Sim, a reestruturação é possível (só não é quando um homem quer)

A Ucrânia reestruturou a sua dívida pública. A reestruturação envolve – aparentemente, porque não consegui encontrar informação mais detalhada – uma redução de 20% do montante nominal da dívida a amortizar, e uma moratória do capital e juros, que adia pagamentos até 2019. Tudo parcialmente compensado por uma cláusula de indexação de juros à evolução do PIB.

O acordo parece ter escapado aos radares da maioria dos jornais nacionais (excepto o sempre atento Negócios) – eu próprio só dei por ela ao ler o excelente Tudo menos economia, de Francisco Louçã.

O título do post, porém, parece-me um pouco enganador: Sim, é possível: a reestruturação da dívida da Ucrânia.

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Reestruturações escondidas

Um paper interessante de Carmen Reinhart e Belen Sbrancia: The liquidation of Government Debt. Há muita coisa boa no estudo, mas aquilo que me chamou a atenção foi a quantificação precisa (ou tão precisa quanto possível) do impacto que as “reestruturações ocultas” tiveram durante mais de 30 anos. Só um cheirinho:

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A imagem de cima mostra a taxa de juro real de que os Bilhetes do Tesouro destes países conseguiram beneficiar. Através da repressão financeira ou da inflação-surpresa foi possível contar com vários períodos de taxas reais negativas – e, assim, reduzir a dívida sem, na prática, a repudiar. Assim é mais fácil. (E o quadro não mostra o número de períodos em que as taxas reais, apesar de positivas, ficaram, ainda assim, bastante abaixo das taxas praticadas no mercado.)

P.S.- Ainda sobre defaults (explícitos), um texto interessante no Vox: Was Argentina’s haircut excessive?

A Grécia pode sair do euro?

Esta pergunta tem sido muito repetida nos últimos dias. Mas nem sempre se percebe bem o que está em causa.

O abandono da moeda única não faz parte do programa do Syriza. O que o Syriza propõe é reestruturar a dívida, não pagar aos credores e anular algumas das medidas de austeridade, sem fazer qualquer referência a uma saída do euro.

A Comissão Europeia e o BCE podem achar as propostas radicais e indesejáveis, mas não é claro como é que da crítica se chega a uma possibilidade de expulsão, porque não há nenhum mecanismo legal que permita forçar um país a abandonar o euro. Se a Grécia não quer sair e a Alemanha não a pode expulsar, por que é que o Grexit voltou à baila?

Assim, a saída só poderia acontecer se um conjunto de eventos pouco agradáveis tornassem a presença grega na união monetária tão dolorosa que fizesse os responsáveis gregos repensarem a sua posição inicial, optando por sair pelo seu próprio pé. Tais como…

Durante uma boa parte do programa de ajustamento um default grego seria suficiente para tornar praticamente inevitável a saída. Não porque o pagamento das dívidas seja uma regra sagrada da Zona Euro, à qual todos os membros tenham de aderir, mas porque o default levaria ao colapso do financiamento, precipitando a Grécia para uma situação económica ainda mais grave do que a que vivia até aí (detalhes aqui, da página 7 em diante).

Em 2015, o argumento do financiamento é muito menos relevante, porque o orçamento grego já atingiu uma situação equilibrada. Não há dúvida de que um default levaria ainda à subida das yields; a questão é que, deixando a Grécia de precisar de financiamento, as oscilações das taxas de juro seriam largamente irrelevantes para o Estado grego. Quem não tem défice não precisa de financiamento.

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O não pagamento de juros poderia posteriormente ser canalizado para financiar uma parte das promessas eleitorais do Syriza. Qual a dimensão da almofada que o default permitira? Exactamente o valor do saldo primário – isto é, o excedente que o Orçamento grego tem depois de pagar juros, e que actualmente ronda os 4% do PIB. Provavelmente não dá para pagar todas as promessas, que valem 6 a 9% do PIB; mas daria para pagar algumas.

Um pequeno aparte técnico: ao valor do saldo primário tem de ser deduzido o valor de juros pagos aos próprios gregos, mas provavelmente o valor é residual. Em 2013, último ano para o qual há dados, a exposição da banca grega ao Estado era relativamente reduzida (linha laranja, em percentagem do total), e essa tendência deve ter-se acentuado nos últimos tempos.

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Uma possibilidade adicional seria o BCE cortar financiamento aos bancos gregos, que continuam altamente dependentes das ‘transfusões’ do banco central.

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Reestruturar a dívida pública – uma compilação

No fim-de-semana passado estive a falar sobre a reestruturação da dívida pública num debate organizado pelo LIVRE. Este assunto é antigo, e não quero cansar o leitor a repetir argumentos. Mas gostava de notar uma curiosidade de que só me apercebi durante o debate.

Um dos temas que surge com mais frequência durante estas discussões é a da “moralidade da dívida”. Honrar a dívida não pode ser visto como uma obrigação moral, porque os direitos dos credores competem directamente com os direitos dos cidadãos portugueses. Os valores entram em conflito e por isso a verdadeira questão moral é a de saber quais os direitos que deverão ter prioridade: os dos bancos internacionais ou os dos pensionistas, funcionários públicos e contribuintes.

A afirmação parece-me suficientemente razoável para ser consensual. Mas, ironicamente, são precisamente aqueles que defendem a reestruturação quem costuma apresentar a questão da dívida numa perspectiva ética e moral. Por exemplo, um dos convidados fez uma longa exposição acerca das origens da crise da dívida pública, que ele localizava muito mais na má gestão macroeconómica europeia do que em práticas orçamentais desregradas da periferia (curiosamente, concordei com quase tudo). E concluía com a ideia de que, como não fomos nós a causar o problema, é legítimo que não sejamos nós a resolvê-lo. O que é isto senão uma avaliação moral da dívida pública?

Infelizmente, não é assim que as coisas funcionam. Dizer que não devemos pagar a dívida porque a causa do problema é outra é um pouco como dizer que um doente oncológico só deve fazer quimioterapia se o cancro for culpa sua. Eu argumentaria que o problema da dívida é um pouco como o problema do cancro. É precisamente porque estas não são questões morais que não devemos decidir como as resolver com base nas implicações éticas das suas causas, mas com base nas consequências práticas das opções que temos em carteira.

