Pelo cumprimento das regras

 

Nesta discussão das sanções há um argumento recorrente: se a Europa em 2003 já perdoou a Alemanha, e fechou os olhos à França, com que direito vem agora tratar Portugal e Espanha de forma diferente? A ideia é apelativa e fácil de perceber, mas não me parece que seja a melhor estratégia de combate. Pelo contrário, o cumprimento das regras devia ser uma bandeira do Governo português.

Ponham-se no lugar de quem está em Berlim. As preocupações de um alemão, justificadas ou não, são simples: garantir que não são forçados a emprestar mais dinheiro à periferia, expondo-se a um possível default. Serão as preocupações legítimas? Claro que sim: ninguém gosta de perder dinheiro. (Os lesados do BES não gostaram, e a causa parece ter gerado muita solidariedade por aí fora). E será este cenário possível? Sem dúvida: Portugal tem uma dívida pública elevada, enormes necessidades de refinanciamento (já ‘acende luzinhas’ no FMI) e, convenhamos, não parece muito preocupado com isso (ver aqui e aqui).

Continuar a ler

A Comissão converte-se

Nos últimos anos houve uma grande discussão em torno da crise do euro. De um lado do debate estavam os que defendiam a – chamemos-lhe assim – interpretação orçamental da crise: alguns Estados endividaram-se mais do que deviam, o cartão de crédito chegou ao fim a partir de 2010 e daí em diante foi preciso apertar o cinto.

Do outro lado estavam vários economistas para quem a crise tinha sido sobretudo um problema de desequilíbrios externos, provocados por enormes fluxos de capitais. Estes fluxos misturaram-se com mais dois ou três ingredientes – a ligação umbilical entre bancos e Estados, a ausência de um Banco Central capaz de (e disponível para) travar pânicos financeiros , etc.-, causando uma tempestade perfeita na Zona Euro.

Continuar a ler

Saldos primários e lições da história

Já foi divulgado o texto do Memorando de Entendimento do terceiro resgate grego. Uma boa notícia: as metas para o saldo primário foram substancialmente revistas em baixa1. Mas só de 2015 a 2017. Daí em diante, mantém-se a exigência antiga: atingir um excedente primário de 3,5% do PIB, e conservá-lo durante a esse nível durante muito, muito tempo.

Isto é possível? Muita gente pensa que não, com base no – chamemos-lhe assim – argumento histórico. Segundo este argumento, são historicamente raríssimos os casos de países que conseguiram atingir saldos primários desta dimensão, e mais raros ainda os casos de países que o fizeram de forma duradoura. Se tantas economias sólidas falharam esse objectivo, prossegue o argumento, não será certamente a Grécia a fugir à regra.

Continuar a ler

Era tudo tão, tão, tão previsível

Aparentemente, a Grécia vai mesmo ter um terceiro resgate. De acordo com uma das narrativas que agora circula, a história é simples de contar. Primeiro, os gregos elegeram um Governo mandatado para acabar com a austeridade. Depois, o resto da Zona Euro cortou o financiamento e deixou o Estado grego sem meios para pagar as contas. E posteriormente foi a vez do BCE colocar um limite à ajuda a conceder aos bancos da Grécia, obrigando à imposição de controlos de capitais. Perante a chantagem europeia, que impediu o Syriza de cumprir as suas promessas eleitorais, Tsipras não teve outra opção que não aceitar este humilhante acordo.

Descontando o framing enviesado (os votos gregos contra a austeridade são um “exercício da democracia”, os votos alemães contra um empréstimo adicional são uma perfídia), julgo que esta é uma descrição correcta dos acontecimentos. Sim, o Governo grego cedeu porque não houve, na Zona Euro ou no Banco Central Europeu, quem quisesse emprestar mais dinheiro.

Continuar a ler

Os erros do programa grego (II)

post anterior discutiu os erros da Troika na abordagem à crise da dívida pública grega. Passados cinco anos desde o início do programa, alguns desses erros parecem hoje óbvios. Mas julgo que não é só a Troika que teria feito coisas diferentes se pudesse voltar atrás no tempo. Provavelmente, o Governo grego também deve ter chegado à conclusão de que cometeu um grande erro em 2010.

Falo, claro, da decisão de permanecer no euro.

Continuar a ler

Os erros do programa grego (I)

Todos sabemos que o programa de resgate da Grécia não correu bem. Não correu bem para a Grécia, porque os custos económicos e sociais do programa foram muito superiores ao que se esperava; não correu bem para os credores, porque acabaram mesmo por ter de suportar perdas no âmbito da reestruturação de 2012; e não correu bem para a Europa e para o BCE, que tinham apostado tudo em circunscrever a crise da dívida à Grécia e acabaram com mais quatro países no colo à beira da bancarrota.

Mas até que ponto é que os erros da Troika resultaram de incompetência grosseira? É que, apesar de ser óbvio que o programa teve erros – alguns dos quais foram reconhecidos publicamente -, parece-me menos claro que estes erros fossem fáceis de detectar na altura em que o programa foi desenhado. Se for esse o caso, os erros da Troika só parecem hoje óbvios e grosseiros porque temos o benefício de olhar retrospectivamente para o caso.

