A balança comercial de Portugal é cronicamente deficitária. Foi preciso esperar até 2012 para que uma recessão sem precedentes invertesse este persistente padrão histórico.
Esta sincronia não é coincidência, e no Perestroika e Crise Crónica (e agora também no Massa Monetária) discute-se a sustentabilidade destes números. Ou seja, se o excedente comercial representa um novo ponto de equilíbrio, ou se, por outro lado, é um fenómeno transitório que decorre meramente da posição cíclica da economia. E que tenderá portanto a desvanecer-se assim que a procura interna reanimar.
A questão é que não se pode dizer que Portugal não tem um problema de competitividade, como já li em muitos sítios e me pareceu ver no artigo original do Rui. Ou então pode, mas nesse caso, por paradoxal que pareça, tem de se estar de acordo com o programa da troika: é preciso baixar o nível do PIB português até ao ponto que nos é permitido pela nossa actual capacidade de exportar (que é pouca…).
Esta passagem de Luciano Amaral afirma duas coisas que importa distinguir. Primeiro, que Portugal tem um problema crónico de competitividade, revelado por mais de 50 anos de desequilíbrios comerciais. Segundo, que na ausência de mecanismos de financiamento típicos (como transferências de emigrantes), só à custa da repressão forçada ( e eventualmente permanente) da procura interna será possível reverter esta situação. Este post foca-se na primeira questão, deixando a segunda para um próximo.
Competitividade é um termo multidimensional, que por questões de clareza prefiro sempre evitar*. Mas independentemente da forma como o nomearmos, o histórico défice comercial português é inegável. A questão é se este desequilíbrio é em si problemático – ou se traduz alguma debilidade intrínseca que conviria debelar.
A resposta é menos óbvia do que parece, porque há muitas razões para que um país acumule défices comerciais**. A existência de atraso económico relativo, por exemplo, pode justificar um saldo comercial negativo. Se este atraso significar (como habitualmente significa) que a taxa de crescimento do PIB será superior à das economias mais avançadas, os agentes económicos poderão desejar recorrer ao crédito para alisar o seu perfil de consumo.
Este efeito catching up também justifica, do ponto de vista dos credores, uma maior concessão de crédito ao país. Sendo as perspectivas de crescimento maiores na economia menos desenvolvida, haverá tendência para que o exterior canalize uma maior fracção dos seus investimentos financeiros para o país mais atrasado, de maneira a explorar taxas de rentabilidade superiores. O mecanismo que estabelece o equilíbrio é a taxa de juro: o efeito catching up estimula o investimento, que aumenta a taxa de juro, que por sua vez atrai financiamento estrangeiro. O défice comercial será tão alto quanto maior for o diferencial de crescimento económico entre credores e devedores. O facto de Portugal ter registado um crescimento económico superior à média europeia entre os anos 60 e 90 sugere que este efeito explicará pelo menos uma parte do desequilíbrio comercial desse período.
A segunda razão tem que ver com a interacção das várias componentes da Balança de Transacções Correntes (BTC). Portugal teve, durante várias décadas, um enorme afluxo de rendimentos, via remessas de emigrantes e apoios europeus. Luciano Amaral reconhece isto, mas não me parece que retire daqui as devidas consequências. É que estas transferências, aumentando o rendimento disponível da economia portuguesa, estimulam o consumo e, por isso, as importações.
Este mecanismo é óbvio se pensarmos numa família com um dado rendimento, que tenta maximizar o seu consumo mediante uma certa restrição orçamental. A partir do momento em que um subsídio lhe passa a ser atribuído numa base mensal, é não só compreensível como expectável que o seu consumo aumente. Esta é a resposta racional a um aumento do rendimento disponível.
A Irlanda é um caso útil para pensar sobre isto, porque fornece um contraponto perfeito. Entre 2000 E 2008, a Irlanda teve saldos comerciais na casa dos 13% do PIB, o que parece apontar para algum problema crónico de câmbio real desvalorizado. Mas este valor só parece estranho caso se omita o papel da balança de rendimentos – que oscilou, no mesmo período, em torno dos -14%. Como é óbvio, os dois pratos da balança não são independentes: a balança de rendimentos afecta o rendimento disponível, que por sua vez afecta o consumo interno e o saldo comercial. O superávit irlandês não é nem mais salutar nem mais inesperado do que o crónico défice português: ambos representam respostas do consumo interno aos constrangimentos colocados pela balança de rendimentos. A relação entre ambas as variáveis é claríssima no caso da Irlanda.

