Consignar um imposto à dívida pública

Rui Rio propôs a criação de um imposto especial para pagar a dívida pública. A ideia surgiu inicialmente num debate, mas gerou tanta polémica que teve de ser clarificada numa entrevista publicada no Eco. E a explicação foi muito útil – não tanto por ajudar a suportar a ideia, mas por mostrar como nem tudo aquilo que nos vem à cabeça no momento deve ser verbalizado.

A ideia, pelo que se extrai da entrevista, é mais ou menos esta:

  • Criar um imposto consignado ao pagamento dos juros da dívida. Esta subida de impostos seria contrabalançada por uma descida de outros impostos, de magnitude semelhante. Seria portanto orçamentalmente neutra.
  • Daí em diante, o imposto seria automaticamente ajustado conforme os juros fossem mais ou menos onerosos. Mais dívida faria subir o imposto consignado, menos dívida fá-lo-ia descer. A esperança é que as pessoas passassem a «perceber melhor os efeitos nocivos de um défice público, porque, logo a partir do ano seguinte, o novo imposto subiria. Hoje acontece o mesmo, mas as pessoas não o percecionam de forma tão transparente»

Comecemos pelo primeiro ponto: a ideia de ‘consignar’ um imposto ao pagamento de uma despesa. Qual seria o efeito orçamental desta medida? Em que medida é que a consignação deste imposto reduziria a dívida?  A resposta é: em nada. O efeito era zero.

Isto pode ser óbvio para muita gente, mas não será para toda a gente, pelo que vale a pena perder algum tempo a explicar. Imagine o leitor que elenca todas as suas despesas mensais (casa, alimentação, etc.) numa coluna, e na coluna ao lado identifica todas as fontes de receita que as financiam (salário, subsídios, juros de aplicações, etc.). Conseguiria fazer um match entre cada um? O que é que financia o quê?

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O que fizeram os impostos pela Irlanda

Este é um tema sempre actual – quanto mais não seja porque mesmo quando sai do radar são as próprias empresas ‘com sede’ na Irlanda que se encarregam de o colocar de novo na agenda.

Aqui há uns tempos defendi que a relação entre a política fiscal agressiva da Irlanda e o extraordinário crescimento dos anos 90 para cá era muito mais ténue do que parecia à primeira vista. Os números que conhecemos, e que fazem parangonas nos jornais, estão consideravelmente empolados por factores que não costumam entrar na comparação simples das taxas de crescimento: pressões demográficas, diferentes pontos de partida, horas trabalhadas e até o gap crescente entre a métrica habitual de bem-estar (PIB) e a métrica mais relevante para a Irlanda (Rendimento Nacional Bruto).

Quanto se leva estes factores em conta, o milagre desvanece-se, ou pelo menos perde bastante fulgor. O passado recente da Irlanda parece recapitular a história de muitas outras economias que chegaram aos anos 70 com um grande atraso face à fronteira da produção tecnológica: no fundo, uma história de catching-up (muito) bem sucedida. Que, no caso da Irlanda, está enterrada sob uma série de problemas de comparabilidade.

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Já agora, não reclamo originalidade. As ideias desse post foram quase todas retiradas do melhor paper que eu conheço a destilar o sucesso irlandês: Catching up with the leaders: the Irish hare.

Mas uma coisa que não referi nesse post – porque, enfim, desconhecia – é a quantidade de reformas fiscais que a Irlanda foi tendo desde os anos 60, todas aparentemente no mesmo. É provável que a magnitude das alterações tenha sido bem inferior à das mudanças dos anos 90, mas em todo o caso a imagem – roubada ao Middle Class Economist – não deixa de ser interessante.

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O que os empresários dizem

O Global Competitiveness Report 2016/2017 já saiu, e como é habitual gerou-se algum zum-zum acerca do que o documento diz ou não diz (nota para iniciantes: a posição relativa de Portugal piorou em 2016. Por isso conseguem imaginar a natureza do zum-zum).