A minha apresentação andou um pouco à volta das consequências práticas da reestruturação, do default ou de outra alternativa qualquer. O powerpoint pode ser acedido em Slides e aqui está um Texto um pouco mais abrangente que sistematiza as ideias. O pdf é basicamente uma compilação do que escrevi neste blogue ao longo do último ano e meio, mas articula melhor os argumentos e acrescenta alguma informação importante que nunca vi ser referida por aí (por exemplo, alguns detalhes do default argentino e números das reestruturações que costumam ser feitas).

Reestruturar segundo Louçã

Já está disponível a primeira proposta concreta de reestruturação da dívida pública – pelo menos, a primeira a incluir algumas contas.

E isto não é coisa pouca. Até agora, a reestruturação da dívida tinha sido sempre apresentada como uma proposta de contornos vagos e indefinidos, mantendo assim nebulosos os custos envolvidos. Os seus proponentes convergiam na intenção de impor perdas aos credores, mas deixavam convenientemente sem resposta as questões que esse default obrigava a colocar – como financiar o défice a partir daí, o que fazer aos certificados de aforro, etc. (quando as questões eram colocadas, a solução era, muitas vezes, não responder.)

A proposta de Francisco Louçã, Ricardo Cabral, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, por outro lado, tem a coragem de explicar ao detalhe o que propõe e o que implica. E só por isso merece alguma atenção.

O modelo, em linhas gerais, é simples e compreende duas etapas. A primeira passa por, mantendo inalterado o volume de dívida pública, alterar radicalmente as suas condições de pagamento. A generalidade dos títulos é trocada por novas obrigações de maturidade alargada (entre 2045 e 2054) e a taxa de juro é fixada em 1%. A segunda parte é a resolução bancária, em que se faz repercutir a redução do valor dos activos da banca no valor dos passivos, via reestruturação das suas responsabilidades – obrigações, depósitos, etc. (Alerta para puristas: os detalhes são consideravelmente mais complicados do que isto, e nem sempre é fácil perceber o que está verdadeiramente em causa.)

Os autores tiveram, reconheça-se, cuidado em contornar as objecções mais óbvias. A reestruturação é desenhada para fazer com que i) a redução do pagamento com juros seja suficiente para que o Estado possa funcionar sem défice primário, dispensando por isso o recurso adicional aos mercados; ii) o sector bancário possa repercutir a deterioração dos seus activos no passivo, através do consumo de capital, não pagamento das obrigações e uma redução restrita do montante de depósitos; iii) a redução do passivo aumente o excedente externo até ao ponto em que deixa de ser necessário contrair crédito para financiar a balança corrente e de capital; iv) ainda haja margem de manobra para utilizar as novas obrigações para recapitalizar organismos e fundos em dificuldade.

Dito isto, queria fazer duas críticas, expressar uma perplexidade e deixar uma ironia*.

Logo à partida, assume-se que uma boa parte das poupanças obtidas com a reestruturação seria, na verdade, financiada à custa de residentes em solo nacional – accionistas e obrigacionistas de bancos e depositantes acima do valor segurado pelo Fundo de Garantia de Depósitos (100 mil euros). O figurino do modelo parece-se – até nos seus detalhes – com aquilo que foi adoptado no Chipre em 2013, quando a reestruturação da dívida grega deixou os bancos cipriotas praticamente falidos.

Primeiro, a perplexidade. A imposição de perdas é inevitável, mas é curioso comparar a forma como a opinião pública percepcionou cada uma das soluções, aparentemente tão parecidas. A opção cipriota de atingir accionistas, obrigacionistas e depositantes foi vista como um tiro no pé de uma Europa sem líderes e sem visão; esta proposta, que implica atingir accionistas, obrigacionistas e depositantes, por outro lado, surge como um grito de revolta contra os credores.  

Isto sugere que, nestas coisas, o framing das questões tem um força considerável para condicionar a sua aceitação pública. O que se diria se fosse um oficial da Comissão Europeia a sugerir uma redução da taxa de juro do empréstimo europeu de 3 para 1%, financiada por uma taxa sobre depósitos e certificados de aforro – e com a garantia explícita de que os empréstimos do BCE são intocáveis? Na prática estaria a propor o mesmo, mas duvido que as reacções da opinião pública fossem idênticas.

A primeira crítica vem na sequência desta questão. Forçar perdas nos depositantes, obrigacionistas e accionistas tem um efeito adverso na riqueza financeira dos agentes económicos e, portanto, no consumo (para um português, perder o dinheiro de um depósito não é muito diferente de perder uma parte da pensão ou do salário). E os controlos de capitais, que forçosamente se seguiriam, têm um impacto adverso no funcionamento do sistema financeiro.

Tudo somado, o impacto macroeconómico poderia ser considerável. Mas, infelizmente, ele não aparece quantificado no documento. Apesar de essa quantificação ser reconhecidamente difícil, deveria ser fornecido pelo menos alguma ideia da ordem de grandeza em questão. A título de exemplo, o PIB cipriota caiu 6% em 2013 e deve recuar quase 5% em 2014. Obviamente, nem tudo resulta dos efeitos referidos. Mas…

Por outro lado, não importa apenas ter uma ideia dos custos implícitos a esta opção. É preciso igualmente quantificar os custos da alternativa a esta opção, que é alcançar as metas orçamentais e reduzir a dívida pública em linha com o determinado no Tratado Orçamental (TO).

Esta questão tem sido recorrente neste blogue, e por isso não vou repetir os argumentos ao detalhe. Mas vale a pena, pelo menos, deixar alguns links. As metas do TO não só são exequíveis como podem ser alcançadas de forma (quase…) indolor através de um acordo político de médio prazo para o controlo da despesa pública. Olhar para 2010/2013 e extrapolar rácios esforço/resultados é profundamente enganador; na prática, aquilo que ainda falta fazer não é muito diferente daquilo que foi feito, por exemplo, entre 2005 e 2007.

O problema, e esta é a segunda crítica, é que o documento de Louçã et al não só não quantifica os custos da reestruturação como fornece uma estimativa absurda dos custos marginais que estão implícitos ao cumprimento do TO , numa análise ligeira que fica bem distante do rigor que os autores colocaram no resto do documento.

Assim, há  referências despropositadas ao falhanço da suposta “austeridade expansionista” (uma ideia exotérica que na verdade nunca foi levada a sério por ninguém na Troika), o prenúncio de sacrifícios durante mais vinte ou trinta anos, supostamente impostos pelo Tratado Orçamental (uma confusão habitual entre níveis e variações) e até um erro grosseiro de quantificação dos resultados das medidas de consolidação orçamental – a redução do défice entre 2011 e 2014 é quantificada em cerca de 250 milhões de euros, quando o valor real é mais de 20 (!) vezes superior**.

