Paradoxos da poupança das famílias

A taxa de poupança das famílias tem estado a cair nos últimos trimestres. Na verdade, tem estado a cair muito – tanto que em 2016 até escrevi um post a alertar para as diferenças conceptuais entre a ‘poupança’ que a aparece nas notícias e a ‘poupança’ que temos na cabeça quando falamos coloquialmente sobre estes assuntos (e outro a chamar a atenção para a poupança das empresas).

Em todo o caso, e minudências técnicas à parte, há mesmo alguma coisa estranha a passar-se com a poupança. A taxa está no valor mais baixo desde 1999, abaixo dos 4% do rendimento disponível e cerca de quatro pontos percentuais atrás do valor registado em 2013.

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Mas parece que tudo depende muito de como avaliamos a poupança. O INE também faz um inquérito mensal às famílias, onde lhes pergunta sobre o seu grau de poupança, e as respostas dos últimos não batem certo com os dados ‘puros e duros’ das contas nacionais. No período mais recente, aliás, as duas séries parecem caminhar em direcções completamente opostas.

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Eu tenho uma ideia do que pode estar na raiz da divergência. O ‘Grau de Poupança do agregado familiar’ parece ser o resultado de uma diferença entre as respostas extremas dadas à pergunta «Em que medida é o seu agregado familiar capaz de poupar dinheiro durante o mês?» (ou coisa que o valha). O INE compara as respostas, apura o saldo líquido e publica o número. É por isso possível que a unidade das duas métricas (explícita ou implícita) não seja exactamente a mesma – ou até que as famílias estejam a reportar possibilidades de poupança, e não poupanças efectivas.

Em todo o caso, uma pista engraçada para quem se ocupa destas coisas.

 

 

Défice externo duplica? Bom, é complicado…

O Banco de Portugal divulgou os números da Balança de Pagamentos (BoP) para Junho. A BOP agrega o conjunto das estatísticas que analisam as relações económicas de Portugal com o exterior (o “resto do mundo”), e servem, por exemplo, para calcular o valor do défice externo ou o ritmo de acumulação de dívida da economia. Alguns dos títulos publicados foram, por exemplo:

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Desemprego a descer. Até onde não se sabe muito bem

O que é que sabemos ao certo acerca da Taxa Natural de Desemprego? Quando Olivier Blanchard escreveu um paper com este título, em 1996, a resposta parecia ser: não muito. Dissertando sobre um tema antigo – com a vantagem de o fazer embalado por duas décadas de investigação – Blanchard notou que os progressos ao nível do raciocínio teórico não tinham sido acompanhados por desenvolvimentos semelhantes no campo empíricos:

While substancial conceptual progress has been made in thinking about the natural rate of unemployment, empirical knowledge lags behind. Economists are a long way from having a good quantitative understanding of the natural rate, either across times or across countries.

Claro que estas limitações não impediram ninguém de fazer estimativas para a taxa natural de desemprego («NAIRU», usando a abreviatura inglesa). Tanto a Comissão Europeia como o FMI produzem NAIRU’s para períodos passados e projecções para o futuro, de modo a ajudar a interpretar a história económica recente e ajudar a guiar a política económica daqui para a frente.

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Dívida do Estado (e os seus credores)

Na nota de análise das contas públicas de 2016 o Conselho das Finanças Públicas tem um excelente quadro com a decomposição da dívida pública por sector financiador. É uma grande ideia. Há algum tempo que andava às voltas dos números do Banco de Portugal para perceber os contributos relativos de cada fonte de financiamento, mas nunca consegui saber ao certo como é que as aquisições do BCE são registadas nas estatísticas monetárias e financeiras. O resultado é o seguinte.

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Se bem percebo este quadro, cada barra mostra mostra a dívida pública de cada ano, dividida por sector financiador: a composição do stock em termos de quem o detém. Ora, é possível pegar nestas barras, calcular as diferenças de ano para ano e assim obter os fluxos correspondentes.

E isto permite-nos, se eu não tiver metido o pé na poça algures por aqui, perceber quem está a ‘entrar’ ou a ‘sair’ do negócio da dívida pública portuguesa. E, pelas minhas contas, o resultado é mais ou menos o seguinte.