Eu não queria discutir as principais conclusões do relatório. Mas quero deixar uma nota acerca deste tipo de documentos e lançar um pequeno alerta relativamente ao que se pode extrair dali. Vou pegar num exemplo catchy para ser polémico, chamar leitores e inverter a inexorável tendência de diminuição do meu número de leitores; mas acreditem quando vos digo que o que escrevo vale para uma boa parte daquilo que se lê naquelas páginas.

Adiante, então. Uma das partes mais citadas do relatório é a que mostra os principais entraves a negócios. Em Portugal, são os seguintes:

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Acabar com o IRC

Uma proposta de Lawrence Kotlikoff, no Vox. It’s time to eliminate the US corporate income tax.

When it comes to corporate tax reform, the true incidence of who bears the tax is also lost in the words. Most people, regardless of political party, think the corporate income tax is primarily paid by rich corporate shareholders. But this is not necessarily the case (Felix and Hines 2009, Kotlikoff et al. 2013). In particular, a recent large-scaled dynamic simulation study, entitled “Simulating the Elimination of the US Corporate Income Tax,” (Kotlikoff et al. 2013) strongly suggests otherwise. As I discussed in a recent NY Times column (Kotlikoff 2014), corporate shareholders can, and do, move their capital and production away from countries that impose high corporate income tax rates to countries that impose low corporate income tax rates.

Our paper simulates corporate tax reform in the US and abroad, including the complete elimination of the US corporate income tax. The model features a single good produced in five regions – the US, Europe, Japan (plus Korea and Taiwan), China, and India – with skilled and unskilled labour. It also closely models demographics, including age-specific birth and death rates, as well as each countries’/regions’ fiscal policy.

We find that:

  • Eliminating the US corporate income tax with no changes in the corporate tax rates of the other regions can produce rapid and dramatic increases in US domestic investment, output, real wages, and national saving.
  • These economic improvements expand the economy’s tax base over time, producing additional revenues that make up for a significant share of the loss in receipts from the corporate tax.

The simulated economic gains from eliminating the corporate tax – while insufficient to fully finance the corporate tax cut (i.e., there is no Laffer Curve, per se) – are large enough to produce a Pareto improvement. Modest welfare gains accrue to early generations, both skilled and unskilled, and very sizable welfare gains go to young and future generations, both skilled and unskilled.

Importantly, these gains arise naturally with no special compensation mechanism required to transfer from winners to losers.

Impostos e crescimento (e o efeito Tribunal Constitucional revisitado)

O relatório trimestral do Banco de Portugal, publicado hoje, tem um estudo excelente acerca do impacto da política fiscal via impostos no crescimento do PIB: Efeitos macroeconómicos das alterações da legislação fiscal em Portugal.

O estudo é inovador porque utiliza uma abordagem diferente da habitual para identificar os choques fiscais. A metodologia típica, pelo menos desde Blanchard, consiste em analisar as séries de impostos e identificar como choques todos os períodos em que a receita cresce (ou cai) de uma forma que não é explicada pelo comportamento da actividade económica. Neste estudo, que segue uma linha que tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos (ver aqui e no Vox, por exemplo), os investigadores consultam documentos legislativos para identificar os momentos em que houve alterações fiscais efectivas – a chamada ‘abordagem narrativa’.

O principal resultado é que o multiplicador associado aos impostos é significativamente revisto em alta face aos valores consideravelmente conservadores a que os mesmos autores chegaram, utilizando a metodologia habitual (ver aqui).  Estes resultados são robustos à introdução de uma série de controlos importantes, como a neutralização do ruído introduzido por choques de despesa. E um subproduto feliz deste estudo é a construção de uma série temporal com quase 20 anos para choques de impostos, algo que promete ser útil para os investigadores de política orçamental (sobretudo para um país, como Portugal, em que as alterações fiscais estão espalhadas por dezenas de diplomas desconexos, sem que haja uma base de dados uniforme).

