Salvar banqueiros

Uma excelente entrevista de Ricardo Reis, hoje no ECO. Há duas ou três coisas de que discordo muito, mas na parte da banca, pelo menos, acho que vale mesmo a pena ir ler. Por que é que não há mais gente a explicar as coisas de forma tão didáctica? Isto não é física quântica.

Um dos objetivos da União Bancária foi impedir que fossem os contribuintes a pagar a falência dos bancos. Pensa que se conseguiu atingir esse objetivo? Uma das maiores preocupações das pessoas é que andam a salvar bancos, os seus impostos andam a salvar bancos…

É preciso esclarecer essa afirmação. Infelizmente, tornou-se um ditado popular que não é bem correto: de que o dinheiro dos contribuintes anda a salvar bancos (…) Em primeiro lugar, mas talvez o ponto menor, os contribuintes emprestam dinheiro ao banco, que por sua vez vai tentar recuperar os créditos. Se os recuperar reembolsa o contribuinte. No entanto, vamos ser claros, muitos dos empréstimos acabam por não ser pagos. O que é que acontece quando o contribuinte salva um banco? O que é salvar o banco? Um banco é uma entidade abstrata. Os acionistas do banco em todos os resgates – BPN, BES, Banif – perderam todo o seu dinheiro. Os administradores perderam o emprego e alguns acabaram na cadeia. Os gestores de topo destes bancos acabaram quase todos sem emprego à procura de emprego noutros bancos.

Alguns nem podem voltar a trabalhar em bancos…

Alguns nem conseguem. Não estamos a falar de salvar acionistas, CEOs, nem diretores. Quem é que nós salvámos? Salvámos alguns trabalhadores que mantiveram o emprego, mas mesmo esses não salvámos muitos, porque esses bancos estão em alta redução de pessoal. O que aconteceu é que os bancos emprestaram dinheiro a muita gente. E pediram dinheiro emprestado a muitos depositantes. Quando esta muita gente não pagou ao banco, os depositantes iam ficar sem o seu dinheiro. Quem nós salvámos foi os depositantes (…) O banco é uma entidade muito abstrata e que serve para imaginar um banqueiro gordo de charuto na boca a quem se salvou. Mas quem nós salvámos foram os muitos depositantes que tinham dinheiro no BES e que o recebeu todo. E salvámos também, se quiser, as pessoas da lista de devedores do BES, nas quais estão muitas pessoas reputadas da sociedade portuguesa, que deviam centenas de milhões e não pagaram. Não salvámos os banqueiros de forma alguma.

(…)

Voltemos a Portugal: uma das perplexidades com que nos debatemos é que a troika esteve aqui tanto tempo e não percebeu que havia um problema no sistema financeiro. A troika não viu ou não quis ver?

É difícil fazer esse diagnóstico. Existem ótimos livros a escrever por parte dos jornalistas bem informados que queiram fazer essa investigação de uma forma séria. É claríssimo, e basta olhar para as minutas e programas da troika, que não houve uma reunião que não se apontasse para as fragilidades do sistema financeiro português. Portanto, não se pode dizer que eles não tenham visto ou que não tenham apontado que havia um problema. A troika disse que o sistema financeiro português estava em grandes apuros, com certeza. A diferença é até que ponto é que a troika devia ter imposto algumas medidas ou não. E até que ponto é que elas tinham levado a um melhor desempenho ou performance.

O que é que devia ter sido feito?

Não vamos dizer devia, porque depois vamos os dois avaliar se ela devia ter feito isto. Podia ter dito: vamos chamar uma avaliador de ativos internacionais, para passar a pente fino o balanço dos bancos portugueses e dizer de facto quanto crédito malparado existe e qual é o valor que existe. Essa avaliação estaria concluída no final de 2011, demorava um ou dois meses. Descobríamos que o BES estava completamente falido, que o Banif estaria completamente falido, que o BCP estava basicamente completamente falido. E que o BPI estava mais ou menos na linha de água. Nessa altura, a troika diria “temos que fechar estes bancos”. Imediatamente no espaço dos próximos dois meses. Começar do zero, tendo em conta que os seus balanços estão maus. Criar três novos bancos no espaço de dois ou três meses.

Seguir o modelo irlandês.