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Ainda o país com a maior dívida externa do mundo

Ali em baixo, num post de Fevereiro, notei como a Irlanda, apesar de manter um excedente externo na casa dos 10% do PIB, tem vindo a acumular uma posição patrimonial cada vez mais negativa. Em 2016, a Posição de Investimento Internacional chegou a uns estonteantes -175% do PIB, um valor completamente desalinhado com a evolução da Balança de Transacções Correntes.

Claro que a soma dos fluxos não corresponde necessariamente aos movimentos dos stocks, mas há algo de estranho em divergências tão grandes, sobretudo quando se espera que um e outro reflictam mais ou menos a mesma realidade subjacente. O que me fez pensar que tudo poderia resultar de algumas características particulares da economia irlandesa, que a tornam especialmente vulnerável a algumas limitações das estatísticas macroeconómicas.

Parece que esse é o caso. O FMI tem uma caixa interessante acerca desta questão no último World Economic Outlook, onde explica que o que está a acontecer é um dos desagradáveis side-effects da mudança do destino onde as multinacionais registam o ‘capital intangível’ relacionado com propriedade intelectual. Um problema que, pelos vistos, também teve alguma coisa que ver com o estranho crescimento do PIB de 2015 (mais de 26%).

The assessment of net international investment positions is becoming increasingly complex as these positions—alongside national accounts figures—can be affected by financial decisions related to the corporate structure of large multinational companies, with no clear repercussions for external sustainability (or any tangible effects on employment and living standards). A case in point is Ireland, where the relocation of entire balance sheets by multinational companies, and in particular intellectual property products, led to a very large upward revision in the stock of intangible capital in the country (…)

O WEO também revela que o CSO (o INE lá do sítio) está a trabalhar num conjunto de indicadores que capturem a realidade subjacente a agregados como o PIB ou o RNB, mas que seja menos vulnerável a algumas das suas limitações. Pelos vistos até já há um relatório preliminar, mas lá no site não consegui encontrar. Se algum dos leitores o tiver, pode deixar o link nos comentários.

 

O país com a maior dívida externa do mundo

Bom, na verdade não tenho a certeza de que seja mesmo o campeão da dívida externa. Há por aí umas largas dezenas de países sem dados actualizados relativos à Balança de Pagamentos, e outros tantos que não os reportaram ao FMI/Banco Mundial. Mas, se não ocupar a primeira posição, então de certeza que anda lá perto. Três pistas para quem gosta de adivinhas: é pequeno, é europeu e é um dos maiores exportadores da Zona Euro.

Ah, e entre activos menos passivos tem uma posição líquida negativa de 175% do respectivo PIB.

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Como não analisar os números do PIB

Todos os trimestres o INE divulga um destaque simpático com o comportamento do PIB nos três meses anteriores. E todos os trimestres ouvimos analistas a explicar este comportamento com base na evolução das suas componentes: o PIB cresceu ‘à boleia do Consumo Privado’, ‘acelerou por causa do Investimento’ ou ‘caiu por causa de um contributo negativo das exportações’.

Não há nada de errado nisto. O problema é quando se confunde contabilidade com causalidade, atribuindo o crescimento do PIB ao contributo contabilístico de cada variável.

Infelizmente, não é assim tão simples. Na verdade, é perfeitamente possível que o PIB cresça muito, que todo esse crescimento seja imputado a uma única variável e, ainda assim, que essa variável não tenha nada a ver com o assunto.

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Robôs, produtividade e pontas soltas

Num post anterior acerca dos robôs-que-nos-roubam-empregos notei os sinais contraditórios que recebemos de fontes diferentes. Por um lado, os media (e a experiência pessoal, convenhamos) sugerem que vivemos numa época de inovação tecnológica extraordinária. Por outro lado, as estatísticas agregadas mostram que a produtividade está pelas ruas da amargura.

Será que uma impressão está correcta e a outra está errada? Ou há alguma coisa a escapar-nos, e a contradição é mais aparente do que real? Eu diria que há pelo menos três explicações possíveis.

A explicação mais trivial é que há um delay considerável entre o momento em que as inovações são descobertas e o momento em que são incorporadas nos processos produtivos. Há inúmeros exemplos retirados da Revolução Industrial, mas o meu favorito é a afirmação de Robert Solow, de que “podemos encontrar computadores em todo o lado, excepto nas estatísticas da produtividade”. Poucos anos após pôr meio mundo a discutir o verdadeiro impacto das tecnologias de informação (1987), o alerta revelou-se extemporâneo. A produtividade disparou nos anos 90 e os estudos subsequentes mostraram que isto se devia em parte… às tecnologias de informação.

