Acima da produtividade

De vez em quando lê-se por aí que os salários cresceram, ou vão crescer, acima da produtividade. E na maior parte das vezes não há problema em escrever isto, porque o contexto é suficientemente específico para que possamos ter a certeza de que os potenciais leitores sabem exactamente o que é que está – ou não está – em causa. O problema é quando a coisa sai dos relatórios sem o devido contexto e acaba a contaminar a discussão pública de uma forma pouco rigorosa. E é por isso que a UTAO, que bem percebe destas coisas, devia evitar frases como esta:

Neste cenário [PEC 2016-2020], a produtividade do trabalho deverá também aumentar, ainda que a um ritmo inferior ao das remunerações do total da economia.

Este é um tema antigo, e já escrevi tantas vezes sobre ele que por esta altura talvez fosse mais simples e eficaz linkar alguma coisa antiga do que voltar à carga. Acontece que entretanto encontrei uma forma mais interessante e didáctica de explicar a ideia, e por isso talvez não seja perda de tempo acrescentar mais alguns caracteres.

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Se a Grécia fosse Portugal

Uma das coisas mais lamentáveis na discussão da crise grega é a (aparente) dificuldade de muita gente em apreender os factos mais básicos da questão. Não estou a falar de argumentos débeis, como a ideia de que flexibilizar metas significa deixar a Grécia viver novamente acima das suas possibilidades. Refiro-me a erros factuais – por exemplo, a ignorância de que a Grécia foi, ao contrário do que se pensa, o país europeu que mais reformas estruturais fez e que mais apertou o seu orçamento.

Na verdade, o colapso da Grécia é simples de explicar. Perante a situação calamitosa das contas públicas em 2009, só havia duas possibilidades: saída do euro para financiar o défice com emissão monetária – algo que ninguém queria -, ou um ambicioso programa de consolidação orçamental, associado a financiamento por parte dos credores oficiais. Como a consolidação afecta negativamente o crescimento, a recessão era inevitável.

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Os salários e a produtividade pela centésima vez

Quando inaugurei este blogue, há pouco mais de dois anos, escrevi uma série de posts acerca de competitividade (1, 2, 3 e 4). A ideia principal era que grande parte do debate em torno da questão estava enviesado por uma compreensão deficiente dos Custos Unitários do Trabalho. A maior parte dos comentadores via os CUT a subir e tinha a reacção típica: lá estão os salários a subir acima da produtividade. Um cronista do Expresso chegou a afirmar, sem se dar conta do absurdo, que em Portugal os salários tinham crescido 12 vezes acima da produtividade.

Claro que nem os salários subiram acima da produtividade nem os CUT podiam dizer muito acerca disso. Pela simples razão de que este indicador compara duas realidades diferentes: a produtividade real com a remuneração nominal. Felizmente, alguém na Comissão Europeia se deu ao trabalho de comparar o que pode ser comparado antes de falar de produtividade e salários. O resultado vem no último relatório do Procedimento por Desequilíbrios Macroeconómicos.

A economia sofreu um importante ajustamento dos salários reais nos últimos anos. Os salários reais já estavam a crescer abaixo da taxa de crescimento da produtividade antes da crise económica (gráfico 2.3.4). Esta tendência tornou-se mais pronunciada após 2010, devido à moderação do crescimento dos salários nominais e a um crescimento sustentado da produtividade do trabalho.

Sem Título

Para lá dos preços

Uma entrada no Vox que mistura um título sonante com um dos temas mais áridos da macroeconomia: a aparente irrelevância da taxa de câmbio real na determinação da performance das exportações. The cost-competitiveness obsession, por Konstantins Benkovskis e Julia Woerz. Sobre o mesmo tema, ler: Paradoxos do equilíbrio externo e It seems rather disturbing)

Relying solely on price factors (REERs) in the assessment of a country’s competitiveness may lead to wrong policy conclusions as this reduces the policy focus to pure price competitiveness and rules out any change in a country’s competitive position due to other factors such as enhanced quality or better labelling of its export products. Putting the focus on such factors, our analysis suggests that the role of the exchange rate in explaining China’s competitive position may have been overstated and the dominant role in boosting China’s presence in the global market belongs among others to improvements in non-price factors.

