O relatório trimestral do Banco de Portugal, publicado hoje, tem um estudo excelente acerca do impacto da política fiscal via impostos no crescimento do PIB: Efeitos macroeconómicos das alterações da legislação fiscal em Portugal.
O estudo é inovador porque utiliza uma abordagem diferente da habitual para identificar os choques fiscais. A metodologia típica, pelo menos desde Blanchard, consiste em analisar as séries de impostos e identificar como choques todos os períodos em que a receita cresce (ou cai) de uma forma que não é explicada pelo comportamento da actividade económica. Neste estudo, que segue uma linha que tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos (ver aqui e no Vox, por exemplo), os investigadores consultam documentos legislativos para identificar os momentos em que houve alterações fiscais efectivas – a chamada ‘abordagem narrativa’.
O principal resultado é que o multiplicador associado aos impostos é significativamente revisto em alta face aos valores consideravelmente conservadores a que os mesmos autores chegaram, utilizando a metodologia habitual (ver aqui). Estes resultados são robustos à introdução de uma série de controlos importantes, como a neutralização do ruído introduzido por choques de despesa. E um subproduto feliz deste estudo é a construção de uma série temporal com quase 20 anos para choques de impostos, algo que promete ser útil para os investigadores de política orçamental (sobretudo para um país, como Portugal, em que as alterações fiscais estão espalhadas por dezenas de diplomas desconexos, sem que haja uma base de dados uniforme).

Mas as conclusões dos economistas do Banco de Portugal referem outro ponto importante. Que passa relativamente despercebido no paper mas que tem relevância para outra discussão. É o seguinte (bolds meus):
A construção da série principal de choques parte do pressuposto de que o momento relevante para medir os efeitos macroeconómicos da tributação é o do seu pagamento. No entanto, se o comportamento dos consumidores fosse principalmente influenciado pelas suas expectativas quanto ao rendimento permanente, o momento relevante seria, ao invés, quando estes se apercebessem da alteração do seu rendimento disponível futuro. Neste caso, o seu comportamento modificar-se-ia logo no momento do anúncio credível da medida (…) Esta evidência reforça a hipótese de o produto responder às alterações fiscais no momento de implementação das mesmas. A resposta do PIB à série de choques de acordo com as obrigações fiscais, mantendo constante a série baseada no momento do pagamento, é inicialmente nula e torna-se positiva, embora ténue, após cerca de um ano. Como referido, a abordagem das obrigações fiscais é comparativamente mais adequada para medir os efeitos na economia que operam por via das expectativas. A evidência não é assim consistente com a teoria do rendimento permanente.
Este trecho (que omite, por questões de espaço, o processo através do qual os economistas chegaram a esta conclusão) quer simplesmente dizer que, na amostra considerada, alterações de impostos parecem ter um impacto positivo na economia sobretudo a partir do momento em que afectam de facto o rendimento disponível – mesmo que já sejam previamente conhecidas.
Esta conclusão é relevante para a questão do efectivo impacto da decisão do Tribunal Constitucional de impor a devolução dos subsídios. Recorde-se que aquando da publicação dos números do PIB para o segundo trimestre, pelo INE, houve um debate com algum alcance em relação à possibilidade de ter sido a devolução dos subsídios a empurrar a actividade.
Os principais argumentos estão neste post, e por isso farei apenas uma breve recapitulação: a) a decisão do TC, nos moldes em que o Governo a interpretou, levará a que o grosso do impacto da devolução dos subsídios se concentre no terceiro e no quarto trimestres; b) por esta razão, qualquer eventual efeito que a devolução possa ter no segundo trimestre só poderá actuar através da percepção de um aumento do rendimento permanente; c) a existência de consumidores com restrições de liquidez, que já gastam todo o seu rendimento disponível, encurta ainda mais o leque potencial de consumidores que pode (ou pôde), de facto, alisar o seu consumo no segundo trimestre.
Ora, as conclusões do Banco de Portugal mostram precisamente que é no momento de aumento do rendimento disponível – e não no momento em que esse aumento é conhecido – que a descida de impostos afecta a actividade económica. E, para todos os efeitos, uma devolução de subsídios é, em termos microeconómicos, largamente semelhante a uma redução de impostos sobre o rendimento (no caso do sector público, a diferença é mesmo meramente semântica). A confirmar-se esta conclusão, a decisão do TC deveria fazer-se sentir no terceiro trimestre.
O mesmo estudo refere, numa nota de rodapé, que há uma grande percentagem de rendimento sujeito a restrições de liquidez, e que esta restrição está positivamente relacionada com “a taxa de desemprego, facto que poderia levar a um aumento da parcela de rendimento sujeito a restrições de liquidez nos últimos anos” (página 80). Novamente, estas circunstâncias mitigariam o ‘efeito TC’ no segundo trimestre e amplificá-lo-iam no terceiro. Ou seja, o ‘choque’ de crescimento far-se-ia sentir no terceiro trimestre.
Os dados entretanto disponibilizados para o período Abril/Junho e Julho/Setembro ajudam a consolidar esta ideia. Tanto os indicadores objectivos de consumo privado como os mais introspectivos mostram que o segundo trimestre (a azul marinho) não marcou qualquer ruptura com o período precedente. Faz parte de uma recuperação que já estava em marcha anteriormente, e que terá prosseguido ao mesmo ritmo no período subsequente.

Registe-se, a propósito, que a ‘hipótese TC’ -mesmo assentando na hipótese (aparentemente não verificada) do rendimento permanente – sugeriria um perfil de recuperação completamente diferente. O consumo deveria crescer no segundo trimestre, devido à expectativa de maior rendimento anual, e estagnar a partir daí, uma vez que o ímpeto inicial já tinha surtido todo o seu efeito.
Como é óbvio, perceber por que é que o consumo recuperou apesar da manutenção da austeridade – como se a política orçamental tivesse perdido ‘tracção’ à procura agregada – não deixa, ainda assim, de ser uma questão interessante.
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