Pelo cumprimento das regras

 

Nesta discussão das sanções há um argumento recorrente: se a Europa em 2003 já perdoou a Alemanha, e fechou os olhos à França, com que direito vem agora tratar Portugal e Espanha de forma diferente? A ideia é apelativa e fácil de perceber, mas não me parece que seja a melhor estratégia de combate. Pelo contrário, o cumprimento das regras devia ser uma bandeira do Governo português.

Ponham-se no lugar de quem está em Berlim. As preocupações de um alemão, justificadas ou não, são simples: garantir que não são forçados a emprestar mais dinheiro à periferia, expondo-se a um possível default. Serão as preocupações legítimas? Claro que sim: ninguém gosta de perder dinheiro. (Os lesados do BES não gostaram, e a causa parece ter gerado muita solidariedade por aí fora). E será este cenário possível? Sem dúvida: Portugal tem uma dívida pública elevada, enormes necessidades de refinanciamento (já ‘acende luzinhas’ no FMI) e, convenhamos, não parece muito preocupado com isso (ver aqui e aqui).

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Era tudo tão, tão, tão previsível

Aparentemente, a Grécia vai mesmo ter um terceiro resgate. De acordo com uma das narrativas que agora circula, a história é simples de contar. Primeiro, os gregos elegeram um Governo mandatado para acabar com a austeridade. Depois, o resto da Zona Euro cortou o financiamento e deixou o Estado grego sem meios para pagar as contas. E posteriormente foi a vez do BCE colocar um limite à ajuda a conceder aos bancos da Grécia, obrigando à imposição de controlos de capitais. Perante a chantagem europeia, que impediu o Syriza de cumprir as suas promessas eleitorais, Tsipras não teve outra opção que não aceitar este humilhante acordo.

Descontando o framing enviesado (os votos gregos contra a austeridade são um “exercício da democracia”, os votos alemães contra um empréstimo adicional são uma perfídia), julgo que esta é uma descrição correcta dos acontecimentos. Sim, o Governo grego cedeu porque não houve, na Zona Euro ou no Banco Central Europeu, quem quisesse emprestar mais dinheiro.

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Os erros do programa grego (II)

post anterior discutiu os erros da Troika na abordagem à crise da dívida pública grega. Passados cinco anos desde o início do programa, alguns desses erros parecem hoje óbvios. Mas julgo que não é só a Troika que teria feito coisas diferentes se pudesse voltar atrás no tempo. Provavelmente, o Governo grego também deve ter chegado à conclusão de que cometeu um grande erro em 2010.

Falo, claro, da decisão de permanecer no euro.

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Os erros do programa grego (I)

Todos sabemos que o programa de resgate da Grécia não correu bem. Não correu bem para a Grécia, porque os custos económicos e sociais do programa foram muito superiores ao que se esperava; não correu bem para os credores, porque acabaram mesmo por ter de suportar perdas no âmbito da reestruturação de 2012; e não correu bem para a Europa e para o BCE, que tinham apostado tudo em circunscrever a crise da dívida à Grécia e acabaram com mais quatro países no colo à beira da bancarrota.

Mas até que ponto é que os erros da Troika resultaram de incompetência grosseira? É que, apesar de ser óbvio que o programa teve erros – alguns dos quais foram reconhecidos publicamente -, parece-me menos claro que estes erros fossem fáceis de detectar na altura em que o programa foi desenhado. Se for esse o caso, os erros da Troika só parecem hoje óbvios e grosseiros porque temos o benefício de olhar retrospectivamente para o caso.

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A virgindade de Varoufakis

A intervenção de Yanis Varoufakis no Eurogrupo de hoje de tarde foi publicada pelo próprio no seu blogue pessoal. Em baixo cito alguns excertos, mas se não leram o texto podem dar lá um pulo e depois voltar aqui. Vale a pena ler.

I understand that there are concerns that our government may slip into a primary deficit again and that this is the reason the institutions are pressing us to accept large VAT rises and large pension cuts. While it is our view that the announcement of a viable agreement will suffice to boost economic activity sufficiently to produce a healthy primary surplus, I understand perfectly well that our creditors and partners may have cause to be sceptical to want safeguards; an insurance policy against our government’s possible slide into profligacy. This is what lies behind Dr Blanchard’s call for the Greek government to offer “truly credible measures.” So here comes an idea. A “truly credible measure”.

