financeiros para retirar grandes, dada a repressão financeira que vigorava na altura.

Portugal pagava mesmo o dobro de juros sem a ajuda do BCE?

O Banco de Portugal fez um estudo (Boletim Económico, página 33) acerca do impacto financeiro das medidas não convencionais do BCE (UMP, na sigla inglesa). A análise teve grande impacto na imprensa, com vários jornais a puxarem para título (1, 2, 3) a conclusão que também me chamou mais a atenção: sem as ‘ajudas’ do BCE, Portugal pagaria cerca de 5% na emissão de dívida a 10 anos – mais ou menos o dobro da taxa que paga hoje.

Mas depois de ler o estudo confesso que fiquei com algumas dúvidas, seja acerca da conclusão, seja acerca das suas supostas implicações. Deixo aqui algumas. Quem quiser continuar a ler, prossiga por sua conta e risco.

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«Não é a direcção – é o ritmo» (2)

A principal implicação do post anterior é que é possível, pelo menos em princípio, suavizar um pouco a trajectória de consolidação orçamental sem prejudicar muito a situação financeira no longo prazo.

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Quem aumentou mais a dívida pública?

Em altura de eleições são comuns os fact-checking às afirmações dos candidatos. É uma óptima prática, mas com algumas ratoeiras. A pior de todas é que pode focar as atenções em questões que, apesar de completamente factuais, são irrelevantes. Nestas circunstâncias, o dever de quem faz o fact-checking não é dizer que a afirmação está certa ou errada. É dizer que a questão está mal formulada.

E no vasto lote de perguntas que contornam olimpicamente a verdadeira questão de fundo a minha favorita é a eterna «quem aumentou mais a dívida pública»?

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Os esbanjadores que não o eram

Os posts que escrevi acerca do polémico artigo de Vítor Bento (1 e 2) geraram algumas reacções. Mas, para meu espanto, poucas referiram aquele que era, em minha opinião, o argumento mais radical (embora não o mais central): a ideia de que os países da Zona Euro, no seu conjunto, não reagiram de forma excessivamente pró-activa à crise económica de 2008.

Isto é um pouco surpreendente, porque mesmo os maiores críticos da austeridade costumam aceitar pacificamente que a política orçamental foi, em muitos casos, levada demasiado longe. E, de facto, é isto que aparece na maior parte dos números. Só mais recentemente, com a criação de métricas orçamentais mais apuradas, é que a ideia do excesso de voluntarismo começou a ser posta em causa. Que ninguém tenha disputado isto pareceu-me estranho.

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A importância dos cofres cheios

Qual é a importância de ter os cofres do Estado cheios de dinheiro? Depende muito das circunstâncias. Mas, na actual conjuntura, há óptimas razões para que o Estado português tenha muita cautela em relação ao futuro.

Primeiro, alguns números. O gráfico de baixo mostra os activos que as Administrações Públicas (AP) detêm sob a forma de depósito e numerário. Ao todo é mais de 14% do PIB, o suficiente para assegurar as necessidades de financiamento de 2015 e 2016 (ou quase: os números ainda não incorporam o pagamento antecipado ao FMI). Mesmo que nem todo o dinheiro seja mobilizável para este fim – as AP incluem entidades com autonomia para gerir as suas próprias disponibilidades financeiras -, não deixa de ser um valor impressionante.

1Mas esta reserva implica custos. Primeiro, porque o dinheiro aplicado em depósitos é, na verdade, proveniente de empréstimos (pelos quais o Estado tem de pagar juros). Segundo, porque uma parte dos activos está depositada no Banco Central, onde são remunerados a uma taxa… negativa. Só isto representa, segundo contas do EconomiaInfo, qualquer coisa como 40 milhões de euros.

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Soluções (realistas) para a Grécia

Nos últimos dias tornou-se comum dizer que a dívida da Grécia não é um problema. Apesar de a dívida pública ser gigante, as suas condições são óptimas, e portanto a reestruturação, na qual o novo Governo parece tão empenhado, é uma questão secundária. Infelizmente, temo que a situação seja um pouco mais complicada.

É óbvio que o fardo da dívida não é directamente proporcional ao montante de dívida. A justificação é simples, mas como nem toda a gente a percebe, repeti-la-ei aqui: ao contrário do que acontece com uma família, que tem um prazo máximo para amortizar a sua dívida, um Estado pode simplesmente refinanciá-la ad eternum, atirando para o futuro o momento em que terá de gerar excedentes orçamentais suficientes para de facto pagar a dívida.