Era isto. Isto levaria a que hoje estaríamos melhor ou não? O que posso dizer, com bastante segurança, é que isto tinha levado a uma enorme crise no final de 2011, início de 2012, no sistema financeiro. Uma enorme perda de confiança dos depositantes portugueses no sistema financeiro português. Uma enorme pressão sobre as finanças públicas de forma a poder garantir os depósitos de todas essas pessoas. Tendo em conta o que sabemos da influência dos acionistas destes bancos na comunicação social, assim como dentro das elites políticas portuguesas, que isto tinha sido recebido com uma enorme violência por todos os painéis de comentadores de todos os noticiários da noite. Não tenho dúvidas que ia haver muitos editoriais inflamados dos melhores jornalistas e comentadores portugueses diariamente a dizerem “a troika está a destruir o nosso país, como podem eles fazer isto?”. Parece-me que na altura se fizesse a pergunta à maioria da inteligência portuguesa, a maioria diria que a troika tinha errado profundamente ao fazer esta avaliação dos ativos e ao fechar 70% ou 50% do sistema financeiro português. Agora se chegando a 2016 isto tinha implicado que tínhamos limpado os balanços e tínhamos um Novo Banco 1, Novo Banco2, Novo Banco3 e Novo Banco 4 e tínhamos um sistema financeiro muito mais sadio e entretanto tinha havido uma recuperação maior? Talvez sim. Talvez não. Mas é esta a alternativa de que falamos quando dizemos que a troika errou e que devia ter feito mais…Como se “fazer mais” fosse tornar as coisas mais doces e só tinha benefícios em relação ao que foi feito. É preciso ver que esta é a alternativa. Devia ter sido feito? Eu tenho algumas opiniões, mas mais do que as opiniões é informar as pessoas sobre qual era o cenário alternativo, com uma intervenção mais musculada. Muitas pessoas na troika gostariam de ter feito isto. Teria sido melhor, teria sido pior? Responda você ou a pessoa que está a ver ou ler esta entrevista.

 

Portugal e o FMI, dois anos depois do pó assentar

O FMI publicou um relatório acerca do seu papel nos programas de ajustamento da periferia europeia – e, como é habitual sempre que se põe a fazer auto-avaliações, gerou uma série de notícias que não são, digamos assim, completamente fiéis àquilo que o relatório tem lá dentro. Aliás, é sintomático que a notícia reportada pelo Esquerda.Net não seja assim tão diferente daquilo que se foi escrevendo por aí.

Há batalhas que estão perdidas à partida, e por isso nem vou tentar fazer de advogado do diabo (para isso leiam o Ricardo Reis). Mas queria aproveitar o momento para referir um dos background papers do estudo, que versa sobre Portugal e que é do melhor que vi por aí (o que não é estranho, tendo em conta que Sérgio Rebelo e Martin Eichenbaum são dois dos três autores).

Se se derem ao trabalho de ler o documento vão encontrar muita coisa boa. E também uma série de conclusões que há uns anos seriam consideradas anátema mas que hoje começam, pouco a pouco, a tornar-se (quase) consensuais. Algumas dessas ideias ocuparam uma boa parte dos posts deste blogue, e as referências que se seguem – uma boa parte dos quais são apenas links para textos alheios – reflecte bem a evolução das ideias ao longo do tempo. Só para nos relembrar que às vezes, de longe a longe, aprendemos uns com os outros. E – surpresa! – até se chega a alguns consensos.

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Vem aí um segundo resgate?

A resposta fácil é: depende. Há muita coisa que pode correr mal, e se entendermos um ‘segundo resgate’ como uma situação em que Portugal perde acesso a financiamento, não há dúvidas de que os riscos existem: dívida elevada, nervosismo nas bolsas, dúvidas sobre a China, etc. Os factores de risco estão lá todos. E aprendemos nos últimos anos que os mercados financeiros comportam-se por vezes de forma caótica: basta uma pequena faísca para o equilíbrio se alterar radicalmente.

Mas há pelo menos um problema particular que aflige muita gente e que me parece bastante exagerado: o risco de o BCE nos ‘tirar tapete’.

O argumento é algo deste género. Neste momento, Portugal paga uma taxa de juro artificialmente baixa devido às políticas extraordinárias do Banco Central Europeu. Estas políticas são transitórias por natureza e terão, como é óbvio, de ser descontinuadas. Nesse futuro não muito longínquo, os custos de financiamento acabarão inevitavelmente por subir. Seguir-se-á o teste do mercado, o descontrolo dos juros e, com toda a certeza, o regresso da Troika. Em Portugal, Rui Ramos até elevou este risco à categoria de evento do ano de 2016.