Our results may also indirectly indicate the importance of the globalisation and outsourcing process. The nice clustering – developed countries losing and emerging countries gaining non-price competitiveness – can be partially attributed to the outsourcing of higher-quality goods production from developed to emerging countries. The Czech Republic is a well-known ‘final-assembly’ destination for the German car industry that may partially explain the positive contribution of non-price factors in its exports whereby the increase in relative quality is likely to have been imported via intermediates to some extent. This would support the finding of Koopman et al. (2014) who report that a significant share of domestic value added returns home to advanced countries via imports from emerging countries for Western EU, the US, and Japan. This requires shifting the focus of the analysis to from trade flows to value added when assessing the external performance of countries.

Ganância ou ignorância

Getting the german argument right, por Simon Wren-Lews. O autor toca num ponto importante, que tentei explicar aqui: estímulos monetários e/ou orçamentais a nível europeu não são um ‘mal menor’ ao qual a Alemanha deva fechar os olhos – são algo em que os  próprios germânicos têm interesse. A partir do momento em que se percebe que o realinhamento de competitividade é uma realidade, a única opção que temos é decidir se o ajustamento se faz através de inflação acima da meta na Alemanha ou via recessão e deflação na periferia. Desse ponto de vista, a posição da Alemanha é muito mais o resultado da ignorância do que da ganância.

The problem with the second argument is twofold. First, it tunes in with the popular sentiment in Germany that the country is yet again being asked to ‘bail out’ its Eurozone neighbours. Second, it implicitly suggests that the current German macroeconomic position is appropriate, but that Germany must move away from this position for the sake of the Eurozone as a whole. The obvious German response is to list all the reasons why their economy is currently on track (see, for example, Otmar Issing in the FT recently), and suggest therefore that other countries should look at their own policies for salvation. This is how we end up needlessly discussing structural reforms in France, Italy and so on.

The uncomfortable truth for Germany, which both the previous arguments can miss, is that the appropriate macroeconomic position for Germany at the moment is a boom, with inflation running well above 2%. The current competitiveness misalignment is a result of low nominal wage growth in Germany over the 2000 to 2007 period, which was in effect (and perhaps unintentionally) a beggar my neighbour policy with respect to the rest of the Eurozone. Germany’s current position is unsustainable, as its huge current account surplus and relative cyclical position shows. It will be corrected by undoing what happened from 2000 to 2007. Over the next five or ten years, German inflation will exceed the Eurozone average until its long term relative competitive position is restored.

The only choice is how this happens. From the perspective of the Eurozone as a whole, the efficient solution would be above 2% inflation in Germany, and below 2% inflation elsewhere. That is what would happen if the ECB was able to do its job, and Germany would get no choice in the matter. Normally above 2% inflation in Germany would require a boom (a positive output gap), but if it can be achieved without that fine, although I would note that current German inflation is only 0.8%. Arguments that point to currently low unemployment and a zero output gap in Germany are therefore irrelevant while German inflation is so low. The inefficient alternative solution is for 2% or less inflation in Germany, and actual or near deflation outside. Why is this solution inefficient? Because to get inflation that low outside Germany requires the Eurozone recession we are now experiencing

This is where structural reforms enter. Many German commentators say ‘why cannot other countries do what we did from 2000 to 2007’? But low nominal wage growth in Germany from 2000 to 2007 was accompanied by a recession in Germany! Furthermore, that recession was not so bad as the current Eurozone position, because the ECB was able to do its job and cut interest rates, so inflation outside Germany was above 2%. So from 2000 to 2007 many countries had to experience above target inflation because of low nominal wage growth in Germany, [2] yet many in Germany want to avoid above target inflation while imbalances are corrected.