Finalmente, a ironia. Esta proposta de reestruturação só funciona (ou só funciona nestes moldes) porque Portugal tem um saldo primário equilibrado. Isto é, o défice sem juros já é tão pequeno que, se se baixar a taxa de juro média de 4 para 1%, já não é preciso contrair novos empréstimos. Mas nem sempre foi assim. Em 2011, por exemplo, uma proposta deste género não funcionaria: mesmo a redução da taxa de juro para 0% não chegaria para tornar o Estado financeiramente auto-suficiente. Continuaria a precisar de empréstimos para cobrir as suas despesas – empréstimos que entretanto teriam secado, forçando o Estado a atingir imediatamente um saldo primário equilibrado. 

Assim, a austeridade seria reforçada, em vez de atenuada, por esta proposta. Claro que a proposta é feita em 2014 e não em 2011- e os seus méritos e deficiências devem ser avaliados pelos prós e contras que podem ser atingidos no actual contexto, e não no que vigorava há dois ou três anos. Mas não deixa de ser irónico que a reestruturação da dívida, tão acarinhada como alternativa à austeridade, só se torne economicamente viável porque entretanto já se cortou mais de 3% do PIB de défice primário.

* Assumindo, claro, que todas as contas estão correctas.

** A origem do erro é fácil de identificar. Os autores comparam o saldo orçamental de 2014 com o saldo de 2011 e chegam a um valor diminuto. Acontece que o saldo de 2011 está (positivamente) afectado pela incorporação de fundos de pensões. Quando se eliminam os efeitos one-off, a consolidação efectiva ultrapassa facilmente os 5.000 milhões de euros.

Lições da história e default inevitáveis

Nota prévia: Pequena reflexão livre sobre uma questão perfeitamente marginal

Uma das principais conclusões da investigação de Rogoff e Reinhart (R-R) é que os defaults são muito mais generalizados do que se costuma reconhecer. Os países falham as suas promessas, e falham muito. Mesmo as economias desenvolvidas deixaram frequentemente de pagar as suas dívidas – e se esse facto se tornou menos evidente após a II Guerra Mundial, isso é apenas porque os defaults foram conseguidos de formas mais subtis do que o simples ‘não pagamos’- através da inflação ou da repressão financeira.

R-R concluíram que os defaults tendem a acontecer em níveis de dívida pública que não são tão elevados quanto isso, e que ficam muitas vezes abaixo dos níveis que se verificam nalguns países hoje em dia. Chamemos-lhe a Lei de Rogoff: quando a dívida atinge determinado ponto, a reestruturação é praticamente inevitável.

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Daqui muita gente – embora não necessariamente o próprio Rogoff – concluiu que uma reestruturação de dívida europeia seria, neste momento, inevitável. Os Governos europeus estariam simplesmente a cavar a sua própria sepultura ao embarcarem em programas violentíssimos para evitar um default que a história provava ser praticamente certo.

Olhar para as coisas desta perspectiva obriga a colocar questões adicionais. Por que é que os Governos de ontem interromperam tão facilmente os pagamentos? Por que é que os Governos actuais parecem tão resolutos a evitar esse destino? Haverá alguma diferença entre ambos? Ou é só uma questão de circunstâncias diferentes?

Fazer ou não fazer default é, provavelmente, e como qualquer outra decisão, uma questão de custos e benefícios. Os benefícios são fáceis de perceber: cada euro que se poupa em juros é um euro que se gasta em escolas ou hospitais, ou um euro que se poupa em impostos. Já os custos podem ser dois: i) problemas legais de credores que recorrem a tribunais para reaver dívidas, ao estilo argentino; ii) impossibilidade de aceder a novo financiamento por incapacidade de honrar o que já existe – um problema que provavelmente será menor para quem já tem saldos primários e, portanto, não precisa de crédito adicional caso deixe de pagar a dívida.

Agora imagine-se um país que se vê perante uma situação de subida dos juros. Provavelmente, a subida dos juros reflecte problemas com os fundamentais do país (dívida alta), mesmo que posteriormente se torne um processo auto-alimentado. À medida que as taxas sobem, o país pode implementar um plano de consolidação orçamental. Mas, caso os mercados não reajam, e as taxas de juro se tornem demasiado altas (havendo, obviamente, expectativa de que elas se mantenham altas), então o default faz todo o sentido. Porquê? Porque o problema que o serviço da dívida tenta evitar – isto é, o colapso dos fluxos de financiamento – já ocorreu. Uma vez que os custos do default já se materializaram, resta agora colher os seus benefícios: as poupanças correspondentes ao serviço da dívida.

Caso a maioria da dívida seja face ao sector residente (ou denominada em moeda própria), o soberano pode agora minimizar os problemas legais desta opção através de um default soft, via inflação ou repressão financeira. Isto é, paga a dívida na sua totalidade, mas num valor real que já foi erodido através da subida dos preços; ou garante o refinanciamento dessa dívida através da mobilização forçada das poupanças internas.

Este raciocínio simples de custo/benefício explica não apenas por que é que tantos países fizeram default ao longo da história – porque era a resposta racional a uma subida abrupta dos juros -, mas também por que é que tantas economias se mostram agora relutantes em seguir o mesmo caminho.

Em primeiro lugar, a criação da União Europeia e da Zona Euro obrigou vários dos países que agora estão em dificuldades a abdicar de dois mecanismos – a política monetária e o controlo de cambiais – que permitiram fazer um default suave. Não estando essa opção em cima da mesa, restava a escolha difícil: um default puro e duro, reduzindo os juros a pagar ou o capital a amortizar.

Mas entretanto houve outra alteração institucional: a criação, por parte da Zona Euro, de uma rede de segurança que permitia financiamento a juros baixos. Este mecanismo tornou a opção pelo default muito menos atraente. Desta forma:

  • Sem a Europa na rectaguarda, a Grécia teria perdido acesso a financiamento em 2010 e a opção seria entre i) garantir o serviço da dívida e ajustar o necessário para atingir um défice zero; ii) abdicar do pagamento dos juros e ajustar apenas o necessário até atingir um saldo primário equilibrado.