Eu tenho uma opinião algo diferente. Mas vamos começar por partes.

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A importância dos cofres cheios

Qual é a importância de ter os cofres do Estado cheios de dinheiro? Depende muito das circunstâncias. Mas, na actual conjuntura, há óptimas razões para que o Estado português tenha muita cautela em relação ao futuro.

Primeiro, alguns números. O gráfico de baixo mostra os activos que as Administrações Públicas (AP) detêm sob a forma de depósito e numerário. Ao todo é mais de 14% do PIB, o suficiente para assegurar as necessidades de financiamento de 2015 e 2016 (ou quase: os números ainda não incorporam o pagamento antecipado ao FMI). Mesmo que nem todo o dinheiro seja mobilizável para este fim – as AP incluem entidades com autonomia para gerir as suas próprias disponibilidades financeiras -, não deixa de ser um valor impressionante.

1Mas esta reserva implica custos. Primeiro, porque o dinheiro aplicado em depósitos é, na verdade, proveniente de empréstimos (pelos quais o Estado tem de pagar juros). Segundo, porque uma parte dos activos está depositada no Banco Central, onde são remunerados a uma taxa… negativa. Só isto representa, segundo contas do EconomiaInfo, qualquer coisa como 40 milhões de euros.

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Ir além da Troika?

Isto pode ser estranho para muita gente, mas posso garantir que, salvo algum erro de excel, os números estão correctos.

Sem Título

Os quadros foram construídos com base na primeira versão do PAEF (segunda coluna) e com base nos valores executados (execução confirmada pelo INE para 2010 e 2011 e execução prevista para 2014 no Relatório do Orçamento do Estado de 2015). Um alerta: não é possível comparar a despesa em níveis, porque a implementação do SEC2010 provoca uma ruptura de série – para 2014, por exemplo, só há valores em SEC2010. Mas este é um problema que se ultrapassa facilmente olhando para as variações da despesa, que à partida são (menos) afectadas por este problema.

Por que é que isto parece estranho, e choca com a percepção comum de que o corte de despesa ficou aquém do esperado? A resposta é simples. Entretanto, a caixa de comentários está aberta.

Três anos e meio de consolidação (mais o um e meio que ainda falta)

ABC

As contas são difíceis de fazer, porque os vários documentos muitas vezes não apresentam exactamente os mesmos valores, há diferenças na forma como algumas medidas são contabilizadas e é preciso cuidado a distinguir o que é anunciado daquilo que é efectivamente executado. Eu privilegiei sempre os dados finais da Troika, que são os mais fiáveis, e utilizei os Orçamentos e DEO para complementar os gaps de informação. No final, imputações (e algum judgement) são inevitáveis.

(Os valores de 2014 e 2015 são apenas previsões, devidamente assinaladas pelas cores translúcidas. As medidas revertidas são a devolução dos subsídios à função pública e pensionistas, em 2013, e o fim da CES e devolução de 20% do corte salarial aos trabalhadores do sector público).

 

 

Grécia e a fome na Irlanda

Ainda é cedo para fazer o apuramento de culpas da crise grega. Em Greece and denying responsability, Simon Wren-Lewis faz um provocador e interessante paralelo entre a Grécia do século XXI e a Irlanda do século XIX.  A ler também The sharp but effectual remedy.

I wanted to make the parallel with the Irish famine for three reasons. First, there seemed to be the same type of deflection of blame going on today as at that time. Second, ideas about what could and couldn’t be done in terms of economic relationships were central. Third, the verdict of history is pretty clear with the Irish famine. The British government did provide some famine relief, but what history remembers is that it was not nearly enough. History remembers the action and inaction of the British government, and not the inefficiencies and inadequacies of Irish agriculture.

One response to my criticisms is that without Troika or IMF support, austerity would have been much more immediate and intense. This is of course true: unable to borrow at all, the Greek government’s primary deficit would have had to fall to zero even if all interest payments on debt had been halted. But as I noted above, the headline from history is not that the famine would have been worse still if the British government had not provided any relief, but rather that it did not provide enough.

