Ainda o país com a maior dívida externa do mundo

Ali em baixo, num post de Fevereiro, notei como a Irlanda, apesar de manter um excedente externo na casa dos 10% do PIB, tem vindo a acumular uma posição patrimonial cada vez mais negativa. Em 2016, a Posição de Investimento Internacional chegou a uns estonteantes -175% do PIB, um valor completamente desalinhado com a evolução da Balança de Transacções Correntes.

Claro que a soma dos fluxos não corresponde necessariamente aos movimentos dos stocks, mas há algo de estranho em divergências tão grandes, sobretudo quando se espera que um e outro reflictam mais ou menos a mesma realidade subjacente. O que me fez pensar que tudo poderia resultar de algumas características particulares da economia irlandesa, que a tornam especialmente vulnerável a algumas limitações das estatísticas macroeconómicas.

Parece que esse é o caso. O FMI tem uma caixa interessante acerca desta questão no último World Economic Outlook, onde explica que o que está a acontecer é um dos desagradáveis side-effects da mudança do destino onde as multinacionais registam o ‘capital intangível’ relacionado com propriedade intelectual. Um problema que, pelos vistos, também teve alguma coisa que ver com o estranho crescimento do PIB de 2015 (mais de 26%).

The assessment of net international investment positions is becoming increasingly complex as these positions—alongside national accounts figures—can be affected by financial decisions related to the corporate structure of large multinational companies, with no clear repercussions for external sustainability (or any tangible effects on employment and living standards). A case in point is Ireland, where the relocation of entire balance sheets by multinational companies, and in particular intellectual property products, led to a very large upward revision in the stock of intangible capital in the country (…)

O WEO também revela que o CSO (o INE lá do sítio) está a trabalhar num conjunto de indicadores que capturem a realidade subjacente a agregados como o PIB ou o RNB, mas que seja menos vulnerável a algumas das suas limitações. Pelos vistos até já há um relatório preliminar, mas lá no site não consegui encontrar. Se algum dos leitores o tiver, pode deixar o link nos comentários.

 

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Como combater a próxima crise

As recessões são fenómenos cíclicos: nas economias desenvolvidas costumamos ver uma em cada década. E, talvez porque a última começou precisamente há nove anos, o FMI publicou uma espécie de manual com as principais instruções para os policymakers: Macroeconomic Management When Policy Space Is Constrained: A Comprehensive, Consistent, and  Coordinated Approach to Economic Policy.

Ao todo são 43 páginas de análise, propostas e simulações. A novidade não está tanto nas principais recomendações, que o Fundo já tem publicado de forma dispersa aqui ou ali. O que é novo é o facto de aquilo que era apenas ‘investigação académica’ feita pelos geeks do Departamento de Investigação ganhar agora forma de doutrina, ao ser publicado numa Staff Discussion Note (e assinado por três pesos pesados do Fundo).

E que novidades são estas? Correndo o risco de simplificar em demasia, parece-me que são cinco:

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Juros baixos, juros baixos até perder de vista

O World Economic Outlook de Outubro está aí, e a julgar pelo que li o Departamento de Investigação não se ressentiu da saída de Blanchard. O WEO continua tão útil e rigoroso como nos últimos anos, e tem – para além das habituais previsões macroeconómicas – um interessantíssimo estudo acerca da desinflação em curso nas economias avançadas: Global desinflation in an era of constrained monetary policy.

Não vou resumir aqui o estudo, que já inclui um sumário executivo muito completo para os mais preguiçosos. Mas queria dar nota de um gráfico impressionante, que compila as expectativas de mercado relativamente às taxas directoras dos principais bancos centrais e que mostra… bom, que mostra isto:

1 O primeiro quadro mostra a revisão das expectativas de mercado em relação ao comportamento da Reserva Federal. Em Setembro de 2013, o consenso apontava para a normalização rápida da Fed funds rate entre 2015 e 2016. Hoje, o mercado espera uma subida muito mais suave – apesar de a própria Fed anunciar que a coisa vai ser mais brusca  -, com a taxa directora a subir meio ponto percentual ao longo dos próximos três anos.

O segundo quadro compõe o ramalhete com as perspectivas actuais para as taxas do Bank of England e do BCE. O mercado espera que estas taxas de juro – negativas na Zona Euro e nos 0.25% no Reino Unido se mantenham a este nível até ao final da década.

Agora parem um pouco para pensar o que significa isto. Mesmo com a inflação baixa, entre 0,5 e 1,5%, estes valores representam taxas de juro reais negativas. Numa situação normal, taxas desta ordem de magnitude deveriam dar um impulso estrondoso ao investimento. Será assim tão difícil encontrar projectos que passem numa análise de custo-benefício em que a taxa de referência é negativa1? Mas qualquer pessoa que não tenha passado os últimos quatro anos em Marte sabe que prática, neste caso, não está a ser simpática para teoria.