If your starting point is what happened in Germany from 2000 to 2007, then current German arguments can look incredibly self-centred. They seem to say: we suffered a recession from 2000 to 2007 which led to a beggar my neighbour outcome, now you have to suffer a worse recession to put right the problem we created. But as I have argued before, and which comments on my recent posts and readings confirm, I think the German position is more about ignorance than greed. I also suspect there is a great deal of macroeconomic ignorance outside Germany as well, which is why Germany has been able to impose a recession on the rest of the Eurozone. Take for example this paper by Michael Miebach, who speaks from the left of centre in Germany.

Miebach presents a wide range of macroeconomic fallacies or irrelevant arguments. Germany’s fiscal position is not good (irrelevant in a liquidity trap), its macroeconomic position is not too bad (when it should have above 2% inflation, which probably requires a boom), fiscal expansion in Germany would have only a small impact on the periphery (but what we should be talking about is fiscal expansion in all the main Eurozone economies, which this paper confirms would help the periphery as well as France, Italy etc, and expansion in Germany would benefit countries like the Netherlands), and the old canard about how focusing on demand distracts attention from dealing with structural weaknesses in the Eurozone. But most revealingly we have this.

Competitividade em gráficos

A relação entre equilíbrio interno (emprego), equilíbrio externo (balança comercial) e competitividade não é fácil de perceber, mas acho que encontrei uma forma bastante simples de expor melhor a questão. E, tendo em conta o potencial pedagógico das ilustrações, acho que se justifica algum sacrifício do rigor.

A imagem de baixo mostra a relação entre a taxa de desemprego e o saldo da balança comercial em Portugal desde 1960 a 1997. Surpresa: não há relação nenhuma entre ambos – não é pelo facto de o desemprego ser mais alto que o défice comercial é mais baixo.

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Mas isto é menos surpreendente do que parece. Num regime de câmbios flexíveis – ou fixos mas ajustáveis – não é  necessário comprimir a procura interna para atingir um saldo comercial mais favorável. A manipulação da taxa de câmbio permite atingir simultaneamente os dois objectivos, tornando a produção interna mais barata e aumentando o emprego nos sectores que mais beneficiam dessa alteração dos termos de troca.

Assim, e pelo menos no longo prazo, qualquer relação entre o desemprego e o saldo comercial esfuma-se. Mas quando o mecanismo cambial desaparece, a situação muda de figura.

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Sem moeda para desvalorizar, o nível de desemprego torna-se um forte determinante do saldo comercial. Para uma dada taxa de câmbio, a economia só pode estar num dos pontos ao longo da linha traçada (escolhi 1998 porque esse foi o ano da fixação das taxas de cãmbio irrevogáveis). Se os constrangimentos financeiros impedirem Portugal de ter crédito, o preço a pagar será um desemprego permanentemente elevado, à volta dos 16%.

A alternativa à desvalorização cambial, que não é possível, é a desvalorização interna, baixando preços e salários. Em termos gráficos, isso corresponde a ‘sair’ da linha desenhada no gráfico e ‘caminhar para cima’, de forma a que um determinado saldo comercial possa corresponder uma taxa de desemprego mais baixa. A questão levantada pelo FMI é se os excedentes comercais de 2013 foram conseguidos à custa de melhorias de competitividades ou se às custas do desemprego – ou seja, se Portugal conseguiu ‘sair da recta’ ou se apenas caminhou ao longo da recta*.

*Infelizmente, isso não se pode inferir olhando apenas para a imagem. A recta representa uma condição ceteris paribus, que obriga a manter constantes uma série de factores como output gaps relativos, procura externa, etc. Esta condição violada de forma particularmente severa nos últimos anos.

 

 

This seems rather disturbing

Relação entre a variação da taxa de câmbio real e a variação da quota de mercado. Fonte: Comissão Europeia.