 

  • A partir do momento em que a Europa se chega à frente, as mudaram e passaram a ser: i) ajustar no montante exigido pela Troika; ii) fazer default e ajustar no montante necessário para atingir um saldo primário equilibrado.

Como a exigência implícita a i) era bastante inferior a ii), o default não foi seguido. E este mesmo processo percorreu todos os outros países: a rede de segurança europeia tornou o default uma opção relativamente mais dolorosa do que o ajustamento, e garantiu que essa preferência relativa se mantinha mesmo à medida que os custos do ajustamento iam aumentando. A redução das taxas de juro e prolongamento das maturidades do financiamento oficial permitiu aos países da periferia continuarem a avaliar como mais interessante a opção de não fazer default.

Em suma, a razão por que é enganador olhar para o registo histórico e inferir uma espécie de Lei de Rogoff, como se houvesse níveis de dívida a partir dos quais o default é inevitável, é que há uma diferença de regime entre o período histórico do qual R-R retiraram os seus dados e o período actual. A mudança de circunstâncias faz com que a regra histórica «alta dívida leva ao default» perca a sua validade. E isto é a razão pela qual neste momento a Grécia tem uma dívida de 177% do PIB e aparentemente ninguém tem medo de um default.

P.S.– Um observador cínico poderia argumentar que a alteração de regime não é assim tão óbvia – afinal de contas, há décadas que o FMI anda por aí a servir de bombeiro. Por outro lado, a verdade é que desde os anos 50 que os países desenvolvidos de facto não têm – de acordo com R-R – tido episódios de default jurídico. Todos os ‘não pagamentos’ foram feitos através de repressão financeira ou inflação.

Uma dívida de 177% do PIB é sustentável?

A Grécia acabou o ano de 2013 com uma dívida pública de 177% do PIB. Este é um valor extraordinariamente alto, e a experiência histórica sugere que dívidas desta magnitude acabam, mais cedo ou mais tarde, por ser reestruturadas (no caso da Grécia, seria a segunda vez). Estranhamente, os mercados parecem não acreditar nesse cenário.

A imagem de baixo mostra o nível de dívida pública da Grécia em 2013, comparado com uma amostra de países desenvolvidos para um período bastante alargado de tempo. Em mais de 130 anos, só por três vezes houve países com níveis de dívida superiores, e dois deles em períodos de guerra.

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Mas mesmo dívidas inferiores a este valor acabaram, com frequência, por ser reestruturadas. Apesar de as reestruturações de dívida terem custos elevados, houve várias situações em que, confrontadas com um pagamento de juros muito exigente, as autoridades pesaram os prós e contras e optaram pelo default – se não de jure, pelo menos de facto, através do pagamento total do capital mas erodindo o seu valor real via surtos de inflação ou repressão financeira. Por que é que ninguém acredita que a Grécia faça o mesmo agora?

Uma explicação é simples. A reestruturação de facto, através de controlo de capitais e manipulação da taxa de inflação, levanta menos problemas do que o haircut puro e duro. Mas o primeiro é proibido na União Europeia e o segundo é impossível na Zona Euro. Resta o não pagamento directo do capital em dívida, uma opção que levanta problemas mais graves. Portanto, a simples presença da Grécia na união monetária diminui a probabilidade de um default adicional, porque aumenta os custos dessa opção.

Por outro lado, talvez a dívida pública não constitua um encargo tão grande quanto parece à primeira vista. Os custos da dívida pública, ao contrário da dívida privada, não advêm directamente do montante de capital em dívida, uma vez que esse capital pode nunca vir a ser pago. O problema é quando os recursos que essa dívida obriga a mobilizar – isto é, os juros da dívida – se tornam incomportáveis. Mas isto também significa que é possível compensar o crescimento da dívida com uma taxa de juro menor, de modo a estabilizar os encargos reais.

De facto, é nesta situação que a Grécia está. Apesar do nível brutal de dívida, o financiamento da Troika e a reestruturação posterior fizeram com que a taxa de juro efectiva caísse a pique.

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Historicamente, a ausência de uma rede de segurança fez com que o crescimento da dívida implicasse uma subida dos juros, o que por sua vez alimentava a dívida e conduzia a uma espiral infernal. Mas, no caso grego, o financiamento europeu quebrou este círculo e fez com que o crescimento da dívida fosse compensado, e não agravado, pelo comportamento da taxa de juro. Ou seja, um nível alto de dívida pública é, para a Grécia, e em termos relativos, um fardo menor do que um mesmo nível de dívida seria para qualquer país representado na primeira imagem (1880-2010). Uma despesa de 5,1% do PIB com juros é muito, mas a diferença face à média dos países europeus não é assim tão grande – são menos de 2p.p. face à Bélgica, por exemplo.

Outro factor importante – ou talvez o factor – é que o ajustamento orçamental está praticamente feito. A Grécia é, neste momento, o país da Zona Euro com maior superávit primário (2,7% do PIB).

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Com um superavit primário de 2,7%, crescimento nominal de 3 a 4% (previsões da Comissão Europeia) e uma taxa de juro abaixo dos 3%, não é praticamente preciso tomar mais medidas de consolidação para garantir que a dívida começa a descer a partir daqui e ao longo dos próximos anos. Os incentivos da Grécia para reestruturar novamente a dívida são praticamente nulos, porque a opção, agora, é entre uma reestruturação que teria custos e uma consolidação cujos custos já foram assumidos. A assimetria de custos marginais torna a segunda opção muito mais vantajosa. Se os investidores fizerem um raciocínio semelhante, é perfeitamente racional que aceitem emprestar à Grécia a 5%.

A ideia de que uma dívida de 177% é insustentável e terá de ser reestruturada mais cedo ou mais tarde é uma ‘lição da história’. Mas o registo histórico do qual esta lição é extraída é uma História em que dívidas altas conduziam a juros altos e geravam uma espiral de custos imparável, e em que havia vários mecanismos financeiros à disposição para gerir bem o default. O aparecimento da União Europeia e Monetária, com os seus mecanismos de backstop e proibição de controlo de capitais e ‘inflação da dívida’, gerou uma situação (para bem ou para mal) em que o default se tornou uma opção relativamente mais dolorosa e em que uma dívida de 177% é ‘facilmente’ gerível.