Instead of arguing over half a percentage point of measures (or on whether these tax measures will have to all of the parametric type or not), how about a deeper, more comprehensive, permanent reform? An automated hard deficit brake that is legislated and monitored by the independent Fiscal Council we and the institutions have already agreed upon. The Fiscal Council would monitor the state budget’s execution on a weekly basis, issue warnings if a minimum primary surplus target looks like being violated and, at some point, trigger automated across the board, horizontal, reductions in all outlays in order to prevent the slide below the pre-agreed threshold. That way a failsafe system is in place that ensures the solvency of the Greek state while the Greek government retains the policy space it needs in order to remain sovereign and able to govern within a democratic context. Consider this to be a firm proposal that our government will implement immediately after an agreement.

Há algumas partes que à primeira vista parecem discutíveis, como o trecho acerca da importância das pensões, que é bastante diferente do retrato tirado aqui. Mas, no geral, é um discurso perfeitamente razoável.

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Pior era impossível

O Presidente da República disse ontem que as regras da Zona Euro são para cumprir. É o tipo de aviso que os gregos recebem com frequência. Quem ouvir isto até fica com a ideia de que a Grécia, ao contrário dos outros escrupulosos países, não só não cumpre as regras como não está sequer interessada em cumpri-las.

Mas de que regras estamos a falar? Não é que haja falta de regras na Zona Euro: entre metas para o défice, para a dívida, para o saldo estrutural e para a evolução da despesa, há muito por onde escolher1. A questão é que, seja for a regra que se tenha em mente, é impossível isolar a Grécia como a única prevaricadora. O critério da dívida pública (60% do PIB), por exemplo, não é cumprido por quase ninguém. Quem quiser começar a purgar a Zona Euro dos seus membros incumpridores arrisca-se a acabar com uma união monetária reduzida à pujança económica de um punhado de países do Báltico (com a distinta companhia do Luxemburgo e Finlândia).

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Consequências do Grexit

Até agora, toda a gente tem trabalhado no pressuposto de que a saída da Grécia euro é algo a evitar. Mas e se a saída for libertadora a longo prazo, e não a tragédia que todos – incluindo o Syriza – julgam que será? A experiência da Argentina, pelo menos, foi bem diferente do que se pensava.  Um texto de Paul Krugman:  Grexit and the morning after.

What I urge everyone to do is ask what happens if Greece is in fact pushed out of the euro – Grexit (yes, ugly word, but we’re stuck with it).

It would surely be hugly in Greece, at least at first. Right now the core of the euro believe the rest of the countries can handle it, which might be true. But bear in mind that the supposed firewall of ECB support has never actually been tested. If markets lose faith and the time for spanish or italian bond arises, will it really happen?

But the bigger question is what happens a year or two after the Grexi, where the real risk for the euro will not be that Greece will fail, but that it will succeed. Suppose that a greatly devalued new drachma brings a flood of british beer-drinkers to the Ionian Sea, and Greece starts to recover. This would greatly encourage challengers to austerity and internal devaluation.

Narrativa orçamental da crise – conclusões abusivas

Num post ali de baixo apoiei a perspectiva de Vítor Bento de que a crise europeia foi um problema de desequilíbrios externos. Apesar de alguns reparos que recebi por e-mail, esta ideia não é nova – e, na verdade, foi mais ou menos isso que defendi durante dois anos neste blogue (basta procurar nesta tag). Este post complementa o anterior, tentando explicar por que é que esta tese não tem as implicações que normalmente lhes são atribuídas (um problema frequente, que até obrigou Vítor Bento a fazer de intérprete do seu próprio ensaio). Listo apenas os mais comuns.

#1 Se o problema não foi orçamental, a solução também não é orçamental. A austeridade era dispensável

Este é o argumento mais recorrente. É também o mais errado, e é terrivelmente frustrante que, quatro anos depois do pedido de ajuda financeira, o debate ainda não tenha saído deste nível.

A austeridade, definida de forma restrita como “medidas de consolidação orçamental”, só é uma opção para quem tem acesso a empréstimos e não precisa de conformar as suas despesas às suas receitas. Mas quem não tem financiamento – como era o caso de Portugal e do resto da periferia em 2010 e 2011 – não tem outro remédio que não seja baixar as primeiras ou aumentar as segundas. Apresentar a consolidação das contas como uma escolha errada é enganador – não porque a escolha seja certa, mas porque pura e simplesmente não é uma opção.