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Mas as conclusões dos economistas do Banco de Portugal referem outro ponto importante. Que passa relativamente despercebido no paper mas que tem relevância para outra discussão. É o seguinte (bolds meus):

A construção da série principal de choques parte do pressuposto de que o momento relevante para medir os efeitos macroeconómicos da tributação é o do seu pagamento. No entanto, se o comportamento  dos consumidores fosse principalmente influenciado pelas suas expectativas quanto ao rendimento permanente, o momento relevante seria, ao invés, quando estes se apercebessem da alteração do seu rendimento disponível futuro. Neste caso, o seu comportamento modificar-se-ia logo no momento do anúncio credível da medida (…) Esta evidência reforça a hipótese de o produto responder às alterações fiscais no momento de implementação das mesmas. A resposta do PIB à série de choques de  acordo com as obrigações fiscais, mantendo constante a série baseada no momento do pagamento, é  inicialmente nula e torna-se positiva, embora ténue, após cerca de um ano. Como referido, a abordagem  das obrigações fiscais é comparativamente mais adequada para medir os efeitos na economia que operam por via das expectativas. A evidência não é assim consistente com a teoria do rendimento permanente.

Este trecho (que omite, por questões de espaço, o processo através do qual os economistas chegaram a esta conclusão) quer simplesmente dizer que, na amostra considerada, alterações de impostos parecem ter um impacto positivo na economia sobretudo a partir do momento em que afectam de facto o rendimento disponível – mesmo que já sejam previamente conhecidas.

Esta conclusão é relevante para a questão do efectivo impacto da decisão do Tribunal Constitucional de impor a devolução dos subsídios. Recorde-se que aquando da publicação dos números do PIB para o segundo trimestre, pelo INE, houve um debate com algum alcance em relação à possibilidade de ter sido a devolução dos subsídios a empurrar a actividade.

Os principais argumentos estão neste post, e por isso farei apenas uma breve recapitulação: a) a decisão do TC, nos moldes em que o Governo a interpretou, levará a que o grosso do impacto da devolução dos subsídios se concentre no terceiro e no quarto trimestres; b) por esta razão, qualquer eventual efeito que a devolução possa ter no segundo trimestre só poderá actuar através da percepção de um aumento do rendimento permanente; c) a existência de consumidores com restrições de liquidez, que já gastam todo o seu rendimento disponível, encurta ainda mais o leque potencial de consumidores que pode (ou pôde), de facto, alisar o seu consumo no segundo trimestre.

Ora, as conclusões do Banco de Portugal mostram precisamente que é no momento de aumento do rendimento disponível – e não no momento em que esse aumento é conhecido – que a descida de impostos afecta a actividade económica. E, para todos os efeitos, uma devolução de subsídios é, em termos microeconómicos, largamente semelhante a uma redução de impostos sobre o rendimento (no caso do sector público, a diferença é mesmo meramente semântica). A confirmar-se esta conclusão, a decisão do TC deveria fazer-se sentir no terceiro trimestre.

O mesmo estudo refere, numa nota de rodapé, que há uma grande percentagem de rendimento sujeito a restrições de liquidez, e que esta restrição está positivamente relacionada com “a taxa de desemprego, facto que poderia levar a um aumento da parcela de rendimento sujeito a restrições de liquidez nos últimos anos” (página 80). Novamente, estas circunstâncias mitigariam o ‘efeito TC’ no segundo trimestre e amplificá-lo-iam no terceiro. Ou seja, o ‘choque’ de crescimento far-se-ia sentir no terceiro trimestre.

Os dados entretanto disponibilizados para o período Abril/Junho e Julho/Setembro ajudam a consolidar esta ideia. Tanto os indicadores objectivos de consumo privado como os mais introspectivos mostram que o segundo trimestre (a azul marinho) não marcou qualquer ruptura com o período precedente. Faz parte de uma recuperação que já estava em marcha anteriormente, e que terá prosseguido ao mesmo ritmo no período subsequente.