Um pequeno comentário final, que me parece relevante. A sustentabilidade desta dívida é garantida pelo financiamento europeu (que fixa os juros), e por um saldo primário de 2,7% que só foi obtido através de uma consolidação orçamental de mais de 15% do PIB ao longo de cinco anos. Não há registo de nenhum país desenvolvido que tenha feito um ajustamento desta dimensão. Isto sugere uma pequena reformulação da pergunta inicial: muito bem, a dívida é sustentável porque a taxa de juro é baixa, e porque a Grécia conseguiu uma melhoria impressionante do seu saldo primário. Mas por que é que a Grécia aceitou fazê-lo?

É possível argumentar que, havendo défice primário, a única alternativa seria a saída do euro: a Grécia consolidou pela simples razão de que tinha de consolidar; mas, tendo em conta o que aconteceu, será que a saída do euro teria sido uma ideia assim tão má face à alternativa?

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O colapso da actividade económica teve proporções bíblicas – nem os Estados Unidos durante a Grande Depressão passaram por uma coisa assim. E não sei até que ponto os próprios gregos, se soubessem antecipadamente que seriam estes os custos, não teriam optado por sair da moeda única.

É possível que erros de previsão tenham tido um papel importante: como os custos de ficar no euro foram subestimados, os programas de consolidação lá foram sendo implementados. Quando se tornou óbvio que as coisas não estavam bem a correr como o previsto, uma boa parte do caminho já tinha sido percorrido. E, por essa altura, a opção era entre uma saída do euro com custos que teriam de ser integralmente assumidos, ou concluir um programa cujos custos já tinham sido (pelo menos em parte) absorvidos.

A situação com que a classe política grega se confrontou em 2012 talvez tenha sido semelhante à de descobrir que se andou a trilhar o pior caminho para chegar ao destino – mas, quando se deu conta disso, já se estava quase no ponto de chegada, e seguir esse caminho até ao fimera melhor do que voltar atrás e percorrer o melhor trajecto.

 

Saldos primários em tempos de crescimento

Segundo o FMI, a sustentabilidade da dívida pública portuguesa exige superávites primários na casa dos 3% do PIB. Que sacrifícios são necessários para colocar o saldo orçamental a este nível? O post anterior tentou mostrar que o esforço adicional é mais pequeno do que parece – e muito menor do que seria sugerido pela experiência dos últimos três anos. Vale a pena utilizar um exemplo concreto para tornar o raciocínio mais claro.

A imagem de baixo mostra a evolução do saldo primário do orçamento português entre 2010 e 2013 (azul escuro) e a previsão do FMI para os próximos anos (azul claro). A linha vermelha representa a melhoria acumulada do saldo relativamente a 2010. Os valores não são exactamente iguais aos que aparecem nos documentos oficiais porque foram corrigidos para o impacto de medidas extraordinárias e pontuais.

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Estes são os resultados: até agora, uma melhoria do saldo primário de 4,5% do PIB. Para perceber os custos, é necessário justapor a estes valores o volume de medidas de consolidação orçamental. A Comissão Europeia faz uma compilação dessas medidas nos relatórios trimestrais (procurar a tabela Artihmetic of the government deficit), segundo a qual a dose de austeridade implementada entre 2010 e 2013 terá rondado os 12,2% do PIB.

Fazendo as contas, conclui-se que para cada euro de melhoria do saldo foi necessário cortar 2,7€ (12,2/4,5=2,7). Ou, fazendo as contas de outra forma, que cada euro de cortes orçamentais se traduziu numa melhoria orçamental de apenas 0,37€.

Vejamos agora um caso diferente. O país representado no quadro de baixo consolidou as contas públicas em 3,6% do PIB em apenas dois anos. O ajustamento acumulado é muito inferior àquilo que está implícito nas simulações do FMI para 2010-2017; mas o ajustamento médio anual ao longo destes dois anos é de 1,8% do PIB, um valor que na verdade é mais alto do que aquilo que Portugal conseguiu nos últimos três anos.

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Que país é este, que passou de um défice de 4% para um saldo primário praticamente equilibrado em apenas dois anos, enquanto o PIB real crescia a uma taxa média de 1,5% ao ano?

Nada mais, nada menos, do que Portugal em 2005-2007.

E quais foram os custos? Infelizmente, na altura ainda não havia a prática de sistematizar nos Orçamentos anuais as medidas de consolidação, mas um grupo de investigadores do FMI tem vindo a produzir estimativas para esse período. De acordo com estas estimativas (que têm um upward bias considerável*), entre 2005 e 2007 terá havido cortes em torno dos 3,1% do PIB. Ou seja, cada euro de medidas melhorou o saldo primário em 1,16€.

A diferença entre os dois períodos é impressionante quando se comparam estes ‘rácios de eficiência’ (ler também Tiros de pólvora seca). Mas a explicação é simples. Em 2010-2013, a consolidação foi feita sobre uma economia a contrair, o que corroeu as receitas fiscais e neutralizou uma boa parte do efeito dos cortes – à semelhança do que aconteceria a um atleta que tentasse correr contra uma passadeira rolante. Em 2005-2007, por outro lado, a economia estava a crescer, o que aumentava as receitas fiscais e gerava uma melhoria inercial da posição orçamental. O atleta estava a correr a favor da passadeira rolante.

O quadro de baixo sistematiza esta ideia, isolando 2014 por ser este o primeiro ano de programa em que se espera crescimento positivo. A coluna ‘rácio’ indica quantos euros de austeridade são necessários para melhorar o saldo primário em um euro. Para os próximos anos, o rácio estará mais próximo de 0,86 (e provavelmente será inferior a isto) do que 2,73.

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O que aconteceu em 2005-2007 sugere que até períodos de crescimento reduzido permitem diminuir o défice sem que impor custos extraordinários. Porquê então a dificuldade crónica da generalidade dos países europeus em conformarem-se à regra do défice de 3% desde a formação do euro?

A resposta tem muito mais a ver com questões de economia política do que de política económica. Apertar o orçamento (mesmo que de forma passiva, isto é, manter o crescimento da despesa abaixo do crescimento da receita) tem custos políticos sérios, e portanto há a uma irresistível tentação de esticar a política orçamental e fiscal até aos limites máximos tolerados por Bruxelas.