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“Although gains in cost competitiveness  have been associated with large gains in market  shares in countries such as Spain and Portugal, this has not been the case in other vulnerable Member. States such as Greece, Cyprus and Ireland. In  addition, losses in cost competitiveness in Member  States in a stronger growth position have, in most cases, not been associated with significant losses in market shares. Clearly, price competitiveness is not  the only determinant of differences in export  performance across the euro area and non-price  competitiveness factors have so far tended to blunt  the operation of the competitiveness channel.

Ler também Paradoxos do equilíbrio externo

Custos salariais

Um excelente post de Miguel Lebre de Freitas no The Portuguese Economy: The Real Wage Gap once again. (Uma curiosidade: os dois posts iniciais do autor – já em 2011, aqui e aqui – moldaram em grande medida a análise de Custos Unitários do Trabalho feita neste blogue).

1 – The claim that real wages have departed significantly above productivity does not match the national accounts data. In the case of manufactures, the maximum observed real wage gap amounted to 4.6%, during the 2009′ collapse of international trade, to recover one year after.

2 – In general the data supports the narrative that aggregate demand effects, rather than nominal wage stickiness explain the pre-2008 external imbalance: during the capital inflow episode, prices of non-tradable goods increased, pressing nominal wages up. This forced average productivity in manufactures to increase, in some cases with technological change, but mostly through the shutting down of low productivity firms, while labour was reallocated to low-productivity-growth non-tradable good sectors.

3 – The preliminary data for the bailout episode suggests that real wages have been evolving below productivity, not the other way around. By 2011, this trend was more evident in transportation and storage, financial services, and energy supply

4 – The preliminary data for 2012 also points to the case that real wages in manufactures fell short the productivity trend by some 4.6%. This suggests a scope for entrepreneurs to raise profits by hiring more workers. However, there are reasons to believe that in the current juncture, other factors apart from labour costs are constraining the entrepreneurs’ choices. This will be the subject of my next post.

Paradoxos do equilíbrio externo

Um dos posts anteriores defendeu que o desequilíbrio comercial da economia nacional só se tornou um problema de facto na última década. Ficou porém por esclarecer se o recuorecente  deste défice é estrutural ou apenas um subproduto inevitável da recessão que o país atravessa.

Uma forma de equacionar esta questão é através da imagem seguinte. Se assumirmos que a procura externa e a taxa de câmbio real são mantidas constantes, então a procura interna é a única variável que determina quer o comportamento do Produto (e portanto do emprego), quer o saldo comercial (isto é, a diferença entre exportações e importações).

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A recta sintetiza uma relação simples: se a procura interna aumenta (eixo dos xx), então também aumentam as importações e, com elas, o défice comercial (yy). Há assim um trade-off entre o nível de Produto e o equilíbrio externo. Para que a economia possa funcionar perto do seu potencial, e por essa via eliminar o desemprego, é necessário tolerar um défice em torno dos 6% do PIB; pela mesma razão, a obtenção de excedentes comerciais só pode ser conseguida se for sacrificada a procura interna.

A desvalorização da economia – seja interna, através dos preços, seja externa, através do câmbio – permite alterar os preços relativos da produção, encarecendo as importações e embaratecendo as exportações. Esta mudança de preços empurra a curva para a direita e faz com que a um mesmo nível de procura interna e externa corresponda agora um saldo comercial mais favorável. O trade-off inicial mantém-se: sempre que a procura interna aumenta, o saldo comercial deteriora-se; mas agora o pleno pode ser alcançado com uma balança comercial equilibrada.

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Perguntar se o excedente comercial actual é sustentável corresponde a perguntar se a economia portuguesa tem percorrido a curva azul, acumulando excedentes à custa da produção, ou se ela está a transitar para algum dos pontos da curva verde, através de uma  desvalorização real.

Os dados disponíveis apontam para um grau de desvalorização substancial. Em baixo apresento a desvalorização acumulada face a um benchmark (Alemanha), utilizando duas métricas de comparação de preços: os Custos Unitários do Trabalho (CUT – custos do factor trabalho) e o Deflator do PIB (preços finais). Ambos os indicadores comparam preços finais com a produtividade real.