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Registe-se, a propósito, que a ‘hipótese TC’ -mesmo assentando na hipótese (aparentemente não verificada) do rendimento permanente – sugeriria um perfil de recuperação completamente diferente. O consumo deveria crescer no segundo trimestre, devido à expectativa de maior rendimento anual, e estagnar a partir daí, uma vez que o ímpeto inicial já tinha surtido todo o seu efeito.

Como é óbvio, perceber por que é que o consumo recuperou apesar da manutenção da austeridade – como se a política orçamental tivesse perdido ‘tracção’ à procura agregada – não deixa, ainda assim, de ser uma questão interessante.

E não é que a receita com IVA da restauração cresceu 109%

O Governo apresentou finalmente o Relatório sobre a situação económico-financeira e custos de contexto da hotelaria, restauração e similares. A comunicação social está a dar destaque à possibilidade, admitida no Relatório, de se baixar o IVA da restauração já em 2014. Eu gostaria de chamar a atenção para uma parte diferente do documento, que replico em baixo.

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Este gráfico, que aparece na página 11, mostra o contributo líquido (em milhões de euros) que o sector da restauração deu para a consolidação orçamental em 2012. Considera-se não apenas o impacto da alteração da taxa de IVA aplicada ao sector (recorde-se que esta subiu para 23%), mas também os efeitos negativos que essa mesma subida teve na actividade e no emprego correspondentes – seja na receita de IRS, seja na colecta de IRC, seja nas contribuições sociais e despesa com subsídio de desemprego.

Que o resultado líquido seria claramente positivo (como acabou por ser, efectivamente) já era de esperar. Não havia nenhuma razão para esperar que uma subida de impostos tivesse um impacto tão grande na economia que acabasse por para degradar, em vez de melhorar, o saldo orçamental.

Mas ninguém diria isto olhando para o debate que se gerou em 2012 (e que se prolongou bem até 2013). Na altura, não faltou quem dissesse que a medida seria contraprodutiva e que o impacto líquido seria crescentemente negativo. Até a PwC fez um estudo a ‘mostrar’ como a alteração da taxa prejudicaria as contas públicas em 93 milhões de euros – estimativas assumidamente “conservadoras”.  “Disparate” e “estupidez” foram alguns dos adjectivos mais brandos para caracterizar a subida do IVA da restauração.

Não é de estranhar que uma medida deste género gerasse a polémica que de facto gerou. Tenho mais dificuldade em perceber a forma acrítica como tanta gente ‘comprou’ a tese de que o impacto orçamental seria negativo, na ausência de qualquer evidência convincente. Note-se que, em princípio, uma medida de consolidação orçamental consolida as contas, não as degrada. Para que o contrário aconteça, é necessário assumir multiplicadores completamente irrealistas, entre os 4 e os 5).

Mas se os multiplicadores são estes, então qualquer esforço de consolidação – e não apenas o que recai sobre a restauração, via IVA – está condenado ao fracasso. E se não são, então é preciso explicar muito bem por que razão insondável tem a política orçamental um impacto na restauração que seria três a quatro vezes superior àquele que tem no resto da economia.

Como é óbvio, ninguém apresentou qualquer dado a suportar esta tese. O que não impediu que se gerasse um ‘quase-consenso’ em torno de “óbvia” estupidez da subida do IVA da restauração. Ironicamente, a posição heterodoxa e implausível – mais impostos significam mais défice – tornou-se subitamente uma opinião que qualquer pessoa de bom senso deveria partilhar. Quem diria que há tantos lafferianos em Portugal?