Troika assistance to Greece made two major mistakes. First, wishful (at best) thinking about the amount of government debt Greece could support. Second, the Troika imposed a front loaded austerity programme that was far too severe. How much of the subsequent collapse of the economy was due to this is unclear, but few seriously doubt it played a major role. As I noted here, the estimates by the Troika of the impact of austerity that were made at the time ignored basic and widely accepted macroeconomic analysis.

Mistakes get made, particularly in a crisis. When these mistakes become evident, as they did pretty quickly in the case of Greece, there are two possible responses. The first is for those who made these mistakes to admit responsibility, and try and learn the lessons. I think the IMF has to some extent tried to do this, as I noted in this earlier post. The second possible reaction is denial, and to seek to blame others. It is this response that history does not look too kindly upon.


Saldos primários em tempos de crescimento

Segundo o FMI, a sustentabilidade da dívida pública portuguesa exige superávites primários na casa dos 3% do PIB. Que sacrifícios são necessários para colocar o saldo orçamental a este nível? O post anterior tentou mostrar que o esforço adicional é mais pequeno do que parece – e muito menor do que seria sugerido pela experiência dos últimos três anos. Vale a pena utilizar um exemplo concreto para tornar o raciocínio mais claro.

A imagem de baixo mostra a evolução do saldo primário do orçamento português entre 2010 e 2013 (azul escuro) e a previsão do FMI para os próximos anos (azul claro). A linha vermelha representa a melhoria acumulada do saldo relativamente a 2010. Os valores não são exactamente iguais aos que aparecem nos documentos oficiais porque foram corrigidos para o impacto de medidas extraordinárias e pontuais.

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Estes são os resultados: até agora, uma melhoria do saldo primário de 4,5% do PIB. Para perceber os custos, é necessário justapor a estes valores o volume de medidas de consolidação orçamental. A Comissão Europeia faz uma compilação dessas medidas nos relatórios trimestrais (procurar a tabela Artihmetic of the government deficit), segundo a qual a dose de austeridade implementada entre 2010 e 2013 terá rondado os 12,2% do PIB.

Fazendo as contas, conclui-se que para cada euro de melhoria do saldo foi necessário cortar 2,7€ (12,2/4,5=2,7). Ou, fazendo as contas de outra forma, que cada euro de cortes orçamentais se traduziu numa melhoria orçamental de apenas 0,37€.

Vejamos agora um caso diferente. O país representado no quadro de baixo consolidou as contas públicas em 3,6% do PIB em apenas dois anos. O ajustamento acumulado é muito inferior àquilo que está implícito nas simulações do FMI para 2010-2017; mas o ajustamento médio anual ao longo destes dois anos é de 1,8% do PIB, um valor que na verdade é mais alto do que aquilo que Portugal conseguiu nos últimos três anos.

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Que país é este, que passou de um défice de 4% para um saldo primário praticamente equilibrado em apenas dois anos, enquanto o PIB real crescia a uma taxa média de 1,5% ao ano?

Nada mais, nada menos, do que Portugal em 2005-2007.

E quais foram os custos? Infelizmente, na altura ainda não havia a prática de sistematizar nos Orçamentos anuais as medidas de consolidação, mas um grupo de investigadores do FMI tem vindo a produzir estimativas para esse período. De acordo com estas estimativas (que têm um upward bias considerável*), entre 2005 e 2007 terá havido cortes em torno dos 3,1% do PIB. Ou seja, cada euro de medidas melhorou o saldo primário em 1,16€.

A diferença entre os dois períodos é impressionante quando se comparam estes ‘rácios de eficiência’ (ler também Tiros de pólvora seca). Mas a explicação é simples. Em 2010-2013, a consolidação foi feita sobre uma economia a contrair, o que corroeu as receitas fiscais e neutralizou uma boa parte do efeito dos cortes – à semelhança do que aconteceria a um atleta que tentasse correr contra uma passadeira rolante. Em 2005-2007, por outro lado, a economia estava a crescer, o que aumentava as receitas fiscais e gerava uma melhoria inercial da posição orçamental. O atleta estava a correr a favor da passadeira rolante.

O quadro de baixo sistematiza esta ideia, isolando 2014 por ser este o primeiro ano de programa em que se espera crescimento positivo. A coluna ‘rácio’ indica quantos euros de austeridade são necessários para melhorar o saldo primário em um euro. Para os próximos anos, o rácio estará mais próximo de 0,86 (e provavelmente será inferior a isto) do que 2,73.