De resto, não deixa de ser revelador que muitos países europeus tenham de facto levado a cabo ajustamentos orçamentais notáveis no período de convergência nominal antes da adesão ao euro – melhorias que foram bruscamente travadas a partir do momento em que atingiram o critério do défice de 3%. É improvável que a consolidação orçamental tenha sido uniformemente travada por ‘fadiga da austeridade’. Uma hipótese mais plausível é que os países em causa se limitaram a cumprir os ‘mínimos olímpicos’ para integrarem o clube do euro, e limitaram-se, a partir daí, a gerir o orçamento em torno desses limites.

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Para estes países, ter défices de 3% era tão impensável em 1985 quanto é para nós ter superávites primários de 3%. Mas não era porque o ajustamento orçamental implícito a este valor fosse insuportavelmente violento. Era porque não havia incentivos aos decisores de política económica para imporem constrangimentos à gestão orçamental. Quando esses incentivos – isto é, a possibilidade de adesão ao euro – foram criados, os défices rapidamente convergiram para os 3%. Neste contexto, dizer que Portugal nunca obteve superávites primários de 3% é muito pouco relevante para aferir a exequibilidade desta meta.

P.S.- Para que fique tudo claro: este post não defende que a consolidação orçamental não tem custos, mas sim que estes custos são fortemente variáveis. Em síntese: a) os custos da consolidação orçamental para 2014/2015 são significativamente menores do que os custos para o período 2010/2013; b) para o período posterior (2016 em diante) os custos são negligenciáveis, na medida em que o ajustamento orçamental pode ser feito de forma meramente passiva. Ou seja, a sustentabilidade da dívida pode ser assegurada sem grandes custos adicionais relativamente àquilo que já foi feito.

*A base de dados do FMI avalia as medidas de consolidação através dos Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC) entregues a Bruxelas, pelo que na verdade é uma mera quantificação de intenções declaradas. A experiência mostra que entre aquilo que é anunciado e efectivamente implementado vai uma grande diferençae de facto algumas das medidas elencadas no PEC acabaram por não se verificar na execução orçamental. Por esta razão, as medidas orçamentais identificadas pelo FMI sobrestimam fortemente a verdadeira dimensão da consolidação. 

 

A dívida pública é sustentável?

A dívida pública é sustentável? A resposta a esta pergunta exige duas coisas. Primeiro, clarificar com precisão o que se entende por sustentabilidade. Segundo, assumir certas hipóteses e fazer alguns cálculos.

Estes passos prévios são importantes porque o debate em torno da reestruturação mostrou que pessoas diferentes utilizam o termo sustentabilidade em sentidos diferentes. E que esta sustentabilidade é frequentemente vista como matéria de opinião ou preferência pessoal. Argumenta-se que a dívida é insustentável porque é grande, porque o crescimento é baixo, ou porque os juros são altos; mas não há nenhum cálculo rigoroso que integre todos os factores relevantes.

Não há uma definição unânime de sustentabilidade da dívida, mas no caso de Portugal não é difícil consensualizar uma definição: a dívida pública é sustentável se puder ser reduzida (ou estabilizada) para um conjunto de hipóteses e políticas plausíveis. Isto é, a diminuição da dívida não deve depender de valores irrealistas para o crescimento económico, impossíveis de atingir, ou de ajustamentos orçamentais extraordinários, impossíveis de aplicar.

É importante notar que o que está aqui em causa não é ‘pagar a dívida’. Ao contrário de uma família, que tem um horizonte de vida finito dentro do qual tem de conseguir honrar as suas dívidas, um Estado pode viver perpetuamente endividado – o importante é que este endividamento não entre numa trajectória explosiva. A dívida tem de parar de subir e, idealmente, descer para valores razoáveis. Mas não tem de ‘ser paga’ no sentido tradicional do termo.

A trajectória da dívida pública (dívida em % do PIB) depende de três variáveis: a) o crescimento nominal do PIB (crescimento real mais inflação), já que este determina o tamanho do denominador; b) a taxa de juro da dívida pública, da qual dependem os gastos com o serviço da dívida e, portanto, crescimento inercial da dívida; c) o saldo primário, que é o défice orçamental expurgado da despesa com juros. Um saldo positivo abate à dívida, um saldo negativo aumenta-a.

Com estas três variáveis são possíveis combinações. Se o crescimento nominal do PIB for igual à taxa de juro, é necessário um saldo primário equilibrado para manter a dívida constante; se o crescimento superar a taxa de juro, então é possível relaxar um pouco o saldo (e o inverso também é verdade).

O FMI integra todas estas variáveis num modelo estandardizado (a doutrina está aqui, as instruções de utilização estão aqui e até é possível aceder ao próprio modelo) que aplica periodicamente à generalidade das economias. A última avaliação de Portugal consta do relatório do 10º exame regular, e aparece reproduzida em baixo.

Sem Título

A previsão do FMI aponta para uma descida da dívida já em 2014, mas esta previsão, em si, não é muito relevante, porque pode resultar apenas de whishful thinking dos técnicos. Para perceber se este cenário é plausível é preciso olhar para as hipóteses subjacentes:

  • Primeira hipótese: a taxa de juro implícita da dívida (quarta linha do quadro) começa nos 3,4% e sobe gradualmente até aos 4%.

Qual é o risco de a taxa de juro ser superior a 4%? Muito baixo. A grande maioria da dívida pública resulta de empréstimos da Troika, de juros bastante simpáticos (3% em média) – e estes empréstimos têm uma maturidade convenientemente prolongada, o que permite ‘trancar’ num nível baixo de juros uma boa fatia da dívida pública. Isto é, mesmo que Portugal tenha de se financiar em condições difíceis a partir de 2015, a taxa de juro média será pouco sensível aos humores do mercado (nota: o FMI assume que o Estado se financia em mercado a juros em torno dos 5,5%; neste momento, as OT’s a 10 anos têm taxas inferiores a 5%).

  • Segunda hipótese: o crescimento económico (primeira linha) converge para 1,8%.

Para 2014, a previsão é reconhecidamente conservadora – os 0,8% serão quase de certeza ultrapassados. Daí em diante, a situação é menos clara. O crescimento médio da última década, atéà Grande Recessão (2000-2007), foi 1,5%. Por outro lado, este foi o período de crescimento mais baixo desde os anos 60, e um mistério difícil de explicar até pelos melhores economistas (ver The Portuguese Slump and Crash, de Ricardo Reis, e os comentários na secção de discussão). Tendo em conta o nível de desenvolvimento da economia portuguesa, as projecções demográficas e a evolução recente da produtividade, um crescimento tendencial de 1,8% não é um valor irrealista. Debatível e discutível, certamente, mas nada que justifique as críticas de “suposições absurdas” que foram feitas ao FMI.