Se o passado serve para iluminar o futuro, então talvez os robôs sejam mesmo para levar a sério. Talvez seja só uma questão de tempo até que os protótipos passem das capas da Wired, onde fazem manchetes mas (ainda) não produzem, para os lares das famílias e linhas de montagem das empresas. Se for este o caso, então talvez o desemprego tecnológico – transitório, mas real – seja uma possibilidade séria nos próximos 10 ou 20 anos.

Uma segunda explicação é que podemos estar apenas a medir mal o crescimento do PIB – e, consequentemente, temos uma ideia incorrecta da produtividade.

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Ir além do PIB

Uma das críticas mais comuns à economia convencional – e que se torna ainda mais recorrente em grupos de sociólogos ou cientistas políticos – é a importância que os economistas atribuem ao conceito de Produto Interno Bruto.

Os FMI’s e Bancos Mundiais desta vida passam uma boa parte do seu tempo a dar lições aos países em crise sobre como pôr o Produto a crescer mais. A Comissão Europeia usa os números do PIB para fixar metas – e, assim, influenciar indirectamente a política orçamental  dos estados-membro. Quanto estudam a pobreza ou as diferenças de qualidade de vida entre países, os economistas da academia recorrem invariavelmente ao PIB ou aos seus primos mais próximos, o RNB e o RDB.

Seja qual for o tema em questão, o PIB está quase sempre lá. E aparece sempre, de forma mais ou menos implícita, como uma métrica de sucesso.

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Riqueza das famílias portuguesas: de 2010 a 2013

O INE acabou de publicar o Inquérito à Situação Financeira das Famílias, um relatório rico e detalhado acerca da situação patrimonial e financeira dos portugueses.

É o tipo de coisa que pode dar jeito a jornalistas que estejam interessados – por exemplo – em saber quanto é que a ‘classe média’ tem guardado no banco. Ou qual o valor do seu património imobiliário. Ou quantas pessoas têm acções e outras aplicações financeiras, e onde estão essas pessoas na escala de rendimentos. Nesta altura – e talvez durante os próximos dois anos – pode ser um recurso valioso.

Eu dei uma vista de olhos nos principais números, que actualizam para 2013 as informações que tinham sido divulgadas pela última vez em 2010. O que mais me chamou a atenção foi a variação da riqueza financeira líquida (activos menos passivos) ao longo da escala de rendimentos.

Os números são mais ou menos estes. De 2010 para cá, as duas ‘abas’ da distribuição de rendimentos (‘ricos’ e ‘pobres’, para simplificar) não tiveram sortes iguais. quem estava no grupo dos 20% mais pobres perdeu quase metade do seu património (primeira coluna à esquerda); quem estava do outro lado acabou por ganhar. Ligeiramente, mas ganhou.

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Concluiu-se mais ou mesmo ou mesmo quando dividimos a amostra não por percentis de rendimento, mas por percentis de riqueza. Neste caso, as diferenças entre os extremos são, por razões óbvias, bastante maiores. Mas o ponto do parágrafo anterior mantém-se: quem estava no fundo perdeu, e quem estava lá à frente ganhou (Nota: nem todos estes números estão disponíveis no destaque do INE. Alguns valores tiveram de ser retirados do boletim de 2010)

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Mas confesso que não sei até que ponto é que estes dados não ser um subproduto da forma como os dados recolhidos. A nota metodológica do INE sugere que estes são dados seccionais – isto é, o INE pega nos resultados de cada ano e ‘divide-os’ por escalões de rendimento (ou riqueza) e calcular estes valores. O que não significa que os mais ricos de 2010 tenham ganho em 2013, e que os mais pobres tenham perdido. É perfeitamente possível que de um inquérito para o outro tenha havido uma recomposição das famílias que compõem o lote de ‘ricos’ e de ‘pobres’. Na prática, portanto, estaríamos apenas a ver medianas de riqueza de grupos diferentes.

Em todo o caso, o boletim é uma óptima fonte de informação para conhecermos melhor a sociedade portuguesa – mesmo que nem sempre permita responder às perguntas que achamos mais interessantes.