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O que aconteceu em 2005-2007 sugere que até períodos de crescimento reduzido permitem diminuir o défice sem que impor custos extraordinários. Porquê então a dificuldade crónica da generalidade dos países europeus em conformarem-se à regra do défice de 3% desde a formação do euro?

A resposta tem muito mais a ver com questões de economia política do que de política económica. Apertar o orçamento (mesmo que de forma passiva, isto é, manter o crescimento da despesa abaixo do crescimento da receita) tem custos políticos sérios, e portanto há a uma irresistível tentação de esticar a política orçamental e fiscal até aos limites máximos tolerados por Bruxelas.

De resto, não deixa de ser revelador que muitos países europeus tenham de facto levado a cabo ajustamentos orçamentais notáveis no período de convergência nominal antes da adesão ao euro – melhorias que foram bruscamente travadas a partir do momento em que atingiram o critério do défice de 3%. É improvável que a consolidação orçamental tenha sido uniformemente travada por ‘fadiga da austeridade’. Uma hipótese mais plausível é que os países em causa se limitaram a cumprir os ‘mínimos olímpicos’ para integrarem o clube do euro, e limitaram-se, a partir daí, a gerir o orçamento em torno desses limites.

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Para estes países, ter défices de 3% era tão impensável em 1985 quanto é para nós ter superávites primários de 3%. Mas não era porque o ajustamento orçamental implícito a este valor fosse insuportavelmente violento. Era porque não havia incentivos aos decisores de política económica para imporem constrangimentos à gestão orçamental. Quando esses incentivos – isto é, a possibilidade de adesão ao euro – foram criados, os défices rapidamente convergiram para os 3%. Neste contexto, dizer que Portugal nunca obteve superávites primários de 3% é muito pouco relevante para aferir a exequibilidade desta meta.

P.S.- Para que fique tudo claro: este post não defende que a consolidação orçamental não tem custos, mas sim que estes custos são fortemente variáveis. Em síntese: a) os custos da consolidação orçamental para 2014/2015 são significativamente menores do que os custos para o período 2010/2013; b) para o período posterior (2016 em diante) os custos são negligenciáveis, na medida em que o ajustamento orçamental pode ser feito de forma meramente passiva. Ou seja, a sustentabilidade da dívida pode ser assegurada sem grandes custos adicionais relativamente àquilo que já foi feito.

*A base de dados do FMI avalia as medidas de consolidação através dos Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC) entregues a Bruxelas, pelo que na verdade é uma mera quantificação de intenções declaradas. A experiência mostra que entre aquilo que é anunciado e efectivamente implementado vai uma grande diferençae de facto algumas das medidas elencadas no PEC acabaram por não se verificar na execução orçamental. Por esta razão, as medidas orçamentais identificadas pelo FMI sobrestimam fortemente a verdadeira dimensão da consolidação. 

 

A dívida pública é sustentável?

A dívida pública é sustentável? A resposta a esta pergunta exige duas coisas. Primeiro, clarificar com precisão o que se entende por sustentabilidade. Segundo, assumir certas hipóteses e fazer alguns cálculos.

Estes passos prévios são importantes porque o debate em torno da reestruturação mostrou que pessoas diferentes utilizam o termo sustentabilidade em sentidos diferentes. E que esta sustentabilidade é frequentemente vista como matéria de opinião ou preferência pessoal. Argumenta-se que a dívida é insustentável porque é grande, porque o crescimento é baixo, ou porque os juros são altos; mas não há nenhum cálculo rigoroso que integre todos os factores relevantes.

Não há uma definição unânime de sustentabilidade da dívida, mas no caso de Portugal não é difícil consensualizar uma definição: a dívida pública é sustentável se puder ser reduzida (ou estabilizada) para um conjunto de hipóteses e políticas plausíveis. Isto é, a diminuição da dívida não deve depender de valores irrealistas para o crescimento económico, impossíveis de atingir, ou de ajustamentos orçamentais extraordinários, impossíveis de aplicar.

É importante notar que o que está aqui em causa não é ‘pagar a dívida’. Ao contrário de uma família, que tem um horizonte de vida finito dentro do qual tem de conseguir honrar as suas dívidas, um Estado pode viver perpetuamente endividado – o importante é que este endividamento não entre numa trajectória explosiva. A dívida tem de parar de subir e, idealmente, descer para valores razoáveis. Mas não tem de ‘ser paga’ no sentido tradicional do termo.