A este propósito, e para colocar a questão em perspectiva, comparei a performance da restauração com o resto da economia, utilizando os dados disponibilizados no relatório do Governo e números do INE e da DGO. O quadro apresenta as mudanças de um ano para o outro em variáveis fiscais e de actividade (volumes de actividade e emprego). Uma vez que o relatório muitas vezes se limita a apresentar a diferença de valores entre 2012 e 2013, sem identificar os valores concretos de cada ano, nem sempre foi possível fazer comparações percentuais. Em todo o caso, aqui fica o que foi possível comparar.

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Uma nota adicional: a actividade da restauração é avaliada através do respectivo índice de volume de negócios, que não é directamente comparável com o ‘barómetro’ utilizado para a Economia total (PIB). Se utilizarmos o índice de volume dos serviços como termo de comparação, a quebra correspondente seria sensivelmente semelhante à da restauração.

Finalmente, note-se que dizer que a subida do IVA contribuiu para a consolidação orçamental não é o mesmo que dizer que ela não pode, ou não deve, ser revertida – da mesma forma que argumentar que a austeridade reduz efectivamente o défice é compatível com a defesa de uma austeridade mais suave. Mas esta defesa será tanto mais convincente e credível quanto mais informada for.

O IVA da restauração

Há um grande e acalorado debate acerca do IVA da restauração, que subiu de 13 para 23% com o Orçamento do Estado para 2012. Se já tenho alguma dificuldade em perceber a substância do argumento – não há razão económica absolutamente nenhuma para que este sector, em particular, tenha uma taxa de imposto efectiva inferior à dos restantes serviços – fico ainda mais surpreendido com a ideia de que a subida da taxa reduziu, em vez de aumentar, a receita fiscal.

O argumento subjacente a esta crítica é que, apesar de o IVA ter aumentado em 2012, a receita total caiu. Supostamente, porque a contracção do rendimento disponível foi mais do que suficiente para compensar o facto de a taxa de imposto subir – a máquina estaria a taxar mais um bolo menor, com este último efeito a ter predomínio sobre o primeiro.

Este argumento é bastante ingénuo, não apenas porque assume uma relação de causalidade entre taxa de imposto e evolução do consumo pouco plausível, mas sobretudo porque esquece um facto crucial da política orçamental de 2012: um corte de despesa de cerca de 6 mil milhões de euros, que teria, necessariamente, de se repercutir na receita fiscal. De facto, alguns cálculos bastantes simples chegam para mostrar como estes 6 mil milhões de euros levariam, por si mesmos, a uma queda brutal na receita de IVA. Não é preciso invocar a subida da taxa para explicar o descalabro.

No caso da restauração, este o argumento parece particularmente débil, conforme se verá.

Em primeiro lugar, as informações disponíveis apontam para que a receita fiscal tenha aumentado, em vez de diminuir. Em Agosto de 2012, a receita total crescia mais de 100%, segundo informações da Autoridade Tributária e Aduaneira, relatadas pelo Sol. Se mais IVA conduzisse a menos receita, seria de esperar que o colapso da colecta fosse particularmente acentuado na restauração. Claramente, isso não acontece.

Este valor de aumento da receita é até superior àquilo que se esperaria da mera actualização mecânica de taxas, sugerindo que haverá outro fenómeno a influenciar a cobrança – muito provavelmente, um combate mais eficaz à fraude.

Em segundo lugar, a actividade no sector da restauração não parece particularmente afectada pela subida de impostos – pelo menos não mais do que o resto dos sectores dos serviços, e seguramente que não o suficiente para compensar o facto de a taxa efectivamente ter passado praticamente para o dobro.

O quadro em baixo compara indicadores de actividade para a restauração e restantes serviços, olhando para o período pré-crise e desenvolvimentos subsequentes. Não há evidência absolutamente nenhuma de que os restaurantes estejam a ser particularmente castigados, contrariando assim a ideia, bastante disseminada, de um colapso generalizado do sector. Mais importante, a contracção é claramente insuficiente para compensar o facto de a taxa de imposto ter passado de 12 para 23%.