E isto faz-me pensar no que dizia o Antonio Fatas há uns meses, num daqueles posts que o pessoal da macroeconomia devia mesmo, mesmo, mesmo ir ler. O post aborda as taxas de juro cobradas a soberanos, mas a ideia também é válida para as expectativas do mercado em relação às taxas directoras.

When 30 or even 50 year interest rates are negative or close to zero something is not right. Either this is the end of growth as we know it or the start of a 30-year period of extremely low inflation combined with deflation or our expectations are seriously off and we are up for an interesting surprise.

1 E sim, eu sei que a taxa directora não é igual à taxa de mercado cobrada à maioria das empresas, mas o princípio qualitativo é semelhante. E, nalguns casos (Alemanha, por exemplo), a questão é a mesma até em termos quantitativos: a taxa de juro real relevante é negativa.

Portugal e o FMI, dois anos depois do pó assentar

O FMI publicou um relatório acerca do seu papel nos programas de ajustamento da periferia europeia – e, como é habitual sempre que se põe a fazer auto-avaliações, gerou uma série de notícias que não são, digamos assim, completamente fiéis àquilo que o relatório tem lá dentro. Aliás, é sintomático que a notícia reportada pelo Esquerda.Net não seja assim tão diferente daquilo que se foi escrevendo por aí.

Há batalhas que estão perdidas à partida, e por isso nem vou tentar fazer de advogado do diabo (para isso leiam o Ricardo Reis). Mas queria aproveitar o momento para referir um dos background papers do estudo, que versa sobre Portugal e que é do melhor que vi por aí (o que não é estranho, tendo em conta que Sérgio Rebelo e Martin Eichenbaum são dois dos três autores).

Se se derem ao trabalho de ler o documento vão encontrar muita coisa boa. E também uma série de conclusões que há uns anos seriam consideradas anátema mas que hoje começam, pouco a pouco, a tornar-se (quase) consensuais. Algumas dessas ideias ocuparam uma boa parte dos posts deste blogue, e as referências que se seguem – uma boa parte dos quais são apenas links para textos alheios – reflecte bem a evolução das ideias ao longo do tempo. Só para nos relembrar que às vezes, de longe a longe, aprendemos uns com os outros. E – surpresa! – até se chega a alguns consensos.

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FMI contra João Salgueiro

Bom, não é bem contra João Salgueiro. Mas, para quem segue este blogue, este é um bom atalho para descrever a ideia em causa: a teoria de que baixar juros reduz tanto a remuneração dos activos que acaba por ser um tiro no pé em termos macroeconómicos – e passa, por vias travessas, uma certidão de óbito ao sistema financeiro.

Está tudo no Relatório de Estabilidade Financeira. Obrigado ao Miguel Madeira pela chamada de atenção.

Unconventional monetary policies, including quantitative easing and negative policy rates, continue to be crucial to address the weak macroeconomic environment. Banks are key beneficiaries of these policies overall, as improved price stability and growth lead to stronger borrower creditworthiness, a decline in nonperforming assets, reduced provisioning costs, capital gains on bond holdings, as well as declining wholesale funding costs.

Markets and policymakers have little historical basis for understanding the full benefits and costs that may arise over a prolonged period of low or of negative rates. The interests of banks and the broader economy may diverge in some respects. Credit easing, driven by low or negative rates, may lower costs to households and firms, support asset prices, and boost growth—good news for the real economy.

But there may be some adverse side effects for banks. By driving down costs of borrowing for the real economy, unconventional monetary policy appears to compress banks’ net interest margins, a key source of bank income. Negative interest rates may be unique in accelerating this margin compression over time, as banks have so far proven unwilling or are legally unable to pass on negative rates to retail depositors. As negative policy rates bring asset yields lower, deposit funding costs may get “stuck” at zero, squeezing the margin between the two.

 

Reformas estruturais: quando os tiros saem pela culatra

O Departamento de Investigação do FMI tem feito um trabalho extraordinário nos últimos anos. Ainda há pouco tempo, muita gente acreditava, com base num estudo de Alesina e Ardagna, que a consolidação orçamental podia ser expansionista. O FMI meteu as mãos na massa e mostrou que não só a base de dados usada pelos autores tinha problemas graves como a própria análise empírica deixava de fora imensas variáveis relevantes. Pelo meio, abriu as portas a uma avalanche de investigação no domínio da política orçamental.

