O Banco de Portugal divulgou os números da Balança de Pagamentos (BoP) para Junho. A BOP agrega o conjunto das estatísticas que analisam as relações económicas de Portugal com o exterior (o “resto do mundo”), e servem, por exemplo, para calcular o valor do défice externo ou o ritmo de acumulação de dívida da economia. Alguns dos títulos publicados foram, por exemplo:
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O que os empresários dizem
O Global Competitiveness Report 2016/2017 já saiu, e como é habitual gerou-se algum zum-zum acerca do que o documento diz ou não diz (nota para iniciantes: a posição relativa de Portugal piorou em 2016. Por isso conseguem imaginar a natureza do zum-zum).
Eu não queria discutir as principais conclusões do relatório. Mas quero deixar uma nota acerca deste tipo de documentos e lançar um pequeno alerta relativamente ao que se pode extrair dali. Vou pegar num exemplo catchy para ser polémico, chamar leitores e inverter a inexorável tendência de diminuição do meu número de leitores; mas acreditem quando vos digo que o que escrevo vale para uma boa parte daquilo que se lê naquelas páginas.
Adiante, então. Uma das partes mais citadas do relatório é a que mostra os principais entraves a negócios. Em Portugal, são os seguintes:
A recuperação mais lenta de sempre?
Será esta a recuperação económica mais lenta de sempre? No seu último Boletim Económico, o Banco de Portugal actualiza um exercício que tem vindo a fazer ao longo dos últimos anos – comparar o perfil do Produto depois de este ‘bater no fundo’ – e a resposta parece ser… sim.
Segundo as contas do Bdp, de todas as recessões por que já passámos após o 25 de Abril, a última foi a mais traumática. «Dois anos após o início da recuperação atual, o PIB real cresceu 2,4% em termos acumulados, o que se assemelha à recuperação de 2003 (2,6%) mas contrasta com as recuperações iniciadas em 1993 e 1984 (3,8 e 11,2 por cento, respetivamente)», lê-se no relatório.
Esta análise de ‘peak and through’ é muito comum, mas no caso de Portugal tem alguns problemas – pelo menos, se a ideia for tomar o pulso ao vigor das recuperações.
Portugal pagava mesmo o dobro de juros sem a ajuda do BCE?
O Banco de Portugal fez um estudo (Boletim Económico, página 33) acerca do impacto financeiro das medidas não convencionais do BCE (UMP, na sigla inglesa). A análise teve grande impacto na imprensa, com vários jornais a puxarem para título (1, 2, 3) a conclusão que também me chamou mais a atenção: sem as ‘ajudas’ do BCE, Portugal pagaria cerca de 5% na emissão de dívida a 10 anos – mais ou menos o dobro da taxa que paga hoje.
Mas depois de ler o estudo confesso que fiquei com algumas dúvidas, seja acerca da conclusão, seja acerca das suas supostas implicações. Deixo aqui algumas. Quem quiser continuar a ler, prossiga por sua conta e risco.
Sintam o crédito a crescer
Ou talvez não. Bom, pelo menos o Banco de Portugal não parece muito preocupado. Entre outras questões, devidamente explicadas a partir da página 22 do último Boletim Económico, porque o crédito não está a crescer como se diz. É tudo um simples – mas enorme – efeito base. Onde é que já ouvimos isto antes?
O misterioso “contributo da procura externa líquida”
Alerta prévio: isto é do mais desinteressante que se pode escrever
A maior parte das previsões macroeconómicas contém projecções para os principais indicadores: PIB e respectivos componentes, inflação, desemprego e por aí fora. Mas alguns quadros vão mais longe. E identificam também a origem do crescimento económico, separando o contributo da procura interna do contributo da procura externa líquida.
Estas linhas costumam despertar muito pouco interesse por parte dos analistas. Desde há um ano para cá, contudo, muita gente começou a estar atenta a esta métrica, notando que o regresso da economia ao crescimento está muito mais apoiado na procura interna do que na procura externa líquida. A questão ganhou especial relevância no contexto da eterna discussão acerca da sustentabilidade do saldo externo português (1, 2, 3, 4, 5): se o crescimento vinha da procura externa, então a retoma estava, obviamente, a pôr em causa este saldo.
Infelizmente, este é apenas (mais) um daqueles assuntos em que o mau domínio da Contabilidade Nacional conduz facilmente a conclusões erradas. Na verdade, nem os contributos têm grandes implicações para o défice externo nem eles permitem dizer aquilo que normalmente se lhes pede que digam. Os parágrafos seguintes são necessariamente técnicos.
