O fim da austeridade?

Este foi o tema da semana passada. O ministro puxou pelo assunto em entrevista, o Eco dedicou-lhe um fact-checking e o Negócios fez um especial sobre o assunto. Eu também meti a colher, mas o formato rígido de um impresso, sem espaço para gráficos e com caracteres fixos, não se presta a grandes pedagogias. Por isso aqui vai, em formato FAQ, uma explicação um pouco mais completa.

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Orçamento à lupa: não, não muda de figura

Não foi preciso esperar muito pelo relatório da UTAO acerca do Orçamento do Estado para 2017. O documento final só deve ser publicada nos próximos dias, mas por agora já está disponível uma versão preliminar (aqui). O diagnóstico, infelizmente, é pouco reconfortante.

Os problemas  começam desde logo na qualidade (e quantidade) da informação disponibilizada. Faltam dados da execução orçamental de 2016, números desagregados acerca da cobrança de impostos, explicações sobre algumas das rubricas com oscilações mais agudas e os valores exactos das cativações. Ao todo foram 16 questões endereçadas à Direcção-Geral do Orçamento e ao Gabinete de Planeamento, Estratégia e Relações Internacionais (GPEARI) do Ministério das Finanças que ficaram sem resposta.

Em causa estão os valores mais finos do Orçamento: não são necessários para fazer uma avaliação global da política orçamental, nem são, presumo, analisados por Bruxelas, que se concentra nos valores globais reportados de acordo com as regras do Eurostat (Contabilidade Nacional). Também por isso, não dei pela falta do reporte dos dados quando li o OE, já que do ponto de vista das metas do défice o que conta mesmo é a Contabilidade Nacional.

Mas o facto de os números não serem relevantes para Bruxelas não os torna irrelevantes para o Parlamento, que é suposto escrutinar o Orçamento. Até porque é suposto os valores em Contabilidade Nacional serem obtidos por transformação e agregação dos valores mais ‘miudinhos’, o que levanta a dúvida legítima acerca do rigor e correcção dos primeiros. Tendo isto em conta, não é de estranhar o destaque que a imprensa está a dar ao caso do “apagão” dos números do Orçamento.

O segundo problema está na coerência global do documento. O Orçamento propõe uma consolidação orçamental de 0,8% do PIB em 2017, alicerçada num ajustamento estrutural de 0,6%. Mas entre as metas que lá estão e as medidas que as suportam parece haver uma distância considerável. Quando fiz as contas – e não é fácil fazê-las, porque a metodologia seguida não é clara – concluí que as medidas discricionárias serviriam talvez para melhorar o saldo estrutural em 0,03% do PIB. Ou seja: na prática, nada mudava.

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A UTAO seguiu um atalho diferente para analisar a mesma questão. Mas a conclusão é semelhante:

Com efeito, tomando por base o cenário de políticas invariantes para 2017 do Conselho das Finanças Públicas ou da Comissão Europeia, a dimensão das medidas subjacentes ao OE/2017 poderá apontar para uma degradação ou relativa manutenção do saldo estrutural de 2016 para 2017, não respeitando portanto a restrição orçamental a que as finanças públicas portuguesas se encontram vinculadas no âmbito do ajustamento estrutural.

A diferença entre o que está corporizado em medidas e o que está enunciado como objectivo é muito substancial. Na prática podemos estar a falar de 0,6% do PIB – qualquer coisa como 1.150M€.

Não é líquido que a Comissão Europeia faça uma avaliação tão rígida das normas, e que peça explicitamente medidas adicionais desta dimensão – de resto, a própria UTAO faz essa ressalva. Mas depois da brincadeira do último orçamento, que teve efeitos reputacionaisreputacionais e materiais tão grandes,  era de evitar um remake do episódio. Não estraguem tudo quando as coisas se começam a compor.

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Investimento Público: uma comparação alternativa

Um dos exemplos mais engraçados da relevância da Economia Comportamental (sigam o link se não conhecem, e depois vão a correr ler isto) é o regime de subscrições da Economist.

