Na semana passada escrevi no JE sobre a política monetária do BCE e avancei algumas razões para o BCE ter cuidado na forma como tira o pé de acelerador. Mas uma das razões é difícil de explicar sem alguns gráficos à frente, por isso julguei que pudesse ser interessante detalhar um bocadinho a ideia. Na verdade, até desconfio que a ideia já estará na cabeça de Mario Draghi, e por isso a coisa funciona nos dois sentidos: serve de argumento para uma linha de acção e ajuda um bocadinho a interpretar o passado recente.
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O repetitivo Mario Draghi
É difícil ser banqueiro central por estes dias, sobretudo na Zona Euro. Uma boa parte do trabalho, como sabemos, é feito através da gestão de expectativas: conduzir a política monetária de modo a afectar aquilo que os agentes económicos acham que vão ser as condições financeiras de médio e longo prazo. Mas como é que se convence as pessoas de algo de que elas não queiram ser convencidas?
Em particular, o que pode fazer um banco central perante uma audiência que parece obcecada pela subida dos juros, ignorando todos os sinais que a tornam improvável e salivando de cada vez que aparece um pretexto para a justificar? Não há uma solução fácil. A opção, até agora, tem sido repetir o óbvio, na esperança de que martelando mais vezes a coisa acabe por entrar. Depois do primeiro esclarecimento, Draghi deixou hoje mais um.
Yet despite these signs of progress, it is clearly too soon to declare success. In important ways the outlook for price stability remains unchanged. In particular, while growth and employment rates have been converging upwards across the euro area, significant gaps still remain in terms of levels. In large parts of the euro area there are still substantial under-utilised resources, reflected in a negative output gap and high unemployment rates.
And this is of course crucial for our assessment of the path of inflation – namely, whether we see a sustained adjustment that would warrant a scaling back of our exceptional degree of monetary policy accommodation.
(…)
For us to be confident in the second criterion – that inflation is not just converging towards our aim, but stabilising around it – we would need to see signs of such pressures building. But there is so far scant evidence of this.
Much of the increase we have seen in headline inflation in recent months has been driven by its volatile components. Of the 1.4 percentage point rise from November last year to February this year – when inflation peaked at 2% – more than 90% was explained by energy and food price inflation. Measures of underlying inflationary dynamics, by contrast, remain subdued. One such measure, HICP excluding food and energy, has hovered around 0.9% since mid-2013 and still shows few convincing signs of an upward trend. Most alternative measures are also sluggish by historical standards and show little movement towards our aim.
An important source of subdued underlying inflation trends has been weak domestic price pressures, driven partly by subdued wage growth. Despite the domestic nature of the recovery, annual wage growth in terms of compensation per employee reached the historical low of 1.1% in the second quarter of 2016. Wage growth has since recovered somewhat – rising to 1.4% by the end of last year – but remains well below historical averages. This is where the issue of levels comes in – that is, the significant degree of labour market slack.
Draghi também toca num tópico importante, que já foi referido por Janet Yellen: a possibilidade de a própria capacidade produtiva potencial responder às condições de procura da economia. Mas em relação a isso não convém ser muito específico, porque as implicações de levar essa ideia a sério poderiam ser dramáticas:
Labour market slack will lessen as unemployment continues to fall, but it is unclear how quickly this will feed through into wage dynamics – especially if the experience of other advanced economies is instructive. A strengthening labour market may attract “marginally attached” workers back into the labour force, or encourage those “underemployed” to seek more hours, causing the effective supply of labour to rise in tandem with demand. Domestic wage pressures may therefore only materialise later in the economic expansion
Inflação: de volta à estaca zero?
É engraçado como estas coisas funcionam de forma assimétrica. Há uns tempos, o Eurostat divulgou que a inflação headline atingiu a meta do BCE (2%) e não houve jornal que não fizesse um splash com o inevitável “preços atingem meta do BCE”. Mas agora o Eurostat divulga estes números e quase ninguém dá por ela.
E isto é incompreensível, porque aquilo que o Eurostat nos diz agora é muito, muito mais relevante do que aquilo que nos disse em Fevereiro, quando a variação do índice de preços supostamente “atingiu a sua meta”. Em Fevereiro, o IPC acelerou para um nível transitoriamente elevado, devido à subida do preço dos combustíveis, desvio temporário que o BCE podia ignorar (como de facto ignorou). No mês de Março, por outro lado, a inflação core abrandou e anulou praticamente toda a convergência para o objectivo que tinha sido feita nos meses anteriores.