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A desvalorização varia conforme as métricas, e está longe de ser suficiente para anular a apreciação real desde 2000. Mas está lá, e representa, quase necessariamente, uma alteração na posição de equilíbrio da economia portuguesa. Isto sugere que a curva que sintetiza o trade-off emprego/equilíbrio externo se terá deslocado para a direita.

Ou mais ou menos. Há algumas indicações de sentido contrário a que vale a pena fazer referência.

O primeiro é a dimensão da contracção do Produto e subida do desemprego. Os valores actuais são inaceitavelmente altos. A desvalorização permite mitigar a contracção do Produto ao longo do processo de ajustamento, mas o que temos visto é precisamente uma quebra muito superior ao que se esperava, apesar de o ajustamento competitivo estar em linha com as previsões iniciais. Os side effects que a desvalorização supostamente implicariam não estão a dar sinais de vida.

Quando olhamos para as coisas à lupa, outros problemas começam a aparecer. Por exemplo, a melhoria da posição competitiva dos países periféricos não parece estar a evoluir conforme a melhoria da sua posição competitiva. A Grécia, que já reduziu os seus CUT em quase 15% em apenas três anos, é a economia europeia onde as exportações menos cresceram. A apreciação real da economia alemã, por outro lado, não pôs qualquer travão no seu ímpeto exportador.

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Ao nível das importações, a situação parece melhor. Utilizando a diferença entre o crescimento do PIB e o crescimento das importações como métrica da ‘taxa de penetração’ das primeiras, a variação dos CUT parece de facto ter implicações para este indicador: quanto mais caem os CUT, mais caem as importações face ao que seria sugerido pela contracção do PIB. Mas a verdade é que a contracção do PIB tem uma grande componente de investimento, que depende muito de importações – e este gráfico pode traduzir apenas efeitos composicionais deste género.

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Não é fácil solucionar este puzzle. Talvez os indicadores de competitividade não sejam os melhores, ou estejam contaminados por factores diversos (há alguma evidência no caso da Irlanda, por exemplo). Talvez desvalorização avaliada pelos CUT revele sobretudo cortes salariais no sector público, irrelevantes para a competitividade externa (ver aqui, por exemplo).

Este assunto não passou ao lado do FMI, que no World Economic Outlook (caixa 1.3.3.) passou algum tempo a escrutinar o tema. A imagem de baixo, retirada do documento, mostra como a variação das exportações de cada país periférico pode ser explicada em termos de várias componentes.

Sem Título

O caso grego parece ser claramente um caso à parte, com uma imensa ‘matéria negra (residual) a ofuscar os contributos da procura externa e dos ganhos de competitividade. Para a generalidade da periferia, este resíduo até dá um contributo positivo. Mas os cálculos do FMI apenas são relativos ao período 2008/2012. As mesmas contas para 2010/2013 seriam muito mais úteis para esclarecer este curioso paradoxo.

O défice comercial é um problema recente, não um problema crónico

A balança comercial de Portugal é cronicamente deficitária. Foi preciso esperar até 2012 para que uma recessão sem precedentes invertesse este persistente padrão histórico.

Esta sincronia não é coincidência, e no Perestroika e Crise Crónica (e agora também no Massa Monetária) discute-se a sustentabilidade destes números. Ou seja, se o excedente comercial representa um novo ponto de equilíbrio, ou se, por outro lado, é um fenómeno transitório que decorre meramente da posição cíclica da economia. E que tenderá portanto a desvanecer-se assim que a procura interna reanimar.

A questão é que não se pode dizer que Portugal não tem um problema de competitividade, como já li em muitos sítios e me pareceu ver no artigo original do Rui. Ou então pode, mas nesse caso, por paradoxal que pareça, tem de se estar de acordo com o programa da troika: é preciso baixar o nível do PIB português até ao ponto que nos é permitido pela nossa actual capacidade de exportar (que é pouca…).

