Falsos benefícios de uma inflação mais alta

Há óptimos argumentos para o BCE fazer tudo o que pode para aumentar a procura agregada na Zona Euro. A inflação, mesmo descontada da componente mais volátil, está abaixo da meta. O output gap para o conjunto da economia europeia é consideravelmente negativo, rondando agora os 3%. Tudo aponta no sentido de uma política monetária mais agressiva (mesmo que a eficácia dos instrumentos ainda disponíveis seja, aparentemente, algo limitada).

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Possivelmente, o BCE deveria não apenas empurrar a inflação para os 2% mas até procurar activamente uma meta mais elevada – digamos, em torno dos 4%. Esta sugestão de Olivier Blanchard foi levada a sério por muitos economistas, mas os benefícios que esta política teria para os países da periferia são bastante menos impressionantes (ou pelo menos mais subtis) do que aquilo que é sugerido por vários comentadores. Em baixo discuto as três principais vantagens.

O primeiro argumento, que é também o mais utilizado, é que uma inflação mais elevada permitiria erodir mais rapidamente o valor real da dívida nacional. O mecanismo é simples. A inflação aumenta os preços e, consequentemente, o valor do PIB nominal – mas não afecta a dívida, cujo valor está fixado à partida. Assim, a dívida tornar-se-ia menor relativamente à base da qual são extraídos os recursos para a pagar.

Há duas ressalvas importantes a fazer. A primeira é que a inflação afecta de facto a dívida. Não afecta o valor nominal da dívida, mas afecta os juros que a ela estão associados. Se as expectativas de inflação são revistas em alta, o refinanciamento da dívida será naturalmente feito com juros mais elevados (o chamado efeito Fisher).

A segunda ressalva é que a erosão da dívida só se torna de facto relevante para taxas de inflação bastante elevadas. Imagine-se uma economia com uma dívida de 120% do PIB, défice de 0% e crescimento nominal de 4%. Esta economia chegará a 2030 com uma dívida de 61% do PIB – ou 46%, caso o crescimento nominal passe a 6%. Estamos a falar de uma diferença de 15 pontos percentuais, num horizonte de quase 20 anos. Não é nenhuma bala de prata.

Em suma, uma erosão substancial da dívida só aconteceria se i) a subida da inflação fosse bem mais violenta do que os modestos 4% propostos por Blanchard; ii) a maturidade da dívida fosse, em média, muito longa, de maneira a fugir ao efeito Fisher. Nos moldes em que é proposta, a revisão do target do BCE terá um impacto diminuto no stock real de dívida.

O segundo argumento é que mais inflação permite ultrapassar os problemas associados à rigidez nominal. Um exemplo concreto. Os salários e preços dos portugueses têm de se tornar mais competitivos relativamente aos salários e preços alemães, de maneira a que as exportações nacionais ganhem quota de mercado e a produção nacional seja capaz de competir melhor com as exportações alemãs (ver discussão aqui).

A rigidez nominal implica, porém, que não seja possível reduzir rápida e eficazmente os preços e salários. Enquanto esse ajustamento não se processa, o equilíbrio será restabelecido através da quantidade e não do preço – desemprego e recessão em Portugal. Uma inflação mais alta permitiria a Portugal limitar-se a não aumentar os seus preços para que os ganhos de competitividade acabassem por se materializar da mesma forma. A ideia central é que é mais fácil restabelecer a competitividade através de uma inflação elevada lá fora do que através de uma inflação negativa cá dentro.

Mas note-se que por detrás da linguagem técnica e de mecânica macroeconómica está uma ideia simples: é necessário reduzir mais rápido os salários reais. O facto de muitos dos defensores de uma inflação mais alta serem simultaneamente opositores de cortes salariais e reformas estruturais nos mercados de produto sugere que não terão percebido completamente o objectivo da política que defendem.