Ainda na cabeça de Draghi
Ali num post abaixo sugeri que, tendo em conta a experiência histórica, não é de esperar mudanças na orientação da política monetária pelo menos até ao final de 2018. Esta também foi mais ou menos a mensagem do próprio Mario Draghi na última conferência de imprensa, que usou argumentos parecidos para sossegar as almas mais inquietas.
Mas de onde vem esta ideia? Bom, não sei como é que Draghi a justifica no Conselho de Governadores. Mas, no meu caso, é muito simples: há uma relação estatística entre desemprego e inflação – e, conhecendo essa relação, é possível ‘prever’ mais ou menos onde é que o mercado laboral tem de estar para que os preços se encaminhem para onde o BCE quer que eles estejam.
E o número calculado, feitas as contas, é 8,5%. Só quando o desemprego aí chegar é que o BCE pode dormir descansado. Como estamos ainda muito longe desse nível (um high-class problem, como Draghi), não há razões para esperar subidas de juros nos próximos tempos.
Ok, agora reparem numa coisa. Na minha estimativa usei dados de 1998 a 2015 – o ano de 2016, que agora mesmo acabou, ficou fora da amostra. Mas podemos usar a estimativa que calculei na altura para aplicar à taxa de desemprego que se verificou em 2016. Calma, não se confundam. O objectivo é perceber qual é a taxa de inflação que o desemprego que se verificou em 2016 nos devia levar a esperar, tendo em conta a relação histórica entre uma e outra.
E a resposta é: 1,14%.
Mas foi esta a inflação subjacente reportada pelo Eurostat? Nope. A inflação medida ficou abaixo dessa estimativa: rondou os 0,8%. A inflação subiu muito menos do que seria de esperar.
O que significa isto? Que a descida do desemprego está a ser menos eficaz do que se esperava para empurrar para cima a inflação. Em suma, o BCE terá de fazer mais do que se pensava – ou o mesmo, mas durante mais tempo – para cumprir a sua meta estatutária. Se a inflação está mesmo a ancorar-se num valor mais baixo, aquela minha ideia de que lá para 2019 os juros sobem pode ter de ser repensada.
Parar com a paranóia da inflação 2.0, versão Mario Draghi
Nas últimas semanas houve algum burburinho em torno da acção futura do Banco Central Europeu, sobretudo depois da conferência de imprensa de Dezembro e da subida da inflação na Zona Euro. A primeira foi lida por quase toda a gente (FT incluído) como um sinal de que o Quantitative Easing está perto do fim; e a segunda ofereceu um fundamento mais objectivo às intenções que, dias antes, todos tinham lido nas palavras de Draghi, confirmando assim as impressões iniciais.
Quem não ficou impressionado com a exegese feita pela imprensa económica foi o próprio Mario Draghi, que ontem veio – digamos assim – ‘clarificar’ melhor aquilo que que queria dizer. E a explicação foi tão útil quanto necessária, porque os títulos escolhidos pela comunicação social foram bastante diferentes dos que foram feitos em Dezembro:
Draghi: alemães têm de ter paciência, estímulos estão para ficar (Negócios)
BCE mantém juros. Admite alargar compras (ECO)
ECB: Draghi signals stimulus commitment (Bloomberg)
Mais interessante foi a justificação dada por Draghi para fundamentar a necessidade de continuar com uma política expansionista. Da peça do Negócios (que é, by the way, a mais completa acerca do tema):
O presidente do BCE desvalorizou o recente aumento da inflação na Zona Euro, que diz reflectir “principalmente o forte aumento na inflação da energia, enquanto não há sinais de uma tendência crescente convincente na inflação subjacente” (…)
O presidente do BCE explicitou as quatro características que têm de estar reunidas para o BCE identificar uma recuperação sustentada da inflação que motive uma alteração da política monetária: em primeiro lugar, o que importa para o banco central é a perspectiva da inflação no médio prazo; em segundo lugar, a trajectória tem traduzir uma convergência duradoura e não transitória para a meta de 2%; em terceiro lugar, a recuperação tem de ser auto-sustentável – “ou seja, tem de se manter mesmo quando o nosso apoio monetário extraordinário já não estiver no terreno”– ; e, finalmente, a inflação tem de ser definida para a Zona Euro como um todo.