Economist tem – ou tinha, há uns anos – três opções de assinatura: a) assinatura on-line por 59$; b) assinatura da versão impressa por 125$; e c) assinatura de ambas as versões por 125$. O que parece estranho, porque ninguém no seu perfeito juízo preferiria pagar 125$ para ter a versão impressa quando pode ter o pacote completo pelo mesmo montante. O que é a opção b) está ali a fazer? Será a Economist assim tão cega que não perceba que ninguém vai escolher esta opção?

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OE 2017 visto de cima

O Orçamento do Estado para 2017 foi apresentado há cinco dias, e por esta altura já se conhecem as principais opções, o detalhe de algumas medidas e até os alçapões do documento. Também já se encontram por aí boas análises sectoriais – Saúde e Educação, por exemplo – e aqueles guias muito úteis do tipo ‘o-que-muda-para-quem’ (mais as inevitáveis simulações de impostos).

Portanto, agora só falta o mais importante: uma visão global do documento, que contraste as metas com as medidas e permita perceber se os objectivos são alcançáveis. E para isso vamos ter de esperar pelo parecer do Conselho das Finanças Públicas. Até lá, aqui ficam as minhas impressões.

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Quem está a ganhar mais com o Orçamento 2016?

A maior parte das pessoas informadas sabe que a análise da execução orçamental tem uma série de subtilezas que tornam a tarefa bastante espinhosa. Por exemplo, se eu quiser saber o que é que os decisores políticos andam a fazer com o subsídio de desemprego, não chega olhar para a despesa com subsídios da Segurança Social. Estes gastos são afectados pelo stock total de desempregados, por efeitos inerciais relacionados com o número de beneficiários que atingiu o período limite de elegibilidade, pelo valor da prestação média, e por aí fora. As alterações concretas introduzidas pelo Governo são apenas um entre muitos factores.

Claro que na prática pouca gente tem estas cautelas, e não falta quem olhe para os valores brutos para extrair grandes conclusões. Já estou habituado a ver aumentos da receita fiscal a serem lidos como “enormes aumentos de impostos”, mesmo que essa subida resulte de um aumento da base tributável e se verifique ao mesmo tempo que as taxas efectivas descem. E, se toda a gente faz isto por sistema, por que é que não me posso dar a esse prazer pelo menos de vez em quando?

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E, porque a execução orçamental não é só despesa, em baixo fica também um quadro com os principais impostos. A razão pela qual a separação é importante porque os impostos indirectos (IVA, etc.) são pagos por toda a gente que consome em Portugal, ao passo que os impostos directos recaem sobretudo sobre os mais afluentes (no caso do IRS, cerca de metade das famílias não paga qualquer imposto).

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Os dados vêm da DGO. A demagogia fui eu que acrescentei – e, apesar de achar que este género de números não diz necessariamente muita coisa, a verdade é que neste caso concreto até acho que há ali qualquer coisa. Sobre isso, ler As consequências redistributivas de um Governo de Esquerda (e uma série de posts que se seguiu: 1, 2, 3, 4).

O jeito que dá ter os cofres cheios

Parece que Portugal tem uma almofada financeira para enfrentar o Brexit, segundo revelou o ministro das Finanças numa entrevista à TSF. Não há grande novidade na ‘revelação’ de Mário Centeno, mas ainda assim saúda-se a mudança de opinião quanto à importância de ter “os cofres cheios”. Parece que nestas coisas não há nada como passar da bancada da Oposição para o leme do navio.

Dito isto, vale a pena acrescentar dois comentários, um em jeito de alerta e o outro de lamento.

O primeiro é que a ideia de que os cofres estão “cheios” depende muito do termo de comparação. Neste momento há cerca de 8 mil milhões de euros em depósitos e/ou outras aplicações, mas há dois anos o valor era praticamente o dobro.

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Afinal quanta austeridade tem o PEC?