Esta passagem de Luciano Amaral afirma duas coisas que importa distinguir. Primeiro, que Portugal tem um problema crónico de competitividade, revelado por mais de 50 anos de desequilíbrios comerciais. Segundo, que na ausência de mecanismos de financiamento típicos (como transferências de emigrantes), só à custa da repressão forçada ( e eventualmente permanente) da procura interna será possível reverter esta situação. Este post foca-se na primeira questão, deixando a segunda para um próximo.

Competitividade é um termo multidimensional, que por questões de clareza prefiro sempre evitar*. Mas independentemente da forma como o nomearmos, o histórico défice comercial português é inegável. A questão é se este desequilíbrio é em si problemático – ou se traduz alguma debilidade intrínseca que conviria debelar.

A resposta é menos óbvia do que parece, porque há muitas razões para que um país acumule défices comerciais**. A existência de atraso económico relativo, por exemplo, pode justificar um saldo comercial negativo. Se este atraso significar (como habitualmente significa) que a taxa de crescimento do PIB será superior à das economias mais avançadas, os agentes económicos poderão desejar recorrer ao crédito para alisar o seu perfil de consumo.

Este efeito catching up também justifica, do ponto de vista dos credores, uma maior concessão de crédito ao país. Sendo as perspectivas de crescimento maiores na economia menos desenvolvida, haverá tendência para que o exterior canalize uma maior fracção dos seus investimentos financeiros para o país mais atrasado, de maneira a explorar taxas de rentabilidade superiores. O mecanismo que estabelece o equilíbrio é a taxa de juro: o efeito catching up estimula o investimento, que aumenta a taxa de juro, que por sua vez atrai financiamento estrangeiro. O défice comercial será tão alto quanto maior for o diferencial de crescimento económico entre credores e devedores. O facto de Portugal ter registado um crescimento económico superior à média europeia entre os anos 60 e 90 sugere que este efeito explicará pelo menos uma parte do desequilíbrio comercial desse período.

A segunda razão tem que ver com a interacção das várias componentes da Balança de Transacções Correntes (BTC). Portugal teve, durante várias décadas, um enorme afluxo de rendimentos, via remessas de emigrantes e apoios europeus. Luciano Amaral reconhece isto, mas não me parece que retire daqui as devidas consequências. É que estas transferências, aumentando o rendimento disponível da economia portuguesa, estimulam o consumo e, por isso, as importações.

Este mecanismo é óbvio se pensarmos numa família com um dado rendimento, que tenta maximizar o seu consumo mediante uma certa restrição orçamental. A partir do momento em que um subsídio lhe passa a ser atribuído numa base mensal, é não só compreensível como expectável que o seu consumo aumente. Esta é a resposta racional a um aumento do rendimento disponível.

A Irlanda é um caso útil para pensar sobre isto, porque fornece um contraponto perfeito. Entre 2000 E 2008, a Irlanda teve saldos comerciais na casa dos 13% do PIB, o que parece apontar para algum problema crónico de câmbio real desvalorizado. Mas este valor só parece estranho caso se omita o papel da balança de rendimentos – que oscilou, no mesmo período, em torno dos -14%. Como é óbvio, os dois pratos da balança não são independentes: a balança de rendimentos afecta o rendimento disponível, que por sua vez afecta o consumo interno e o saldo comercial. O superávit irlandês não é nem mais salutar nem mais inesperado do que o crónico défice português: ambos representam respostas do consumo interno aos constrangimentos colocados pela balança de rendimentos. A relação entre ambas as variáveis é claríssima no caso da Irlanda.

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Nada disto serve para dizer que o défice comercial português não é problemático. O ponto é que o défice só se torna um problema de facto a partir do final da década de 90, quando as balanças de rendimentos, capitais e transferências caem abruptamente e o crescimento estagna de forma inesperada – até aí, a dívida externa (avaliada pela Posição de Investimento Internacional) estava nuns modestíssimos 10% do PIB.