Desemprego finalmente explicado
No final de 2014 perdi algum tempo a tentar perceber a origem da surpreendente descida a pique do desemprego (tão surpreendente que gerou as mais variadas teorias da conspiração). Uma explicação simples que me ocorreu é que tudo poderia resultar de um mero ‘regresso ao normal’.
A ideia era simples. Apesar de hoje não se falar muito disso, desde 2010 a 2012 que o desemprego aumentou muito mais do que o previsto pela Troika (e por toda a gente, já agora) e do que seria justificado pela dimensão da recessão. O Governo publicou um relatório sobre o assunto, cuja referência não consegui localizar, e o Banco de Portugal também se interessou pelo assunto.
Seria portanto plausível que os desenvolvimentos recentes do mercado laboral não representassem mais do que a convergência da taxa de desemprego para os valores que seriam previsíveis tendo em conta os fundamentais da economia. Deste ponto de vista, a dinâmica observada seria apenas uma correcção de um distúrbio anterior.
Obviamente, a resposta obrigava a colocar uma nova pergunta: por que razão tinha o desemprego subido tanto antes de 2013? Mas julgo que este é o tipo de quebra estrutural para a qual não seria difícil encontrar explicações plausíveis – entre a possibilidade de saída do euro até às expectativas de uma espiral recessiva haveria muito por onde escolher. Transferir a pergunta de um sítio para outro não seria problemático, desde que a transferência se faça para um local onde é mais fácil encontrar respostas.
Um dos argumentos era o quadro de baixo, que estima uma relação entre a variação do PIB e a variação do emprego para o período de 2000 a 2008. Os pontos a verde são os trimestres de ‘recuperação do emprego’ (meados de 2013 em diante); estes pontos ficam acima da recta, o que significa que o emprego cresceu mais do que seria esperado. Mas isto é pouco surpreendente tendo em conta que, no período anterior (2009 a meados de 2013) o emprego também caiu muito mais do que era previsto.
Uma pergunta sobre o BES
A decisão final relativamente ao BES só foi anunciada ontem, e por isso é natural que ainda haja muitas questões por esclarecer. A maior parte das respostas já se pode encontrar numa FAQ bastante útil que o Banco de Portugal publicou hoje. Ainda assim, julgo que há algumas pontas soltas.
Pessoalmente, o que me faz mais confusão é a natureza da intervenção do Estado no BES, feita através do Fundo de Resolução. Se bem percebi, a partir de hoje o FR passa a ser o novo accionista do BES (agora Novo Banco), subscrevendo o seu capital com recursos próprios e um empréstimo de 4,4 mil milhões de euros feito pelo próprio Estado. De seguida, tentará vender o BES a terceiros e utilizar os proveitos da operação para amortizar o crédito público. Caso o dinheiro não chegue, o FR terá de cobrir o diferencial. Parece simples e seguro.
A minha questão: dada a natureza fundamentalmente híbrida do Fundo de Resolução – um fundo de capital privado mas gerido por uma entidade pública – o que é que significa exactamente dizer que é o FR que assume as perdas? Isto é: se todo o seu capital já foi consumido a subscrever acções do Novo Banco, de onde virá o dinheiro para honrar a garantia – caso tal venha a ser necessário – de que não há custos para o contribuinte?
Imagine-se o caso concreto em que o Novo Banco é vendido por 4 mil milhões de euros. Neste cenário, o dinheiro da venda não chega para amortizar o empréstimo público e o Estado fica, para todos os efeitos, com a única opção de fazer um rollover (obviamente não voluntário) do empréstimo. O FR pode fazer a amortização à medida que as contribuições dos bancos forem entrando, mas tendo em conta o longuíssimo período de tempo que seria necessário esperar para devolver a totalidade dos fundos, parece-me difícil argumentar, neste caso, que não haveria custos para o contribuinte.
Talvez o FR possa forçar os seus ‘contribuintes’ (isto é, os bancos) a aumentar a sua contribuição, de forma a acelerar (ou garantir, até?) a amortização do empréstimo. Mas não sei se isto é sequer possível. E o facto de não se ter ouvido protestos do sector bancário também sugere que isto não é uma hipótese credível.
A questão de fundo é que o FR é uma entidade bastante particular, de natureza pública mas com recursos privados. E não é perfeitamente claro quem é que seria chamado a assumir os seus compromissos. Até agora a questão não se colocou porque o FR se limitou à gestão de activos, mas a partir de agora também há passivos a entrar na equação. Ou pelo menos não é claro para mim – mas admito que me esteja a escapar alguma coisa.
