2004, o ano mistério de Portugal

Há coisa de uns dois meses escrevi uma série de posts (dez posts, mais concretamente) a defender a ideia de que a Década Perdida portuguesa é menos estranha do que parece à primeira. A ideia era um bocadinho assim: a Década Perdida é, em parte, uma ilusão de óptica. E o problema começa logo na forma como se enuncia a questão, porque o próprio conceito de uma ‘década perdida’ sugere implicitamente que houve alguma coisa de estruturalmente diferente entre o Portugal pré-1999 e o Portugal pós-2000. Ora, a divergência económica parece estar toda ela concentrada no curto período de 2004-2007. O ano de 1999 é um marco ilusório.

Por uma série de razões (entre as quais, desconfio, o tamanho da prosa), os posts passaram quase despercebidos. Mas lembrei-me deles quando me dei ao trabalho de recompor uma série longa do indicador de actividade económica do Banco de Portugal, que mede a evolução da actividade com uma frequência mensal. A imagem de baixo justapõe dois ciclos económicos diferentes: o da pujante década de 90 (1989-1998) e o da Década Perdida do euro (1999-2007).

1a

As duas séries andam praticamente lado a lado durante mais de metade do ciclo. É só em 2004, na altura em que os efeitos da recessão se começam a desvanecer, que se passa algo de verdadeiramente interessante (mesmo que não saibamos muito bem o quê). Qualquer que tenha sido o vírus que afligiu a economia nacional, o contágio não se deu em 2000 nem coincidiu com a adesão ao euro.

 

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Pistas para perceber a Década Perdida portuguesa

Um dos posts perdidos mais ali para baixo, acerca de produtividade e emprego, gerou algumas reacções interessantes. O que me fez pensar que talvez valesse a pena alargar a perspectiva do exercício e explicar por que é aquele tipo de análise – que, em traços largos, corresponde a uma simples ‘contabilidade do crescimento’, desagregando unidades largas em ingredientes mais pequenos – pode lançar luz sobre uma das grandes dores de cabeça da economia nacional: afinal por que é que Portugal cresce tão pouco desde o início do século XXI?

Podemos começar pela própria questão. Isto provavelmente vai parecer pateta, mas como por vezes vale a pena inspeccionar a pergunta antes de saltar para a resposta, aqui vai: por que é que achamos que Portugal passou por uma Década Perdida de 2000 em diante?

Claro que eu sei a resposta. Portugal teve um óptimo crescimento durante a década de 90, e é um país menos desenvolvido do que a média europeia. O embalo dos anos 90 gerou determinadas expectativas, e o atraso relativo é em si mesmo uma poderosa força de convergência. O que, tudo somado, nos levaria a esperar um crescimento sólido daí em diante.

Ao contrário do que se esperava, o crescimento parou abruptamente em 2001. A travagem foi tão abrupta e acentuada que é óbvio, aos olhos de qualquer pessoa, que algo de muito estranho se passou no virar do século.

Mas até que ponto é que é que os valores da década anterior constituem um benchmark aceitável para os anos seguintes? Considerem isto: na década de 90, a população portuguesa cresceu a uma média de 0,5% ao ano, ao passo que no século seguinte a dinâmica demográfica caminhou paulatinamente para zero, primeiro, e para valores negativos, mais tarde. Será que uma diferença tão grande ao nível da evolução demográfica não devia ser levada em conta quando comparamos taxas de crescimento?

E até que ponto é que o abrandamento do crescimento no resto das economias desenvolvidas não devia também ser um factor a ponderar quando avaliamos a Década Perdida? Afinal de contas, não foi só Portugal que perdeu gás no virar do século, e se esse abrandamento foi transversal à maioria dos países, então devíamos levar em conta essa informação quando analisamos o nosso passado.

Na verdade, podemos fazer melhor. Podemos analisar de forma minuciosa todas as fontes de crescimento do PIB, dividindo-o nos seus vários constituintes – produtividade, emprego, população activa, etc., etc – e identificando de forma com precisão onde residem os problemas.

O meu problema com muitas das teorias que tentam explicar a Década Perdida é que se concentram numa visão panorâmica da economia, olhando para o crescimento do PIB e desconsiderando toda a informação que podia ser obtida através da mineração dos dados brutos. Por exemplo, uma das hipóteses muito em voga aqui há uns anos era a da redução da eficiência da economia, em virtude da expansão do sector público. Isso pode fazer sentido olhando para os dados gerais, mas se estamos a falar de eficiência não deveríamos testar esta teoria contra os números da produtividade? Imensas teorias poderiam ser facilmente descartadas através de um simples exercício de contabilidade do crescimento.

Esse post tentou fazer um ensaio dessa abordagem. Ao desagregarmos os dados do crescimento económico estamos a alargar imenso o espectro de informação contra a qual podemos testar diferentes explicações. Será que o abrandamento do crescimento decorre de menor crescimento da produtividade, e pode ser imputado a distorções microeconómicas? Ou será que resulta de menor criação de emprego, remetendo para questões de nível mais macro? Qual o impacto das dinâmicas demográficas? Todos conseguimos pensar em dezenas de explicações diferentes, e é óbvio que muitas delas podem ser testadas com maior precisão contra os dados da produtividade ou do emprego – que ‘isolam’ melhor alguns dos efeitos presumidos – do que contra os dados do PIB.

Os posts seguintes tentam usar o mesmo princípio para elaborar uma análise mais abrangente. O resultado final é uma espécie de micro-contributo para desfiar a Década Perdida portuguesa (ou a Grande Estagnação – uso os dois termos com o mesmo sentido), explicando-a como o produto infeliz de quatro choques, largamente independentes uns dos outros, que – provavelmente por mero acaso – se sobrepuseram num único período de tempo. Podem seguir o raciocínio ao longo da série ou, se tiverem pressa, passar directamente para os últimos três.

  1. As duas faces da Década Perdida
  2. Produtividade: a travagem brusca… de 1993
  3. Um problema de empregos. A demografia é uma (pequena) parte da história
  4. Um problema de empregos: oferta ou procura?
  5. Um problema de empregos: pontas soltas da hipótese cíclica
  6. Juntando as peças do puzzle
  7. Sim, mas
  8. Quatro choques na prática: contas e exemplos