  • Terceira hipótese: crescimento dos preços (segunda linha) converge para 1,8%.

O crescimento dos preços na economia portuguesa terá ficado entre 1,5 e 2% em 2013 (embora este valor resulte em boa parte da devolução dos subsídios aos funcionários públicos – uma longa história). A meta do BCE para a evolução dos preços é de 2%, e é aceitável pressupor que os preços cresçam um pouco abaixo da média europeia nos próximos anos (nota técnica: então mas não estamos em deflação? Não exactamente. Convém distinguir entre o Índice de Preços no Consumidor, onde há de facto quebra de preços, e o deflator do PIB, que é o indicador relevante neste caso).

  • Quarta hipótese: O saldo primário (quinta linha) atinge 3,2% do PIB em 2019.

Esta é a variável crucial. Para atingir 3,2% do PIB em 2019, o saldo primário tem de melhorar em cerca de 3 pontos percentuais do PIB. E 3% do PIB são cerca de 5000 milhões de euros. Significa isto que a redução da dívida pública só é assegurada com medidas deste montante? Não, nem por sombras. Isto porque uma parte da consolidação orçamental é inercial: o défice reduz-se automaticamente em virtude do crescimento económico, por arrasto das receitas fiscais – não o suficiente para atingir a melhoria de 3 p.p., mas o suficiente para reduzir significativamente o volume de medidas de austeridade necessárias para diminuir a dívida.

Qual a dimensão deste efeito? É bastante grande. Caso o PIB cresça 3% em termos nominais, e esse crescimento se transmita integralmente às receitas fiscais e contributivas (elasticidade unitária), então só este efeito é suficiente para reduzir o défice em mais de 1000 milhões de euros – 0,6 pontos percentuais do PIB. Como é óbvio, para que esta consolidação seja efectiva é necessário garantir que a despesa pública se fixa ao nível do período anterior (um cap nominal, portanto).

Se o crescimento nominal for de 3% ao ano até 2019, então esta dinâmica é suficiente para melhorar o saldo orçamental nos 3 p.p. necessários. Por que razão exige então a Troika cortes adicionais em 2015? A razão é simples: porque esta consolidação ‘inercial’ só se concretiza caso a despesa pública fique congelada até 2019, uma suposição obviamente irrealista*. De facto, a Troika assume que a despesa pública primária começa já a crescer a partir de 2016, entre 1,2 e 2% ao ano (página 40).

Segundo o FMI, as medidas em causa rondarão os 2000 milhões de euros em 2015. Serão necessárias mais medidas? O relatório não dá indicações nesse sentido, e algumas contas sugerem que esses 2000 milhões são de facto suficientes para atingir a meta de 2015 – e que a melhoria do saldo primário que se prevê daí em diante resulte única e exclusivamente da consolidação inercial já referida.

O que é importante reter é que, apesar de as simulações do FMI assumirem de facto uma melhoria constante do saldo primário até 2019 no valor de 3% do PIB, essa melhoria não decorre de medidas de austeridade dessa magnitude, mas sim de um valor muito mais modesto. O resto é produto da evolução das receitas fiscais, sendo que essa evolução, por si só, até é suficiente para acomodar aumento da despesa de 2016 em diante. A ideia de sustenabilidade da dívida só pode ser garantida através da repetição da ‘dose’ de 2012 e 2013 não leva em conta que uma boa parte do défice é endógena e cavalga a economia – este efeito foi negativo em 2011, 2012 e 2013, mas passa a ser positivo daqui para a frente.

A propósito disto, a imagem de baixo mostra o comportamento do saldo primário de duas economias nórdicas no rescaldo de graves recessões (a finlandesa provocada por problemas financeiros e pelo colapso da União Soviética, com quem tinha ligações comerciais importantes, e a sueca no seguimento da implosão do seu sistema bancário).

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* Não seria então mais fácil congelar a despesa e evitar mais cortes? Possivelmente sim, mas há um problema sério com esta opção. As medidas de austeridade podem ser decididas, supervisionadas e confirmadas pela Troika enquanto Portugal ainda está abrangido por um Memorando de Entendimento. O congelamento da despesa fica dependente da boa vontade que a classe política tiver durante os próximos quatro ou cinco anos. É compreensível que a Troika prefira a primeira opção, sobretudo depois de ter constatado a impossibilidade de acordos interpartidários que permitam clarificar a trajectória futura da despesa pública nos próximos anos. Mais sobre isso neste post.

Três notas sobre o manifesto da reestruturação da dívida pública

O manifesto pela reestruturação da dívida pública faz algum sentido. Ou faria, se tivesse sido enviado ao Governo em envelope lacrado. E se tivesse sido ocultado dos media. E se tivesse sido formalizado há um ano, quando a posição negocial portuguesa era bastante melhor. No contexto em que foi feito, é mais um tiro no pé do que um contributo relevante. Sobre este tema, deixo três comentários.

O primeiro tem que ver com o diagnóstico. O manifesto começa com algumas referências demasiado ligeiras e inconsequentes à especialização da economia portuguesa, à concorrência da globalização, à baixa produtividade e a outros problemas estruturais que têm, à primeira vista, pouco ou nada que ver com dívida pública. Concordamos que estas questões são problemáticas, mas não é nada óbvio a razão por que são invocadas neste contexto, nem em que medida poderiam ser debeladas com uma reestruturação.

Por exemplo, há alguma evidência de que o crescimento da produtividade está relacionado com learning by doing, e nesse sentido pode beneficiar imenso da troca de experiências proporcionada pelo Investimento Directo Estrangeiro (IDE). Mas também há evidência de que o IDE reage de forma muito negativa a episódios de reestruturação, o que sugere que uma reestruturação poderia facilmente reduzir a produtividade das empresas e aprofundar os problemas identificados no manifesto. De facto, a redução pronunciada da Produtividade Total dos Factores (TFP) foi precisamente o que aconteceu na Argentina em 2002.

Claro que uma reestruturação também libertaria recursos financeiros, que agora são usados no pagamento de juros, para aumentar as qualificações da mão-de-obra ou infraestruturas, o que podia aumentar a produtividade. Pois: podia. A questão é que há efeitos de sentido contrário a actuar ao mesmo tempo (como o caso do IDE), e o manifesto faz tábua rasa dos efeitos negativos, assumindo, sem discussão, que o efeito líquido seria positivo. Esquecer estas nuances e subtilezas e apresentar como facto consumado que a reestruturação aumenta a produtividade é um péssimo ponto de partida para uma discussão séria.