Nada disto serve para dizer que o défice comercial português não é problemático. O ponto é que o défice só se torna um problema de facto a partir do final da década de 90, quando as balanças de rendimentos, capitais e transferências caem abruptamente e o crescimento estagna de forma inesperada – até aí, a dívida externa (avaliada pela Posição de Investimento Internacional) estava nuns modestíssimos 10% do PIB.
Sem as transferências unilaterais para abater às importações, e na ausência de crescimento que se veja no qual diluir a dívida entra numa espiral infernal. Tudo acaba com os bancos nacionais a serem escorraçados dos mercados interbancários e com o Estado português a pedir ajuda à Troika.

Neste sentido, o “crónico” défice comercial não é nem uma questão particularmente interessante nem um facto especialmente problemático. O défice comercial variou precisamente conforme seria de esperar, tendo em conta as outras componentes do saldo externo e as perspectivas de crescimento da economia. Isto, claro, até 1996/1997.
A partir daí, a estória muda de figura: os drivers do défice comercial invertem-se subitamente (as transferências desaparecem e o crescimento esfuma-se) e, de forma espantosa, a balança comercial fica rigorosamente na mesma. Aparentemente, o rendimento disponível perde tracção sobre consumo interno. Porquê? Este é que o verdadeiro quebra-cabeças, e a questão a que é preciso responder.
O euro, por si mesmo, é uma reposta pouco convincente. A ausência de moeda própria não impede o ajustamento da procura. Apenas torna este ajustamento mais doloroso, porque faz com que a necessária redução da despesa incida de forma indiferenciada sobre a produção interna e sobre as importações. Uma desvalorização altera os preços relativos, de modo a que a quebra da procura se concentre sobre bens importados, suavizando assim este processo.
Se o euro explica não explica a avidez de Portugal por absorver empréstimos, também não é dá uma grande ajuda para perceber a apetência do exterior em fornecê-los. Sim, sabemos que a desvalorização do escudo teria impedido atempadamente a acumulação de défices externos tão elevados. Mas não sabemos se o escudo teria desvalorizado em 2001 ou apenas em 2011. O escudo só teria desvalorizado caso se generalizasse a ideia de que a acumulação de desequilíbrios estava a atingir os limites do tolerável; ora, foi precisamente por não haver essa crença que os mercados toleraram que Portugal atingisse uma dívida externa líquida de 110% do PIB em 2009.
A haver algum efeito, ele terá sido provavelmente indirecto. A moeda única veio associada a um conjunto de restrições orçamentais (como o PEC) e monetárias (moeda controlada por um organismo germânico na sua essência), que podem ter podem ter reforçado a credibilidade do país enquanto porto seguro de investimentos. Eventualmente, ter-se-á também gerado a ideia de que haveria um aprofundamento institucional subsequente capaz de garantir bailouts em caso de falência iminente (uma ideia que se revelou correcta). Todos estes elementos podem ter conspirado para reforçar a percepção de que os desequilíbrios não colocavam problemas de maior e que o crédito poderia continuar a fluir.
De resto, note-se que não foi só com países do euro que os mercados foram coniventes com saldos externos negativos na casa dos 10%. Letónia, Lituânia, Estónia, Roménia e Islândia foram alguns dos países (só para citar casos que à altura estavam fora do euro) também tiveram registos pouco famosos sem que houvesse qualquer sinal de alarme. Aparentemente, todos pensaram que desta vez seria diferente. Não foi. Mas, neste puzzle, o euro não parece uma peça especialmente importante.
* O conceito de competitividade é comummente utilizado para referir coisas muito diferentes, como um alto de nível de PIB per capita, uma determinada taxa de câmbio real ou um saldo positivo na Balança de Transacções Correntes. No seu célebre paper sobre o ajustamento de Portugal ao euro, Blanchard definiu competitividade simplesmente como o inverso dos custos unitários do trabalho, e é nesse sentido que o termo aparece nos relatórios da Troika. Definido o conceito desta forma, todos os dados apontam para a ausência de qualquer problema de competitividade. Veja-se Miguel Lebre de Freitas, algumas contas rápidas neste blogue (I e II) e, sobretudo, Ricardo Reis.
** O FMI explora bem a questão numa staff discussion note de 2011, ironicamente chamada Should Current Account Balances be reduced
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