A trajectória da dívida pública (dívida em % do PIB) depende de três variáveis: a) o crescimento nominal do PIB (crescimento real mais inflação), já que este determina o tamanho do denominador; b) a taxa de juro da dívida pública, da qual dependem os gastos com o serviço da dívida e, portanto, crescimento inercial da dívida; c) o saldo primário, que é o défice orçamental expurgado da despesa com juros. Um saldo positivo abate à dívida, um saldo negativo aumenta-a.

Com estas três variáveis são possíveis combinações. Se o crescimento nominal do PIB for igual à taxa de juro, é necessário um saldo primário equilibrado para manter a dívida constante; se o crescimento superar a taxa de juro, então é possível relaxar um pouco o saldo (e o inverso também é verdade).

O FMI integra todas estas variáveis num modelo estandardizado (a doutrina está aqui, as instruções de utilização estão aqui e até é possível aceder ao próprio modelo) que aplica periodicamente à generalidade das economias. A última avaliação de Portugal consta do relatório do 10º exame regular, e aparece reproduzida em baixo.

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A previsão do FMI aponta para uma descida da dívida já em 2014, mas esta previsão, em si, não é muito relevante, porque pode resultar apenas de whishful thinking dos técnicos. Para perceber se este cenário é plausível é preciso olhar para as hipóteses subjacentes:

  • Primeira hipótese: a taxa de juro implícita da dívida (quarta linha do quadro) começa nos 3,4% e sobe gradualmente até aos 4%.

Qual é o risco de a taxa de juro ser superior a 4%? Muito baixo. A grande maioria da dívida pública resulta de empréstimos da Troika, de juros bastante simpáticos (3% em média) – e estes empréstimos têm uma maturidade convenientemente prolongada, o que permite ‘trancar’ num nível baixo de juros uma boa fatia da dívida pública. Isto é, mesmo que Portugal tenha de se financiar em condições difíceis a partir de 2015, a taxa de juro média será pouco sensível aos humores do mercado (nota: o FMI assume que o Estado se financia em mercado a juros em torno dos 5,5%; neste momento, as OT’s a 10 anos têm taxas inferiores a 5%).

  • Segunda hipótese: o crescimento económico (primeira linha) converge para 1,8%.

Para 2014, a previsão é reconhecidamente conservadora – os 0,8% serão quase de certeza ultrapassados. Daí em diante, a situação é menos clara. O crescimento médio da última década, atéà Grande Recessão (2000-2007), foi 1,5%. Por outro lado, este foi o período de crescimento mais baixo desde os anos 60, e um mistério difícil de explicar até pelos melhores economistas (ver The Portuguese Slump and Crash, de Ricardo Reis, e os comentários na secção de discussão). Tendo em conta o nível de desenvolvimento da economia portuguesa, as projecções demográficas e a evolução recente da produtividade, um crescimento tendencial de 1,8% não é um valor irrealista. Debatível e discutível, certamente, mas nada que justifique as críticas de “suposições absurdas” que foram feitas ao FMI.

  • Terceira hipótese: crescimento dos preços (segunda linha) converge para 1,8%.

O crescimento dos preços na economia portuguesa terá ficado entre 1,5 e 2% em 2013 (embora este valor resulte em boa parte da devolução dos subsídios aos funcionários públicos – uma longa história). A meta do BCE para a evolução dos preços é de 2%, e é aceitável pressupor que os preços cresçam um pouco abaixo da média europeia nos próximos anos (nota técnica: então mas não estamos em deflação? Não exactamente. Convém distinguir entre o Índice de Preços no Consumidor, onde há de facto quebra de preços, e o deflator do PIB, que é o indicador relevante neste caso).

  • Quarta hipótese: O saldo primário (quinta linha) atinge 3,2% do PIB em 2019.

Esta é a variável crucial. Para atingir 3,2% do PIB em 2019, o saldo primário tem de melhorar em cerca de 3 pontos percentuais do PIB. E 3% do PIB são cerca de 5000 milhões de euros. Significa isto que a redução da dívida pública só é assegurada com medidas deste montante? Não, nem por sombras. Isto porque uma parte da consolidação orçamental é inercial: o défice reduz-se automaticamente em virtude do crescimento económico, por arrasto das receitas fiscais – não o suficiente para atingir a melhoria de 3 p.p., mas o suficiente para reduzir significativamente o volume de medidas de austeridade necessárias para diminuir a dívida.