Por esta altura o leitor deve estar confuso. Segundo o Diário Económico, o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) tem cerca de 2.000 milhões de euros de nova austeridade. De acordo com o Negócios, a redução do défice em 2017 é de 1.400 milhões de euros, mas as medidas de consolidação só têm um quarto desse valor. Há uma semana, o Observador punha a fasquia nos 1.700 milhões. E, para ajuda à festa, eu próprio atirei um valor ao ar: aí uns 2,7% do PIB. Como é possível haver tantos valores para um mesmo documento?

Nalguns casos, as diferenças justificam-se porque estamos a falar de coisas diferentes. Há valores que são expressos para o ano seguinte (2017), e há números que dizem respeito a todo o período coberto pelo PEC (2016-2020). E até é possível multiplicar cada medida pelo número de anos em que ela vigora, obtendo um número muito maior. (Não, não faz muito sentido; mas os dados por vezes são apresentados num formato que convida a essa acumulação).

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Quatro anos de austeridade (mais um de virar a página) segundo o Euromod

Eu sei que a questão das consequências redistributivas do Orçamento do Estado para 2016 é chão que já deu uvas. O Orçamento foi discutido, votado e promulgado. De certeza que há coisas mais interessantes para discutir neste momento.

Por outro lado, de acordo o wordpress este continua a ser, dois meses depois da sua publicação, o post mais acedido do blogue. E como tenho andado a explorar uma base de dados especialmente vocacionada para esta questão, pensei que podia ser boa ideia partilhar alguns dos insights que ele fornece. Afinal de contas, é improvável que alguém se deixe convencer seja do que for por causa de contas feitas num blogue. Talvez alguns dos cépticos mudem de opinião se a conclusão vier de uma fonte, digamos assim, mais profissional.

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A regressividade do Orçamento (IV) – As classes mais pobres não sentiram a crise? E qual foi o papel da austeridade?

Continuando a série:

No post inicial da série escrevi que as medidas de consolidação orçamental tomadas durante o período da Troika foram “altamente progressivas”, uma afirmação que parece ter gerado estranheza. Suponho que seja porque não bate certo com a percepção subjectiva que a maioria das pessoas tem daquilo que aconteceu nos últimos anos: uma crise económica profunda, com impacto sobretudo junto das classes mais baixas.

As duas ideias, porém, não são necessariamente contraditórias. É isso que este post tenta mostrar.

Que argumentos tenho para dizer que as medidas foram progressivas? Em primeiro lugar, anecdotal evidence. Em 2011, a medida com mais impacto orçamental foi o corte salarial da função pública (ver página 44 do OE), que só afecta salários acima dos 1.500€. Em 2012, o primeiro lugar foi para a retenção dos subsídios da função pública e pensionistas (ver página 22 do OE), começando em 485€ (0% de corte) e crescendo daí para a frente. Houve alterações com impacto negativo nos rendimentos mais baixos, mas de dimensão muito mais reduzido (o leitor pode ver as medidas por si mesmo, através dos links).

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A regressividade do Orçamento (III) – contas alternativas

Continuando a série:

Uma das críticas feitas à ideia de que o OE 2016 é regressivo é que é possível encontrar outros números que chegam a conclusões opostas. Este parece ser o caso das simulações feitas pela PwC para o Jornal de Negócios, e destacadas por Ricardo Paes Mamede para dizer que “em geral, o impacto das medidas adoptadas pelo governo beneficia mais os rendimentos inferiores”.

Mas estaremos a dizer coisas assim tão afastadas? Não necessariamente. Na verdade, parece-me que estamos simplesmente a olhar para números diferentes.

Comecemos pelas simulações da PwC. Nesta compilação, o OE parece altamente progressivo. Quem está no fundo da tabela tem um ganho salarial de 25% (!). Segue-se uma melhoria menor, mas ainda expressiva, na casa dos 4,8%. A partir daí, as coisas vão oscilando entre os 0,5 e os 2,9%, sem uma tendência clara e definida.

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