Em segundo lugar, o manifesto é, digamos assim, manifestamente vago em relação ao que efectivamente propõe. O que está em cima da mesa é uma reestruturação imposta (default puro e duro), ou uma reestruturação negociada? E que montantes, prazos e juros concretos é que estão ser oferecidos? Estas são questões técnicas, mas é em torno destes pormenores que a razoabilidade da proposta pode ser aferida. O diabo, nestas coisas, está sempre nos detalhes.

Comecemos por assumir que a proposta é de uma reestruturação negociada. Uma pergunta óbvia a que o manifesto teria de responder é o que ganham os credores com esta alteração, porque dificilmente se propõe um acordo bilateral em que só uma parte ganha e a outra se limita a perder. Um argumento muito utilizado é que Portugal já obteve uma reestruturação, e que este é um precedente importante. Ora, a lógica é precisamente a inversa. É exactamente porque Portugal já obteve uma melhoria muito substancial das suas condições de financiamento que o grau de tolerância dos credores a benesses adicionais já estará mais perto do limite.

Convém por as coisas em perspectiva. Desde o início do Programa de Ajustamento que Portugal já conseguiu reduzir a taxa de juro relevante em cerca de 2 pontos percentuais, aumentar a maturidade dos empréstimos em para 15 anos e prolongar os empréstimos em mais sete anos adicionais. Tudo somado, esta é uma reestruturação surpreendentemente elevada. Só em juros efectivos o Orçamento português deve poupar qualquer coisa como 950 milhões de euros por ano (contas ‘costas de envelope’ utilizando o boletim do IGCP e dados da AMECO).

A título de exemplo, a reestruturação que teve lugar na Grécia, e que abrangeu menos de um terço da totalidade da dívida (ver detalhes em The greek debt reestructuring: an autopsy) foi uma das maiores de sempre (ver dados na base de dados de Trebesch). Reestruturações mais volumosas acontecem tipicamente em períodos de guerra (Bósnia, Moçambique) ou em Estados falhados (Iraque). Seria compreensivelmente difícil argumentar junto dos organismos europeus que, depois de todas as concessões que já foram feitas, Portugal deveria ser tratado (e comportar-se) como um país do Terceiro Mundo.

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E se fosse uma reestruturação forçada? Dispensar a anuência das instituições europeias tornaria mais fácil ‘não pagar’, mas esta é mesmo a única vantagem em relação a uma reestruturação negociada. Entre os vários problemas destaco apenas os seguintes:

  • Portugal tem uma dívida pública de cerca de 213 mil milhões de euros. Destes 213 mil milhões, cerca de 82 mil milhões são detidos pelo estrangeiro (a Troika detém 71 milhões), pelo que os restantes 130 mil milhões estão em mãos nacionais. Ou seja, o país, como um todo, não ganha nada em reestruturar cerca de 60% da sua dívida, já que aquilo que ganha enquanto contribuinte acaba por perder como investidor. Na prática, a renegociação só pode incidir sobre 40% da dívida pública.
  • Pior ainda: Portugal tem, neste momento, um saldo primário (despesa sem juros) próximo do equilíbrio, mas o que é relevante é o saldo primário que resta depois de se pagar os juros aos agentes económicos nacionais. E esse saldo ainda é negativo (em cerca de 2000 a 3000 milhões de euros, dependendo dos cálculos). Trocando por miúdos, se Portugal quisesse honrar a sua dívida pública ‘interna’ e pagasse zero aos investidores externos, tentando com isso ganhar margem financeira para aumentar a despesa noutras rubricas, acabaria por descobrir rapidamente que as receitas continuavam a ser insuficientes para cobrir sequer as despesas actuais. Com o colapso de financiamento que inevitavelmente se seguiria, o Estado teria de reduzir ainda mais as suas despesas ou aumentar os impostos­­ – precisamente o contrário do objectivo que o manifesto visa obter.
  • d) Como é óbvio, neste ponto a disputa não seria apenas financeira, económica e jurídica. Ostracizar os países europeus que emprestaram dinheiro a Portugal quando mais ninguém o fez poderia fazer com que o país fosse visto como um pária da na União Europeia, com repercussões políticas difíceis de prever. Alguém consegue imaginar como seria hoje Portugal se não tivesse aderido à CEE em 1986? A reversão dos progressos políticos e institucionais que decorreram dessa adesão não é fácil de imaginar, mas também não pode ser excluída.

Finalmente, a terceira questão: o timing. Neste momento, Portugal está taxas de juro em mercado secundário que rondam os 4,5%, consegue financiar-se junto de investidores privados, a economia está a crescer e os números mais recentes sugerem que os números das contas públicas poderão ficar bem melhor do que as previsões iniciais. A banca europeia está capitalizada e a, em todo o caso, já se livrou dos títulos nacionais. Não só é muito mais difícil argumentar, agora, que Portugal precisa de uma reestruturação como as consequências nefastas de um default desordeiro seriam muito menores do que antes. A posição negocial de Portugal está extremamente fragilizada.

O corolário é que a propagação pública da ideia de que a reestruturação é inevitável não tem qualquer real utilidade para Portugal: não melhora a sua posição negocial, não sensibiliza a Europa e nem contribui, sequer, para uma preparação atempada desse processo. Limita-se a gerar desconfiança nos investidores estrangeiros, fazer subir as taxas de juro e dificultar, objectivamente, a situação do país (em teoria, claro: na prática, parece que os mercados reagiram com alguma indiferença ao manifesto). Nestas coisas, o simples acto de publicar o manifesto não é neutro: ele acarreta, em si mesmo, consequências**.

* O caso argentino é interessante, não só pelas conclusões que permite retirar dos efeitos de um default mas também por aquilo que sugere em relação ao abandono de um regime de câmbios fixos. Para uma perspectiva optimista de uma eventual saída do euro sugiro The argentine success story and its implications.

** Parece haver uma dificuldade gritante por parte de muitos observadores em perceber o papel que a credibilidade tem numa situação de negociação em situação de incerteza. Grande parte das críticas à actuação do antigo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, resulta do facto de não se perceber que as concessões são como os aumentos salariais: não se exigem com ameaças, conquistam-se com trabalho.