Ok, isto pode ser interessante, mas não é surpreendente. Pelo menos para quem tem seguido a longa enfastiante série sobre política monetária do BCE (1, 2, 3, 4). A justificação de Draghi não é muito diferente do que escrevi em Dezembro, quando o Eurostat anunciou a espectacular subida da inflação:
(…) seria muito sinal se o BCE se sentisse reconfortado com estes números. Digo isto porque o mandato do BCE é colocar a inflação nos 2% no médio prazo. O objectivo não é atingir esta meta à boleia de factores transitórios, como uma subida do IVA, alteração de preços administrados ou oscilações no preço das commodities, porque todos estes factores são por natureza temporários – e, uma vez desvanecido o choque inicial, deixam de exercer influência sobre a inflação, ‘puxando-a’ para baixo
(…) Ou seja, o BCE deve garantir uma inflação sustentadamente em torno dos 2%, de maneira a ancorar as expectativas dos agentes económicos em torno desta meta. E para avaliar esta ancoragem deve-se olhar não para a inflação headline mas para a inflação core, que põe de parte os factores mais voláteis e com menos inércia, como é o caso da energia. E essa métrica, disponível no site do BCE, não é especialmente animadora.
Não era difícil prever isto em Dezembro. A verdade é que o BCE já passou por esta situação em 2011, e tomou a decisão errada: ignorou a evolução da inflação subjacente e subiu a taxa de juro – para apenas uns meses depois ser forçado a emendar a mão. Era de esperar que tivesse aprendido com a experiência.
Parar com a paranóia da inflação
A inflação deu um salto considerável no final do ano passado. Em Novembro, o Índice de Preços da Zona Euro estava a crescer apenas 0,6%. Em Dezembro, passou para 1,1%. Ou, como escreve o Negócios, de forma ainda mais bombástica, «A inflação quase duplica na Zona Euro».
Uma pessoa desatenta pode pensar que há aqui alguma surpresa. E se estiver muito desatenta pode até imaginar que os dados de Dezembro estão a fazer a cabeça em água a Draghi e ao resto do Conselho de Governadores do BCE, entalados entre um programa de estímulos e uma inflação em roda livre.
Claro que nenhum dos leitores está desatento a este ponto. Mas, se estiver, então vale a pena notar duas coisas.
Primeiro, as expectativas de inflação do BCE, que estão subjacentes à manutenção prolongada do programa de Quantitative Easing (e, por maioria de razão, à política de juros zero), são perfeitamente consistentes com estes dados. Na verdade, o BCE prevê uma taxa de inflação de 1,3% em 2017. A aceleração do IPC não é uma novidade – é um dado adquirido. Como Draghi revelou na última conferência de imprensa:
This pattern is also reflected in the December 2016 Eurosystem staff macroeconomic projections for the euro area, which foresee annual HICP inflation at 0.2% in 2016, 1.3% in 2017, 1.5% in 2018 and 1.7% in 2019. By comparison with the September 2016 ECB staff macroeconomic projections, the outlook for headline HICP inflation is broadly unchanged.
Segundo, a aceleração súbita da inflação não tem nada que ver com dinâmicas geradas por pressões salariais ou restrições de oferta – o tipo de factores que levam os bancos centrais a actuar para, como dizia McChesney, tirar o álcool da sala quando a festa começa a aquecer.
Não: a subida dos preços resulta totalmente das oscilações dos preços energéticos, que têm muito pouco que ver com a actividade económica na Zona Euro. O quadro de baixo, retirado do Eurostat, mostra isso mesmo. A variação dos preços energéticos passou de -1,1% para +2,5%. Excluindo esse factor, a inflação (core inflation) passou de 0,8 para 1%.
Ou seja, está mais ou menos no mesmo patamar em que tem andado ao longo do último ano e meio.
P.S.- Ler também Inflação a subir. Ou a descer?
Inflação atinge os 6%
Calma, não é essa inflação. A inflação medida pelo Eurostat está mesmo abaixo da meta, a rondar 0s 0,5%. E com tendência para descer – pelo menos se olharmos para onde devemos olhar, que é para a core inflation.
Mas se perguntarem a um europeu qual é a sua percepção, então 6% é provavelmente a resposta que vão obter. A Comissão Europeia fez um estudo acerca de percepções e realidade, e concluiu que, apesar de não passaram completamente ao lado dos preços que pagam nas lojas, os europeus avaliam a inflação em níveis sistematicamente acima dos valores registados nos dados oficiais.
Inflação a subir. Ou a descer?