Finalmente, e em terceiro lugar, uma inflação mais elevada permitira reduzir a taxa de juro real para o conjunto da Zona Euro. Neste momento, o BCE tem as mãos praticamente atadas pelo facto de a sua taxa nominal não poder descer abaixo de 0%. Mas é sempre possível aumentar a inflação e tornar a taxa real (tx. nominal – inflação esperada) mais baixa. Este pode ser um forte impulso à procura agregada na Zona Euro.

Porém, é importante notar que as empresas portuguesas não estão limitadas pela taxa de juro de 0%. A fragmentação financeira da Zona Euro conduziu a condições de financiamento muito díspares e, neste momento, a banca financia-se a juros bastante superiores aos do resto da Europa, repassando esses custos às empresas. Ou seja, Portugal não precisa de uma inflação mais alta para tornar a taxa de juro real mais baixa – basta, pura e simplesmente, acabar com as diferentes condições de financiamento na união monetária.

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4 comments on “Falsos benefícios de uma inflação mais alta

  1. Concordo parcialmente com a sua conclusão. E digo, parcialmente, porque se a existência de condições de financiamento semelhantes em toda a Zona Euro é condição necessária para a recuperação da competitividade das economias da periferia, não é suficiente para a inflexão do crescimento da dívida pública portuguesa enquanto a taxa de crescimento se situar aquém da taxa nominal de juro. Mas como para os alemães a perspectiva da inflação é um pavor pavovliano e a união monetária uma cenoura em deslocação permanente, só resta uma solução para o imbróglio em que os bancos, nacionais e estrangeiros, que importaram/exportaram crédito à rédea solta, nos colocaram: o alongamento dos prazos de reembolso a perder de vista para, segundo proposta mais citada, de 60% da dívida/PIB.

    De outro modo, não vejo saída. E v. Pedro?

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  2. “Mas note-se que por detrás da linguagem técnica e de mecânica macroeconómica está uma ideia simples: é necessário reduzir mais rápido os salários reais. ”

    Não estou totalmente certo que a ideia seja forçosamente essa – penso que a ideia é sobretudo que é preciso reduzir o rácio [salários nominais em Portugal]/[salários nominais no conjunto da zona euro], não principalmente o rácio [salários nominais em Portugal]/[preços nominais em Portugal] (=salários reais em Portugal)

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  3. Miguel,

    Concordo, a minha formulação não é a melhor. Eu reformularia a questão nestes termos: é preciso reduzir os preços finais da economia portuguesa relativamente aos preços finais no conjunto da Zona Euro. Na medida em que esta descida de preços só será alcançada através de descida de salários, a ‘desvalorização interna’ estará inevitavelmente associada a uma redução do poder de compra salarial, por via do aumento (real) do preço dos bens importados.

    Rui Fonseca,

    O alongamento de prazos, por si mesmo, não tem nenhuma vantagem do ponto de vista da sustentabilidade da dívida: não afecta o crescimento nominal, o saldo primário ou a taxa de juro. O seu efeito é meramente indirecto: por reduzir as necessidades brutas de financiamento, reduz as exigências feitas ao mercado e permitirá, eventualmente, juros mais baixos nas novas emissões. Mas se a ideia é garantir juros mais baixos, um programa cautelar é um melhor mecanismo do que qualquer prolongamento de maturidades.

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  4. Quando refiro o alongamento dos prazos tenho em mente um alongamento a perder de vista a juros comportáveis pela economia portuguesa. Um programa cautelar pode influenciar a descida dos juros até níveis suportáveis permitindo a inflexão do crescimento da divida? Depende do crescimento que vier a observar-se. Mas nem o potencial de crescimento interno nem a envolvente externa permitem realisticamente expectativas nesse sentido.

    Resumindo: A inflacao (coloque acento e dedilha sff, que este teclado nao tem)
    nao sendo uma boa solução a longo prazo ajuda muito se a taxa de juro for ajustada em conformidade.

    Mas, como dizia o O’ Neil: Uma coisa pensa o cavalo, outra quem esta a monta-lo.

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