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É importante notar que estes dados são confirmados por indicadores associados, como índices de volume de emprego e remunerações, o que tornam a conclusão particularmente robusta. Ou seja: reduzir a taxa de IVA sobre a restauração implicaria, com toda a probabilidade (e como seria de esperar), menos, e não mais, receita fiscal.

O ranking dos impostos indirectos

Comparar a alteração de impostos indirectos olhando para a cobrança efectiva é um exercício arriscado. As variações, que muitas vezes só podem ser analisadas numa base trimestral, tendem a reflectir mais a realidade económica subjacente do que as taxas efectivas determinadas pelo Governo.

O Eurostat, porém, passou agora a disponibilizar uma base de dados útil para o fazer de forma indirecta. O novo projecto do gabinete de estatísticas europeu consiste na criação de um índice de preços – do tipo HICP – que expurga o efeito dos impostos indirectos, como o IVA.

Os cálculos que fiz em baixo são bastante simples: calculei a variaçaõ acumulada de preços efectivos entre Janeiro de 2010 e Setembro de 2012 e repeti a operação para os preços a taxas constantes. O valor da primeira imagem é a diferença entre os dois resultados acumulados.

O valor da segunda imagem obtém-se dividindo o resultado anterior pela variação acumulada de preços, de maneira a obter o peso dos impostos no crescimento do HIPC.

O IRS em perspectiva comparada

A alteração anunciada do IRS, que já foi abordada num primeiro post, tem duas particularidades que merecem um pequeno comentário.

A primeira é o facto de haver uma subida acentuada da taxa de IRS a partir do antigo terceiro escalão. Essa subida é evidente nesta imagem, que mostra que é entre os 750 e os 1.500 euros que a situação se altera de forma mais drástica – a partir daí, o agravamento é apenas marginalmente mais acentuado.

Julgamentos de valor à parte, e deixando de lado a questão do timing da alteração, a verdade é que Portugal é um dos países da OCDE onde os impostos directos têm menos peso relativamente os impostos directos, como o IVA. Como os primeiros são os únicos que permitem alguma progressividade, esta diferença de pesos relativos contribui para acentuar a desigualdade de rendimentos.

A diferença de pesos reflecte a importância do IVA em Portugal, mas também pode resultar dos escalões utilizados para os impostos directos. Veja-se, por exemplo, a taxa média de imposto sobre o rendimento singular aplicada na OCDE e em Portugal. Portugal fica abaixo da média – e se bem que estes valores possam ser enganadores, porque referem-se a taxas marginais, e não taxas efectivas, também há que levar em conta que estes valores dizem respeito a salários médios, e não salários medianos (leitores com mais tempo poderão fazer os seus próprios cálculos para saber quanto paga em IRS cada contribuinte europeu, utilizando o OECD tax database).

O segundo elemento de surpresa é a descida abrupta da fasquia a partir da qual a taxa marginal mais elevada passa a aplicar-se. A partir de 2013, os “ricos” passam a ser todos os que ganham mais de 80.000. Até aqui, era necessário ganhar 153.000 euros para pagar a taxa de IRS mais alta.

Convém manter alguma perspectiva. É frequentemente dito que a taxa marginal mais alta do imposto sobre os rendimentos pessoais é superior à média dos países mais desenvolvidos. Isto é correcto, embora a discrepância não seja muito grande. Em 2011, a taxa mais elevada era de 44,5%, ao passo que na média da OCDE era de 39,7%.

Por outro lado, esta taxa relativamente elevada é aplicada a rendimentos igualmente elevados. A OCDE utiliza um indicador de progressividade que consiste em calcular os rendimentos abrangidos pela taxa máxima como múltiplo do rendimento médio de cada país. Os países com rácios mais elevados são aqueles onde a taxa máxima se aplica a um grupo mais restrito de ‘ricos’. Veja-se, agora, a posição de Portugal.