Sem as transferências unilaterais para abater às importações, e na ausência de crescimento que se veja no qual diluir a dívida entra numa espiral infernal. Tudo acaba com os bancos nacionais a serem escorraçados dos mercados interbancários e com o Estado português a pedir ajuda à Troika.

Sem Título

Neste sentido, o “crónico” défice comercial não é nem uma questão particularmente interessante nem um facto especialmente problemático. O défice comercial variou precisamente conforme seria de esperar, tendo em conta as outras componentes do saldo externo e as perspectivas de crescimento da economia. Isto, claro, até 1996/1997.

A partir daí, a estória muda de figura: os drivers do défice comercial invertem-se subitamente (as transferências desaparecem e o crescimento esfuma-se) e, de forma espantosa, a balança comercial fica rigorosamente na mesma. Aparentemente, o rendimento disponível perde tracção sobre consumo interno. Porquê? Este é que o verdadeiro quebra-cabeças, e a questão a que é preciso responder.

O euro, por si mesmo, é uma reposta pouco convincente. A ausência de moeda própria não impede o ajustamento da procura. Apenas torna este ajustamento mais doloroso, porque faz com que a necessária redução da despesa incida de forma indiferenciada sobre a produção interna e sobre as importações. Uma desvalorização altera os preços relativos, de modo a que a quebra da procura se concentre sobre bens importados, suavizando assim este processo.

Se o euro explica não explica a avidez de Portugal por absorver empréstimos, também não é dá uma grande ajuda para perceber a apetência do exterior em fornecê-los. Sim, sabemos que a desvalorização do escudo teria impedido atempadamente a acumulação de défices externos tão elevados. Mas não sabemos se o escudo teria desvalorizado em 2001 ou apenas em 2011. O escudo só teria desvalorizado caso se generalizasse a ideia de que a acumulação de desequilíbrios estava a atingir os limites do tolerável; ora, foi precisamente por não haver essa crença que os mercados toleraram que Portugal atingisse uma dívida externa líquida de 110% do PIB em 2009.

A haver algum efeito, ele terá sido provavelmente indirecto. A moeda única veio associada a um conjunto de restrições orçamentais (como o PEC) e monetárias (moeda controlada por um organismo germânico na sua essência), que podem ter podem ter reforçado a credibilidade do país enquanto porto seguro de investimentos. Eventualmente, ter-se-á também gerado a ideia de que haveria um aprofundamento institucional subsequente capaz de garantir bailouts em caso de falência iminente (uma ideia que se revelou correcta). Todos estes elementos podem ter conspirado para reforçar a percepção de que os desequilíbrios não colocavam problemas de maior e que o crédito poderia continuar a fluir.

De resto, note-se que não foi só com países do euro que os mercados foram coniventes com saldos externos negativos na casa dos 10%. Letónia, Lituânia, Estónia, Roménia e Islândia foram alguns dos países (só para citar casos que à altura estavam fora do euro) também tiveram registos pouco famosos sem que houvesse qualquer sinal de alarme. Aparentemente, todos pensaram que desta vez seria diferente. Não foi. Mas, neste puzzle, o euro não parece uma peça especialmente importante.

* O conceito de competitividade é comummente utilizado para referir coisas muito diferentes, como um alto de nível de PIB per capita, uma determinada taxa de câmbio real ou um saldo positivo na Balança de Transacções Correntes. No seu célebre paper sobre o ajustamento de Portugal ao euro, Blanchard definiu competitividade simplesmente como o inverso dos custos unitários do trabalho, e é nesse sentido que o termo aparece nos relatórios da Troika. Definido o conceito desta forma, todos os dados apontam para a ausência de qualquer problema de competitividade. Veja-se Miguel Lebre de Freitas, algumas contas rápidas neste blogue (I e II) e, sobretudo, Ricardo Reis.

** O FMI explora bem a questão numa staff discussion note de 2011, ironicamente chamada Should Current Account Balances be reduced