Imagine-se, por exemplo, que uma família tem uma dívida de um milhão de euros à banca. O fardo da dívida é o montante de juros que tem de pagar mais o milhão de euros de capital que tem de amortizar no prazo previsto. Este fardo poderá contudo ser muito menor se ela puder repassar a amortização de capital para a sua descendência, assumindo apenas o pagamento de juros. Bom, é mais ou menos isto (e sublinho o mais ou menos) que acontece com um Estado.

Deste ponto de vista, para perceber o ónus que a dívida coloca aos gregos faz mais sentido olhar para as implicações que a dívida traz para o orçamento do que para o seu montante global. E o facto de a Grécia estar há cinco anos a financiar-se quase exclusivamente junto da Troika – que garante condições extraordinárias -, produz alguns resultados interessantes.

Sem Título

Sim, a Grécia está na parte superior da tabela, mas a diferença, objectivamente, não é significativa. Está lado a lado com os EUA, abaixo da Itália e Portugal e gasta pouco mais do que a Islândia, que chegou a ser o bastião de quem queria deixar a banca falir e pôr o sector financeiro na ordem. E estas contas deixaram de fora um outro factor relevante: uma parte dos juros pagos são indirectamente devolvidos à Grécia, via BCE. Para todos os efeitos, o fardo da dívida grega parece trivial, seja qual for o termo de comparação.

Ou talvez não seja. Repare-se que esta métrica, segundo a qual os juros são a medida apropriada do fardo da dívida, repousa no pressuposto implícito de que a totalidade da dívida é permanentemente refinanciada. Se a dívida tiver de ser paga, então o ónus da dívida são os juros mais a própria dívida. Se a dívida ter de ser parcialmente paga, então o ónus são os juros mais a fracção que tem de se abater. E , nesse caso, a imagem ali de cima deixa de contar a história toda.

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Dinâmica da dívida e opções de política

Via e-mail, um leitor coloca uma questão antiga: por que é que é precisamente nos países que pediram ajuda externa que a dívida pública mais tem crescido? Mais desconcertante ainda, por que é que isso só acontece após a chegada da Troika?

A resposta é simples, mas tem algumas nuances. E dá-me a oportunidade de falar acerca de uma questão que não abordei da última vez que escrevi sobre o assunto.

Comecemos pela aritmética da dívida. A dívida pública resulta do somatório de défices orçamentais. Se num determinado ano o défice dispara, a dívida acumula-se*. E essa acumulação prossegue ininterruptamente até que a origem do problema, o défice, seja por fim eliminada.

Claro que o crescimento do PIB pode reduzir o peso da dívida, através da sua ‘diluição’ num denominador maior. Mas se estivermos a falar de défices na casa dos 8 ou 9% do PIB, este efeito é, para todos os efeitos práticos, pouco relevante.

Como não é fácil eliminar um défice orçamental de um dia para o outro, basta que o défice atinja um valor anormalmente alto durante um ano t para que a dívida pública aumente na mesma medida e tenda a aumentar nos anos seguintes – pelo menos até que o défice atinja um nível que possa ser acomodado pelo crescimento natural do PIB. O crescimento da dívida é inevitável após o período ; a única incerteza é em relação à magnitude desse crescimento, que depende do grau de consolidação obtido atingir e da evolução do PIB.

Ora, foi precisamente a degradação da situação das contas públicas das economias periféricas (2008/2009) que provocou tanto o pedido de ajuda externa como as medidas de consolidação orçamental que se seguiram – os dois factores estão associados. Mas a causalidade implícita não é menos espúria do que a que ligapassadeiras a atropelamentos. Não é a presença das primeiras que estimula os segundos – pura e simplesmente as passadeiras tendem a ser colocadas nos sítios onde há mais atropelamentos**.

Dito isto, vale a pena discutir um ponto importante. As medidas de austeridade têm impacto na economia (o multiplicador), e esse impacto traduz-se não apenas num PIB menor mas também numa melhoria do défice inferior à que seria de esperar caso não houvesse este mecanismo de feedback.

Ora, para efeitos de avaliação de políticas públicas, o que queremos conhecer é exactamente a magnitude deste efeito. Não basta saber que se nada for feito a dívida pública sobe por inércia. Queremos saber qual a eficácia de uma medida de consolidação orçamental na redução do défice, de modo a poder comparar a trajectória da dívida que decorreria de não consolidar as contas com a trajectória que poderia ser obtida num cenário de consolidação das contas.

Para isso, é preciso fazer algumas contas. No caso que apresento em seguida, a economia ‘tipo’ começa com um défice de 3% que subitamente passa para 6,8%. Isto faz com que a dívida, que até aí estava mais ou menos estável, comece lentamente a crescer. Se nada for feito, a dívida entrará numa trajectória explosiva dentro de alguns anos.

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