A inflação está a subir na Zona Euro. O Eurostat divulgou dados esta semana e ficámos a saber que entre Setembro e Outubro a inflação relevante (HIPC) acelerou de 0,4 para 0,5%.
Poucas pessoas embandeiraram em arco, porque 0,5% ainda está longe, muito longe, da meta dos 2%. Mas, no geral, o tom foi de consolação: estamos longe, mas estamos a aproximar-nos. E o que conta é a tendência. O i, por exemplo, escreve que:
Os números revelados ontem são (sic) proporcionando um pequeno conforto para o Banco Central Europeu (BCE), que tem uma preocupação permanente com a inflação muito baixa no bloco dos países que partilham a moeda única.
Mas seria muito sinal se o BCE se sentisse reconfortado com estes números. Isso significaria que está mais preocupado com a avaliação que os observadores desatentos fazem do seu trabalho do que com o cumprimento escrupuloso e efectivo do seu mandato.
Juros baixos, juros baixos até perder de vista
O World Economic Outlook de Outubro está aí, e a julgar pelo que li o Departamento de Investigação não se ressentiu da saída de Blanchard. O WEO continua tão útil e rigoroso como nos últimos anos, e tem – para além das habituais previsões macroeconómicas – um interessantíssimo estudo acerca da desinflação em curso nas economias avançadas: Global desinflation in an era of constrained monetary policy.
Não vou resumir aqui o estudo, que já inclui um sumário executivo muito completo para os mais preguiçosos. Mas queria dar nota de um gráfico impressionante, que compila as expectativas de mercado relativamente às taxas directoras dos principais bancos centrais e que mostra… bom, que mostra isto:
O primeiro quadro mostra a revisão das expectativas de mercado em relação ao comportamento da Reserva Federal. Em Setembro de 2013, o consenso apontava para a normalização rápida da Fed funds rate entre 2015 e 2016. Hoje, o mercado espera uma subida muito mais suave – apesar de a própria Fed anunciar que a coisa vai ser mais brusca -, com a taxa directora a subir meio ponto percentual ao longo dos próximos três anos.
O segundo quadro compõe o ramalhete com as perspectivas actuais para as taxas do Bank of England e do BCE. O mercado espera que estas taxas de juro – negativas na Zona Euro e nos 0.25% no Reino Unido se mantenham a este nível até ao final da década.
Agora parem um pouco para pensar o que significa isto. Mesmo com a inflação baixa, entre 0,5 e 1,5%, estes valores representam taxas de juro reais negativas. Numa situação normal, taxas desta ordem de magnitude deveriam dar um impulso estrondoso ao investimento. Será assim tão difícil encontrar projectos que passem numa análise de custo-benefício em que a taxa de referência é negativa1? Mas qualquer pessoa que não tenha passado os últimos quatro anos em Marte sabe que prática, neste caso, não está a ser simpática para teoria.
E isto faz-me pensar no que dizia o Antonio Fatas há uns meses, num daqueles posts que o pessoal da macroeconomia devia mesmo, mesmo, mesmo ir ler. O post aborda as taxas de juro cobradas a soberanos, mas a ideia também é válida para as expectativas do mercado em relação às taxas directoras.
When 30 or even 50 year interest rates are negative or close to zero something is not right. Either this is the end of growth as we know it or the start of a 30-year period of extremely low inflation combined with deflation or our expectations are seriously off and we are up for an interesting surprise.
1 E sim, eu sei que a taxa directora não é igual à taxa de mercado cobrada à maioria das empresas, mas o princípio qualitativo é semelhante. E, nalguns casos (Alemanha, por exemplo), a questão é a mesma até em termos quantitativos: a taxa de juro real relevante é negativa.
A inflação é um imposto escondido?
Este post não vem na sequência de nenhum problema premente em particular – aliás, com a inflação nos 0,2%, duvido que haja muita gente a perder o sono com isto. Mas a propósito dos 30 anos da adesão de Portugal à CEE falou-se imenso acerca da inflação em 1986 (20%) e de como hoje em dia estamos muito melhor por causa da inflação “perto, mas abaixo” dos 2% garantida pelo BCE.
O que é provavelmente verdade. Mas não exactamente pelas razões que se costuma invocar.
A forma convencional de ver a inflação é como um imposto não legislado. Se os preços sobem muito, a inflação é alta e perdemos poder de compra. Se os preços não sobem, ou sobem menos, a inflação é baixa e o poder de compra é preservado. Do ponto de vista dos consumidores, o processo parece simples e intutivo. A inflação é obviamente uma coisa má.