Leitura recomendada
O Relatório Anual do Conselho de Administração do Banco de Portugal.
O relatório faz uma análise apurada dos últimos quinze anos da economia portuguesa, disseca o actual período de ajustamento e perspectiva a próxima década, no contexto dos compromissos assumidos no Tratado Orçamental.
Alguns tópicos especialmente importantes cobertos pelo documento: i) a acumulação de desequilíbrios externos após a criação da moeda única; ii) o problema do fraco crescimento económico de 2000 em diante, e as origens da divergência face ao resto da união monetária; iii) a crise actual como um problema clássico de sudden stops, e não (apenas) um problema de dívida pública; iv) comparação dos vários períodos de ajustamento económico e financeiro; v) o enquadramento externo adverso, condicionantes e resultados do ajustamento económico em curso; vi) uma antecipação das próximas décadas.
Sobre os pontos ii) e v), alguns trechos a reter:
O diferencial de rendimento entre Portugal e a média europeia é fundamentalmente explicado por diferenças no nível de capital humano e na produtividade total de fatores. Estas conclusões confirmam os resultados reportados em (Reis 2011). Nestas duas dimensões, o diferencial de Portugal face à média europeia não se alterou substancialmente nas duas últimas décadas. Em particular, o resultado para o nível relativo de capital humano revela que os progressos realizados em Portugal nas décadas recentes – e refletidos no importante contributo para o crescimento visível no gráfico foram próximos dos observados na média dos países europeus.
(…)
No desenho original do Programa, o cenário macroeconómico apontava para um forte crescimento da procura externa dirigida à economia portuguesa, em linha com a média observada antes da eclosão da crise financeira global. Esta projeção veio a revelar-se infundada. De facto, na sequência da crise financeira, a recuperação das economias desenvolvidas foi claramente mais fraca que a sugerida pela evidência passada e o ritmo de crescimento do comércio a nível global foi também mais mitigado do que o observado na década anterior à crise (…) Deste modo, enquanto no início do Programa se projetava um crescimento real acumulado da procura externa de cerca de 20 por cento no triénio 2011-13, o crescimento observado foi de apenas 5,5 por cento. Esta evolução teve implicações muito significativas nas projeções macroeconómicas. De facto, assumindo a materialização da procura externa considerada inicialmente no Programa, bem como dos ganhos de quota de mercado observados, o modelo macroeconométrico habitualmente utilizado nas projeções do Banco de Portugal sugere que a queda acumulada do PIB nestes três anos seria mitigada em cerca de 3 p.p. e a queda do emprego em cerca de 1.2 p.p.. Neste cenário contrafactual, a correção dos desequilíbrios nas finanças públicas e nas contas externas seria igualmente facilitada. A evolução adversa no enquadramento externo explica assim uma parte substancial dos erros de projeção macroeconómica verificados ao longo do Programa. Outra parte não negligenciável decorreu do esforço adicional de consolidação orçamental.
Impostos e crescimento (e o efeito Tribunal Constitucional revisitado)
O relatório trimestral do Banco de Portugal, publicado hoje, tem um estudo excelente acerca do impacto da política fiscal via impostos no crescimento do PIB: Efeitos macroeconómicos das alterações da legislação fiscal em Portugal.
O estudo é inovador porque utiliza uma abordagem diferente da habitual para identificar os choques fiscais. A metodologia típica, pelo menos desde Blanchard, consiste em analisar as séries de impostos e identificar como choques todos os períodos em que a receita cresce (ou cai) de uma forma que não é explicada pelo comportamento da actividade económica. Neste estudo, que segue uma linha que tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos (ver aqui e no Vox, por exemplo), os investigadores consultam documentos legislativos para identificar os momentos em que houve alterações fiscais efectivas – a chamada ‘abordagem narrativa’.
O principal resultado é que o multiplicador associado aos impostos é significativamente revisto em alta face aos valores consideravelmente conservadores a que os mesmos autores chegaram, utilizando a metodologia habitual (ver aqui). Estes resultados são robustos à introdução de uma série de controlos importantes, como a neutralização do ruído introduzido por choques de despesa. E um subproduto feliz deste estudo é a construção de uma série temporal com quase 20 anos para choques de impostos, algo que promete ser útil para os investigadores de política orçamental (sobretudo para um país, como Portugal, em que as alterações fiscais estão espalhadas por dezenas de diplomas desconexos, sem que haja uma base de dados uniforme).