Que a escassez de financiamento não tenha tido origem na irresponsabilidade do Estado é um facto absolutamente irrelevante. A situação é semelhante à de um transeunte que perde o uso de uma perna durante uma troca de tiros. Certamente que não teve culpa de nada – mas não é da sua culpa, ou da falta dela, que depende a possibilidade de voltar a andar. O transeunte voltará a andar se, e só se, conseguir recuperar da lesão. Da mesma forma que a periferia só poderia evitar a consolidação se conseguisse ter acesso a mais financiamento. Não tendo, não lhe restava alternativa.

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Dívida Pública e Dívida Externa e o artigo de Vítor Bento

Vítor Bento (VB) escreveu um ensaio no Observador sobre a crise do euro. A tese principal é que esta é muito mais uma crise de balança de pagamentos do que de finanças públicas. Como seria de esperar, o texto gerou imensos comentários e revelou uma extensa legião de hermeneutas de VB.

Este post serve para fazer duas coisas. Primeiro, concordar com (quase) tudo o que VB disse, sem contudo ter a pretensão de fazer a exegese das suas palavras. Segundo, alertar para algumas das implicações que esta tese definitivamente não tem.

A tese criticada por VB – chamemos-lhe a narrativa orçamental – remonta a 2010. De acordo com esta teoria, os países periféricos foram incapazes de se adaptar aos rigores da moeda única. Perante a descida dos prémios de risco propiciada pelo euro, optaram por cavalgar as facilidades de crédito em vez de acumularem buffers para os tempos de vacas magras. Este laxismo levou, pouco a pouco, a uma lenta mas inexorável acumulação de dívida pública, que a partir de 2010 se tornou insustentável.

Esta ideia não tem, reconheça-se, uma origem especialmente refinada. Resulta apenas da observação de que a subida das taxas de juro que se verificou de 2010 em diante afectou sobretudo os países onde a dívida pública mais cresceu.

A realidade, claro, é um pouco mais complexa. Apesar de ser verdade que a dívida pública da periferia subiu imenso, essa subida nota-se sobretudo a partir de 2008, e não desde 2001. A imagem de baixo apresenta a dívida dos países periféricos comparada com a dívida alemã. E mostra como duas daquelas economias até tinham, curiosamente, uma situação orçamental mais sólida do que a alemã. A própria dívida de Portugal não era muito diferente da alemã até 2008 (Nota: os dados já incorporam todas as revisões de perímetro posteriores a 2010, por isso o argumento de que havia dívida escondida não é válido.)

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Precisamos mesmo de uma união política para salvar o euro?

Já todos ouvimos dizer que uma união monetária sem uma união política está condenada (veja-se a Zona Euro). Será mesmo assim? António Fatas argumenta em Financial crisis, the euro and the need to political union que essa conclusão não é nada óbvia, e que a crise recente da Zona Euro não tem directamente a ver com a falta de um orçamento comum. Vale a pena ler (e, se gostarem, reler o velhinho Is a monetary union without a fiscal union doomed?).

There are plenty of example where the European Union (EU) requires some serious political consensus: the EU requires partial transfers of sovereignty to a supranational authority when it comes to legislation, the EU has economic mechanisms that imply a significant transfer of income across countries (via its budget, the structural and cohesion funds). Then why is it that the EU does not require to be backed by a political union in the same way the Euro project does?

(…)

The euro facilitated flows across countries as exchange rate risks had disappeared and provided the illusion of no risk. Second, once the flows had taken place it created financial links between banks and governments across countries that made them exposed to the same risk. In addition, the ECB because its connections with banks became a central repository of that risk and a solution for some of the countries facing a credit crunch — the ECB acted like the IMF in many ways.

None of this is exactly about monetary policy, even if the ECB is involved. This is about financial risk and how financial crises have painful economic consequences. When sharing a currency the risk of financial crisis and its potential solutions bring countries and governments together in a way that a political consensus seems to be necessary because transfers might be involved and because common political solutions need to be found. And while these transfers might be smaller than the ones agreed as part of the Social and Cohesion Funds of the European Union, they come as a surprise and they are uncertain (we cannot agree ex-ante on their final size). This is what makes the Euro project a much more difficult one to manage without a sense that we all belong to the same group and are willing to work on this together.

For many, the Euro was one of the projects within the much bigger ambition behind the European Union (which came with the idea of a partial political union). But the recent financial crisis has shown that the risks associated to sharing a currency when financial and sovereign crises are possible, are a lot larger than what we thought. And these risks are much larger than the risks associated to simply sharing the same currency and the same monetary policy (yes, one interest rate does not fit all but this is not the real issue this time).