Continuar a ler

A virgindade de Varoufakis

A intervenção de Yanis Varoufakis no Eurogrupo de hoje de tarde foi publicada pelo próprio no seu blogue pessoal. Em baixo cito alguns excertos, mas se não leram o texto podem dar lá um pulo e depois voltar aqui. Vale a pena ler.

I understand that there are concerns that our government may slip into a primary deficit again and that this is the reason the institutions are pressing us to accept large VAT rises and large pension cuts. While it is our view that the announcement of a viable agreement will suffice to boost economic activity sufficiently to produce a healthy primary surplus, I understand perfectly well that our creditors and partners may have cause to be sceptical to want safeguards; an insurance policy against our government’s possible slide into profligacy. This is what lies behind Dr Blanchard’s call for the Greek government to offer “truly credible measures.” So here comes an idea. A “truly credible measure”.

Instead of arguing over half a percentage point of measures (or on whether these tax measures will have to all of the parametric type or not), how about a deeper, more comprehensive, permanent reform? An automated hard deficit brake that is legislated and monitored by the independent Fiscal Council we and the institutions have already agreed upon. The Fiscal Council would monitor the state budget’s execution on a weekly basis, issue warnings if a minimum primary surplus target looks like being violated and, at some point, trigger automated across the board, horizontal, reductions in all outlays in order to prevent the slide below the pre-agreed threshold. That way a failsafe system is in place that ensures the solvency of the Greek state while the Greek government retains the policy space it needs in order to remain sovereign and able to govern within a democratic context. Consider this to be a firm proposal that our government will implement immediately after an agreement.

Há algumas partes que à primeira vista parecem discutíveis, como o trecho acerca da importância das pensões, que é bastante diferente do retrato tirado aqui. Mas, no geral, é um discurso perfeitamente razoável.

Continuar a ler

Consequências do Grexit

Até agora, toda a gente tem trabalhado no pressuposto de que a saída da Grécia euro é algo a evitar. Mas e se a saída for libertadora a longo prazo, e não a tragédia que todos – incluindo o Syriza – julgam que será? A experiência da Argentina, pelo menos, foi bem diferente do que se pensava.  Um texto de Paul Krugman:  Grexit and the morning after.

What I urge everyone to do is ask what happens if Greece is in fact pushed out of the euro – Grexit (yes, ugly word, but we’re stuck with it).

It would surely be hugly in Greece, at least at first. Right now the core of the euro believe the rest of the countries can handle it, which might be true. But bear in mind that the supposed firewall of ECB support has never actually been tested. If markets lose faith and the time for spanish or italian bond arises, will it really happen?

But the bigger question is what happens a year or two after the Grexi, where the real risk for the euro will not be that Greece will fail, but that it will succeed. Suppose that a greatly devalued new drachma brings a flood of british beer-drinkers to the Ionian Sea, and Greece starts to recover. This would greatly encourage challengers to austerity and internal devaluation.

Os esbanjadores que não o eram

Os posts que escrevi acerca do polémico artigo de Vítor Bento (1 e 2) geraram algumas reacções. Mas, para meu espanto, poucas referiram aquele que era, em minha opinião, o argumento mais radical (embora não o mais central): a ideia de que os países da Zona Euro, no seu conjunto, não reagiram de forma excessivamente pró-activa à crise económica de 2008.

Isto é um pouco surpreendente, porque mesmo os maiores críticos da austeridade costumam aceitar pacificamente que a política orçamental foi, em muitos casos, levada demasiado longe. E, de facto, é isto que aparece na maior parte dos números. Só mais recentemente, com a criação de métricas orçamentais mais apuradas, é que a ideia do excesso de voluntarismo começou a ser posta em causa. Que ninguém tenha disputado isto pareceu-me estranho.

Continuar a ler

O efeito BCE

Para quem se interessa sobre por crises financeiras, equilíbrios múltiplos, profecias auto-cumpridas e a hipótese de Paul de Grauwe: How did the ECB save the eurozone without spending a single euro, no Vox.

The German Court’s decision appears to be based on the implicit assumption that the dramatic surges in credit risk in the Euro region were exclusively a consequence of deteriorating macroeconomic fundamentals; and thus, it was not a ‘business’ of the ECB to interfere with this self-evident relationship between fundamentals and sovereign debt spreads (see De Grauwe 2014, Giavazzi et al. 2013). In other words, it was implicitly assumed that a given state of economic conditions across Eurozone countries would always correspond to a single equilibrium interest rate in the bond markets.  Under this premise, every Eurozone sovereign would “deserve” the interest rate it pays on its bonds, which would be utterly tied to its economic fundamentals. In plain words, the dramatic increase in default risk in many Eurozone countries had nothing to do with market panic or financial speculation; it was deemed by the German sceptics as the natural reflection of economic mismanagement in these countries, and hence should be corrected by better management (i.e. austerity and structural reforms).

(…)

Paul De Grauwe was right in his diagnosis of the Eurozone as a fragile region and relatedly, of the recent debt crises as having a strong element of self-fulfilling dynamics. The OMT has been an effective medicine to overcome the fragility. However, these reflections should not mask the fact that the euro is still an incomplete construct. Hopefully a day will arrive in the near future when the Eurozone is complemented with a fiscal authority with possibly centralised tax and redistributive powers so that it eventually evolves towards a currency with a single political and fiscal union.