É importante fazer uma ressalva. Portugal surge numa posição destacada em parte devido à criação, em sede de IRS, de um novo escalão de imposto ‘para ricos’em 2010. Nos anos anteriores, o rácio rondava os 4,5 – Ainda assim, múltiplo bem acima da média da OCDE (3). Ou seja, os impostos máximos são elevados, mas abrangem poucos contribuintes.

Esta característica do sistema fiscal português  não deixa de ser compreensível quando levamos em conta que grande parte das elites portuguesas aparenta ter uma ideia algo distorcida acerca do que é o rendimento real da classe média (lembremo-nos das declarações de Sócrates a afirmar que é a classe média que mais beneficia de benefícios fiscais à aquisição de PPR’s – ou de casos como este, que já entram no domínio do surrealismo).

O IRS e a progressividade

Ainda não há Orçamento do Estado para 2013, mas a comunicação social já revelou grande parte da informação. O ponto mais polémico é a alteração de escalões de IRS, que tem gerado muita discussão nas últimas 24 horas (ver alterações aqui).

Uma das críticas, feita hoje num meio de comunicação social, é que a alteração do IRS – menos escalões e taxas médias maiores – reduz a progressividade, fazendo com que os mais pobres sejam mais afectados do que os mais ricos. Esta conclusão extrai-se através de um método enganador, que consiste em comparar o imposto efectivamente pago em dois períodos de tempo e calcular a variação percentual.

Imagine-se o seguinte exemplo:

  • Sujeito A, que ganha 500€/mês e paga 5€ de IRS (1%)
  • Sujeto B, que ganha 5.000€/mês e paga 500€ de IRS (10%)
  • Subida do IRS de A em 1 ponto percentual, de 1 para 2% (colecta=10€)
  • Subida do IRS de B em 5 pontos percentuais, de 10 para 15% (colecta=750€)

A progressividade aumentou ou diminuiu? ‘A’ paga mais 1 ponto percentual do que antes, e ‘B’ paga mais 5 pontos percentuais, pelo que a progressividade aparentemente aumentou. Por outro lado, ‘A’ paga agora mais 100% do que pagava antes, enquanto ‘B’ paga apenas mais 50%. Este efeito, contudo, resulta apenas do facto de o montante inicial pago por ‘A’ ser extremamente baixo, o que gera um efeito base que torna qualquer variação percentual enorme por comparação.

Um método melhor para avaliar a progressividade é comparar as taxas efectivas de imposto. Foi o que fiz, utilizando as simulações da Ernst & Young para o caso de um solteiro sem filho, feitas a pedido do Diário Económico (disponíveis aqui). O primeiro gráfico mostra taxas efectivas para 2012 e 2013; o segundo revela a variação em pontos percentuais de um ano para o outro.

Qual é o efeito na progressividade? Duas coisas a salientar.

Primeiro, a taxa aumenta de facto mais para quem ganha mais (em pontos percentuais), mas a aglutinação de alguns escalões fez com que a progressão não seja linear. Há de facto algumas faixas de rendimento que têm um agravamento (de novo em pontos percentuais) mais alto do que faixas seguintes – caso, nomeadamente, dos salários mensais 1.500/3.000€.

Segundo, o salário mediano em Portugal ronda os 700/800€, segundo o INE. Até essa faixa, o agravamento é aparentemente muito tímido. A alteração de taxas recai sobretudo sobre quem está acima da mediana, o que deve de facto provocar uma compressão razoável na distribuição de rendimentos.

Há ainda duas questões interessantes que podem ser levantadas depois de analisar a medida do Governo: por que é que é entre os 700 e os 1.500€ que a taxa de IRS (em pontos percentuais) mais aumenta (de 1,5 para mais de cinco)? E por que é que o limite superior a partir do qual se transita para a taxa máxima foi reduzido de forma tão significativa (de 153 para 80 mil euros)? Estas questões ficam para o próximo post.