Mas as conclusões dos economistas do Banco de Portugal referem outro ponto importante. Que passa relativamente despercebido no paper mas que tem relevância para outra discussão. É o seguinte (bolds meus):
A construção da série principal de choques parte do pressuposto de que o momento relevante para medir os efeitos macroeconómicos da tributação é o do seu pagamento. No entanto, se o comportamento dos consumidores fosse principalmente influenciado pelas suas expectativas quanto ao rendimento permanente, o momento relevante seria, ao invés, quando estes se apercebessem da alteração do seu rendimento disponível futuro. Neste caso, o seu comportamento modificar-se-ia logo no momento do anúncio credível da medida (…) Esta evidência reforça a hipótese de o produto responder às alterações fiscais no momento de implementação das mesmas. A resposta do PIB à série de choques de acordo com as obrigações fiscais, mantendo constante a série baseada no momento do pagamento, é inicialmente nula e torna-se positiva, embora ténue, após cerca de um ano. Como referido, a abordagem das obrigações fiscais é comparativamente mais adequada para medir os efeitos na economia que operam por via das expectativas. A evidência não é assim consistente com a teoria do rendimento permanente.
Este trecho (que omite, por questões de espaço, o processo através do qual os economistas chegaram a esta conclusão) quer simplesmente dizer que, na amostra considerada, alterações de impostos parecem ter um impacto positivo na economia sobretudo a partir do momento em que afectam de facto o rendimento disponível – mesmo que já sejam previamente conhecidas.
Esta conclusão é relevante para a questão do efectivo impacto da decisão do Tribunal Constitucional de impor a devolução dos subsídios. Recorde-se que aquando da publicação dos números do PIB para o segundo trimestre, pelo INE, houve um debate com algum alcance em relação à possibilidade de ter sido a devolução dos subsídios a empurrar a actividade.
Os principais argumentos estão neste post, e por isso farei apenas uma breve recapitulação: a) a decisão do TC, nos moldes em que o Governo a interpretou, levará a que o grosso do impacto da devolução dos subsídios se concentre no terceiro e no quarto trimestres; b) por esta razão, qualquer eventual efeito que a devolução possa ter no segundo trimestre só poderá actuar através da percepção de um aumento do rendimento permanente; c) a existência de consumidores com restrições de liquidez, que já gastam todo o seu rendimento disponível, encurta ainda mais o leque potencial de consumidores que pode (ou pôde), de facto, alisar o seu consumo no segundo trimestre.
Ora, as conclusões do Banco de Portugal mostram precisamente que é no momento de aumento do rendimento disponível – e não no momento em que esse aumento é conhecido – que a descida de impostos afecta a actividade económica. E, para todos os efeitos, uma devolução de subsídios é, em termos microeconómicos, largamente semelhante a uma redução de impostos sobre o rendimento (no caso do sector público, a diferença é mesmo meramente semântica). A confirmar-se esta conclusão, a decisão do TC deveria fazer-se sentir no terceiro trimestre.
O mesmo estudo refere, numa nota de rodapé, que há uma grande percentagem de rendimento sujeito a restrições de liquidez, e que esta restrição está positivamente relacionada com “a taxa de desemprego, facto que poderia levar a um aumento da parcela de rendimento sujeito a restrições de liquidez nos últimos anos” (página 80). Novamente, estas circunstâncias mitigariam o ‘efeito TC’ no segundo trimestre e amplificá-lo-iam no terceiro. Ou seja, o ‘choque’ de crescimento far-se-ia sentir no terceiro trimestre.
Os dados entretanto disponibilizados para o período Abril/Junho e Julho/Setembro ajudam a consolidar esta ideia. Tanto os indicadores objectivos de consumo privado como os mais introspectivos mostram que o segundo trimestre (a azul marinho) não marcou qualquer ruptura com o período precedente. Faz parte de uma recuperação que já estava em marcha anteriormente, e que terá prosseguido ao mesmo ritmo no período subsequente.
Registe-se, a propósito, que a ‘hipótese TC’ -mesmo assentando na hipótese (aparentemente não verificada) do rendimento permanente – sugeriria um perfil de recuperação completamente diferente. O consumo deveria crescer no segundo trimestre, devido à expectativa de maior rendimento anual, e estagnar a partir daí, uma vez que o ímpeto inicial já tinha surtido todo o seu efeito.
Como é óbvio, perceber por que é que o consumo recuperou apesar da manutenção da austeridade – como se a política orçamental tivesse perdido ‘tracção’ à procura agregada – não deixa, ainda assim, de ser uma questão interessante.