Qual a dimensão deste efeito? É bastante grande. Caso o PIB cresça 3% em termos nominais, e esse crescimento se transmita integralmente às receitas fiscais e contributivas (elasticidade unitária), então só este efeito é suficiente para reduzir o défice em mais de 1000 milhões de euros – 0,6 pontos percentuais do PIB. Como é óbvio, para que esta consolidação seja efectiva é necessário garantir que a despesa pública se fixa ao nível do período anterior (um cap nominal, portanto).

Se o crescimento nominal for de 3% ao ano até 2019, então esta dinâmica é suficiente para melhorar o saldo orçamental nos 3 p.p. necessários. Por que razão exige então a Troika cortes adicionais em 2015? A razão é simples: porque esta consolidação ‘inercial’ só se concretiza caso a despesa pública fique congelada até 2019, uma suposição obviamente irrealista*. De facto, a Troika assume que a despesa pública primária começa já a crescer a partir de 2016, entre 1,2 e 2% ao ano (página 40).

Segundo o FMI, as medidas em causa rondarão os 2000 milhões de euros em 2015. Serão necessárias mais medidas? O relatório não dá indicações nesse sentido, e algumas contas sugerem que esses 2000 milhões são de facto suficientes para atingir a meta de 2015 – e que a melhoria do saldo primário que se prevê daí em diante resulte única e exclusivamente da consolidação inercial já referida.

O que é importante reter é que, apesar de as simulações do FMI assumirem de facto uma melhoria constante do saldo primário até 2019 no valor de 3% do PIB, essa melhoria não decorre de medidas de austeridade dessa magnitude, mas sim de um valor muito mais modesto. O resto é produto da evolução das receitas fiscais, sendo que essa evolução, por si só, até é suficiente para acomodar aumento da despesa de 2016 em diante. A ideia de sustenabilidade da dívida só pode ser garantida através da repetição da ‘dose’ de 2012 e 2013 não leva em conta que uma boa parte do défice é endógena e cavalga a economia – este efeito foi negativo em 2011, 2012 e 2013, mas passa a ser positivo daqui para a frente.

A propósito disto, a imagem de baixo mostra o comportamento do saldo primário de duas economias nórdicas no rescaldo de graves recessões (a finlandesa provocada por problemas financeiros e pelo colapso da União Soviética, com quem tinha ligações comerciais importantes, e a sueca no seguimento da implosão do seu sistema bancário).

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* Não seria então mais fácil congelar a despesa e evitar mais cortes? Possivelmente sim, mas há um problema sério com esta opção. As medidas de austeridade podem ser decididas, supervisionadas e confirmadas pela Troika enquanto Portugal ainda está abrangido por um Memorando de Entendimento. O congelamento da despesa fica dependente da boa vontade que a classe política tiver durante os próximos quatro ou cinco anos. É compreensível que a Troika prefira a primeira opção, sobretudo depois de ter constatado a impossibilidade de acordos interpartidários que permitam clarificar a trajectória futura da despesa pública nos próximos anos. Mais sobre isso neste post.

A Comissão Europeia, o FMI e o défice externo

As Previsões de Inverno da Comissão Europeia, divulgadas ontem, analisam ao detalhe a correcção recente dos défices externos da periferia europeia. As conclusões, pelo menos no caso de Portugal, chocam directamente com a avaliação feita pelo Fundo Monetário Internacional no relatório final do 10º exame regular.

Segundo o FMI:

The external adjustment has in large part been driven compression of nonfuel imports and—lately—growth of fuel exports (…) In nominal terms, just under half of the adjustment in the trade balance is due to the compression of non-oil imports, one third due to non-oil export growth, and one sixth due to the improvement in the services balance (in turn largely driven by buoyant tourism receipts). This reliance on compression of nonfuel imports and on fuel exports risks undermining the gains to date when imports recover from the unusually low levels and oil refining facilities eventually exhaust their spare capacity, while the improvement in the services balance is vulnerable to shocks to tourism demand (…)

Adjustment in relative prices has lagged behind. Labor shedding and wage cuts have lowered unit labor costs, which are now 5½ percent below its peak in the first quarter of 2009. Portugal’s real effective exchange rate (REER) deflated by ULC has depreciated by some 8 percent since then, while the reduction in the CPI based REER has been more limited (…) Coupled with the need to reduce Portugal’s sizeable stock of external liabilities, further gains in competitiveness may be needed to ensure the sustainability of the external adjustment.