Agora, o Fundo virou a agulha e está a destilar outra questão, pelo menos tão importante quanto aquela: as reformas estruturais. O trabalho mais recente vem no World Economic Outlook: The macroeconomic effects of labor and product market reforms. Anotem o nome, porque vão ouvir falar muito disto (e, se não ouvirem, é porque alguém não fez o que devia).

Sim, é mais um paper empírico acerca do impacto destas reformas. Mas não é qualquer um. Em primeiro lugar, tem uma inovação: usa uma base de dados narrativa, em que as reformas são identificadas não apenas pelo facto de um país subir ou descer nos rankings internacionais, mas também pelo facto de serem ou não elogiadas pela OCDE nos seus Economic Outlook bianuais. E não, isto não são peanuts: qualquer pessoa que já se tenha dado ao trabalho de perceber como estes índices são criados sabe que eles são tudo menos boas métricas do ímpeto reformista (ver aqui, por exemplo).

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O câmbio está vivo e recomenda-se

Isto pode parecer desinteressante e maçador (e é), mas também é muito importante. O World Economic Outlook do 2º Semestre, publicado há duas semanas pelo FMI, tem uma excelente análise empírica ao puzzle da taxa de câmbio – a tendência recente, constatada aqui e ali, para o comércio internacional se tornar menos sensível a variações cambiais.

Segundo o FMI, os rumores em torno do decoupling entre câmbio e comércio parecem ter sido largamente exagerados. As exportações e importações continuam a evoluir tal como a teoria standard prevê que evoluam num contexto de oscilação cambial, muito embora a ascensão das cadeias de valor global tenha diminuído ligeiramente a relação entre as duas variáveis. Uma curiosidade adicional – que é uma novidade em trabalhos empíricos, mas é um corolário quase inescapável de modelos teóricos: a reacção das exportações à desvalorização real é muito mais forte quando as economias estão a trabalhar longe do seu potencial. Vão lá ler, que vale a pena.

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Notas soltas do FMI

O FMI já publicou o relatório do Article IV Consultation acerca de Portugal. Apesar de o documento em si não ser muito excitante, ele vem acompanhado de um relatório mais técnico (o Selected Issues) com material que vale a pena destacar. Quanto mais não seja porque aborda, de forma rigorosa, temas que certamente não serão estranhos aos leitores deste blogue.

Primeiro: reformas estruturais. O Memorando de Entendimento assinado em 2011 comprometeu Portugal com uma série de reformas estruturais no âmbito da administração pública, mercado laboral, justiça, saúde, etc. Ao todo foram quase 150 leis e mais de 250 “outras acções” neste âmbito. Mas, apesar de haver evidência empírica a confirmar o impacto positivo das reformas estruturais na economia, também é justo dizer que esses efeitos são normalmente modestos, demoram tempo a fazer-se sentir e dependem crucialmente da forma como as alterações são implementadas – o diabo, nestas coisas, está sempre nos detalhes. Às vezes, nem sequer conseguimos determinar bem quem está a fazer mais reformas (mas vejam também isto).

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Os esbanjadores que não o eram

Os posts que escrevi acerca do polémico artigo de Vítor Bento (1 e 2) geraram algumas reacções. Mas, para meu espanto, poucas referiram aquele que era, em minha opinião, o argumento mais radical (embora não o mais central): a ideia de que os países da Zona Euro, no seu conjunto, não reagiram de forma excessivamente pró-activa à crise económica de 2008.

Isto é um pouco surpreendente, porque mesmo os maiores críticos da austeridade costumam aceitar pacificamente que a política orçamental foi, em muitos casos, levada demasiado longe. E, de facto, é isto que aparece na maior parte dos números. Só mais recentemente, com a criação de métricas orçamentais mais apuradas, é que a ideia do excesso de voluntarismo começou a ser posta em causa. Que ninguém tenha disputado isto pareceu-me estranho.

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Não é para todos

International Mensch Fund, por Paul Krugman. Sobre o FMI e o mea culpa.

The IMF has released an audit of its own response during the aftermath of the financial crisis, which concludes that it messed up by embracing fiscal austerity in 2010. It failed to understand that you need to differentiate between countries that borrow in their own currency and those that don’t; it failed to appreciate that the negative effects of fiscal contraction would be much larger in a zero lower bound environment.

Well, I could have told you all of that at the time – and in fact I did, over and over again.

But let us nonetheless celebrate the IMF’s willingness to look honestly at its own record and learn from it. Taking responsability for your acts and statements is all to rare in modern economic discourse, as the comedic evasions of the open-letter crew demonstrate. The Fund, ir turns out, is better than that, and deserves praise.