A Comissão Europeia sistematiza a sua posição num quadro em que compara a Balança de Transacções Correntes (BTC) efectiva com a BTC ‘ajustada’ ao ciclo económico:

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Quem tem razão?

Os cálculos da Comissão têm a vantagem de estar ancorados num modelo formal, e são largamente confirmados por simulações semelhantes feitas pelo BCE. O modelo leva em conta o output gap de Portugal, o output gap dos principais parceiros comerciais e indicadores de competitividade preço e não-preço para separar a componente estrutural da componente não estrutural. Segundo estes cálculos, 9,9 pontos percentuais da melhoria total da BTC são estruturais e tenderão a perdurar mesmo quando a actividade económica atingir o seu potencial.

É verdade que este resultado reflecte o facto de a Comissão Europeia assumir que uma grande parte da contracção do Produto, da procura interna e do emprego são permanentes – ou seja, que o potencial para o qual a actividade tenderá a convergir foi permanentemente diminuído. Mas a ideia de que grande parte da melhoria do saldo externo é estrutural é robusta à utilização de estimativas para o PIB Potencial consideravelmente mais benignas. Segundo o BCE, a percentagem ‘estrutural’ da correcção varia entre 95 e 80%, conforme os output gap considerados (e contas feitas neste blogue apontam para um valor mínimo de 75%).

A posição do FMI é expressa de forma mais impressionista, com referência a riscos que apesar de serem, em teoria, plausíveis, são difíceis de avaliar sem uma quantificação mais rigorosa. Por exemplo, o risco de um regresso em força das importações faz todo o sentido, mas é preciso ter uma ideia mais concreta da magnitude do seu crescimento máximo. A Comissão Europeia e o BCE fazem isso de forma implícita, através do Produto Potencial. O FMI poderia disputar estes cálculos avançando com estimativas diferentes para o PIB Potencial ou elasticidades mais acentuadas das Importações face ao Rendimento. Infelizmente, nada disto aparece no relatório final.

As notas em relação ao impacto dos combustíveis e turismo enfermam do mesmo problema. Sem estimativas para a procura de refinados nos próximos anos, bem como para o potencial máximo das refinarias portuguesas, é difícil perceber ao certo o risco que a dependência dos combustíveis coloca para o crescimento das exportações. E seria ainda preciso levar em conta o facto de o contributo líquido dos combustíveis para o saldo externo e para o PIB ser consideravelmente mais pequeno do que aquilo que é sugerido pelas headline figures, uma vez que a produção final integra um enorme conteúdo importado (o que ‘fica’ é sobretudo a margem de refinação). Em suma, as notas do FMI, sendo relevantes, são consideravelmente menos sólidas para o global picture do que os cálculos da Comissão Europeia.

Mas talvez isto não seja completamente inesperado. A análise do Fundo é feita no contexto da antepenúltima avaliação do PAEF português. A exposição a Portugal é grande (cerca de 24 mil milhões de euros) e o próprio FMI assume que a sustentabilidade da dívida «cannot be asserted with high probability» – até pequenos choques no crescimento, ou desenvolvimentos orçamentais ligeiramente piores, são suficientes para atirar a dívida pública para uma trajectória explosiva. Neste sentido, é expectável que o relatório tente relativizar os bons sinais económicos e sublinhe os “mas”, “porém” e “contudo” dos dados oficiais. Com toda as forças sociais e políticas a fazerem pressão no sentido de um ‘afrouxar do cinto’, é no mínimo natural que o FMI se assuma como contrapeso e tente remar contra estas pressões.

P.S.- Uma pequena nota que me parece relevante. Tanto a Comissão Europeia como o FMI calculam em 2 mil milhões de euros (1,2% do PIB) o volume de medidas de consolidação orçamental que será preciso tomar em 2015 para colocar o défice orçamental nos 2,5%. Mas se as duas instituições estimam valores diferentes para a procura interna ‘estrutural’, então o volume de receitas fiscais tendencial (e portanto o saldo estrutural) também será necessariamente diferente. A bottom line é: se a correcção estrutural do défice externo é menor do que o calculado pela Comissão Europeia, então o verdadeiro défice orçamental será melhor do que aquilo é sugerido pelo saldo estrutural.