O debate acerca da refundação do Estado parece ter entrado em velocidade cruzeiro. Como na maioria dos debates, há bastante ruído em torno do seu verdadeiro significado e implicações. Em particular, é conveniente distinguir alguns elementos elementos deste discurso, que são independentes entre si mas que no debate público aparecem normalmente misturados.
Os conceitos são três: reforma, sustentabilidade da dívida e cortes orçamentais. Uma reforma (do Estado, neste caso) consiste em alterar regras profundas de funcionamento de uma organização, de maneira a que esta se torne mais eficiente. A sustentabilidade designa uma situação em que a dívida pública está num valor passível de gerido, e depende do crescimento do PIB, do volume de dívida pública e respectiva taxa de juro, e do défice primário. Os cortes orçamentais são o meio através do qual o défice primário pode ser reduzido.
No debate público, a ligação é linear: a reforma do Estado surge como um plano de cortes orçamentais que permitem colocar a dívida num nível sustentável. Apesar de possível, esta ligação não é necessariamente verdade, e nalguns casos pode haver mesmo um trade-off entre duas destas três opções. Vejamos porquê.
Uma reforma do Estado é, antes de mais, um processo analítico dos resultados concretos de despesas concretas, de maneira a facilitar a alocação de recursos. Apesar de esta análise facilitar a identificação das despesas supérfluas, ela não culmina necessariamente num plano de cortes. Normalmente, resulta apenas numa alteração de prioridades na alocação de verbas públicas, como se pode ler no estudo de referência da OCDE acerca deste tema. Os cortes across the board dos últimos dois anos tornam até bastante provável que de uma análise racional da despesa pública resulte a necessidade de aumentar as dotações orçamentais para determinadas funções.
A este ponto acresce um segundo, que deriva do custo das reformas. Em muitos casos, alterar alocações orçamentais e alterar prioridades tem um custo inicial elevado, que pode passar pelo pagamento de indemnizações compensatórias a empresas (rescindir contratos, por exemplo) ou pela formação adicional de quadros em trânsito de uma função para outra. Em suma, uma reforma não implica tornar a dívida mais sustentável. Não implica, sequer, cortes orçamentais, e pode muito bem conduzir ao seu contrário.
Se a ligação entre reforma, sustentabilidade e cortes não é directa, o mesmo acontece com os dois últimos conceitos. Um corte orçamental implica, por definição, um aumento de receita ou redução da despesa, levando a um défice primário inferior. O impacto destas medidas na sustentabilidade da dívida deve, porém, levar em conta o seu efeito nas outras variáveis que concorrem para esta sustentabilidade, nomeadamente o PIB nominal.
A polémica recente em torno dos multiplicadores pode ser entendida à luz desta questão. A divergência entre FMI e Comissão Europeia reside no referido impacto dos cortes no PIB nominal, cuja magnitude determina, em grande medida, a verdadeira capacidade dos cortes orçamentais para afectarem a sustentabilidade da dívida. Se o multiplicador é alto, as medidas geram um efeito de coice superior, que pode, no limite, contribuir até para tornar a dívida menos sustentável. Em suma, se mais reformas não significam menos cortes, mais cortes também não significam mais sustentabilidade.
É conveniente salientar que os multiplicadores deduzidos pelo FMI não implicam que cortes orçamentais levados a cabo em Portugal estejam de facto a deteriorar o rácio dívida/PIB. Os valores concretos parecem apenas dar força à ideia de que uma dívida mais sustentável é compatível com um perfil de cortes menos agudo. O que é apenas uma forma diferente de dizer que o impacto marginal dos cortes na sustentabilidade da dívida começa a atingir valores negativos.
Algumas das ideias deste post podem ser ilustradas de forma gráfica.
A tabela seguinte mostra os três agregados de despesa pública que foram alvo de cortes mais profundos: salários da função pública, benefícios sociais em dinheiro (essencialmente pensões e subsídios de desemprego) e transferências em espécie (com a comparticipação de medicamentos à cabeça). A tabela compara faz um ranking com esta despesa a nível europeu, com a particularidade de a expressar em percentagem do PIB potencial. A utilização deste agregado justifica-se pela intenção de expurgar o efeito do ciclo económico.

Um contrargumento à utilização do PIB potencial é que o que é relevante para a sustentabilidade da dívida é a dívida sobre o PIB efectivo. Este argumento pode ser usado para justificar cortes adicionais à despesa, se for consensual que a redução da despesa é de facto necessárias por questões orçamentais (embora, de novo, a expectativa do impacto destas medidas tenha de levar em conta o efeito multiplicador referido nos parágrafos acima).
Mas o que se procura mostrar aqui é que, em termos estruturais, a despesa pública com estas três rubricas já está a um nível extremamente baixo. Ora, é o nível estrutural de despesa que a reforma do Estado tem de levar em conta, uma vez que se espera que uma reforma seja algo perene, razoavelmente insensível às particularidades do ciclo económico. Não se espera – é aliás contrário ao próprio conceito de reforma – que se emagreça (ou engorde) o Estado de cada vez que o ciclo económico faz o rácio despesa/PIB subir (ou descer) acima de uma determinada fasquia de referência.
A tabela anterior é uma fotografia estática. A imagem seguinte mostra a dinâmica desta evolução.

O ciclo económico não está completamente expurgado desta imagem, uma vez que continua a aparecer sob a forma de subsídios de desemprego. Para eliminar este efeito, basta comparar a evolução das rubricas a azul e a verde. A vermelho aparecem as transferências onde são incluídos os subsídios de desemprego. (Inclui igualmente pensões, mas o que interessa, para estes efeitos, não é o nível da despesa, mas a variação do nível nos últimos ano; e a variação do peso das pensões é pouco relevante entre 2008 e 2012).

É assim importante distinguir entre todos os elementos que entram nesta equação, e a forma como interagem uns com os outros. Em suma: a reforma do Estado facilita a identificação de cortes orçamentais; mas não acabará necessariamente por os recomendar; é possível tornar a dívida mais sustentável sem reformar o Estado; e é possível cortar mais a despesa sem tornar a dívida mais sustentável.
Uma última conclusão, que não deriva necessariamente do que foi exposto neste post, mas que está umbilicamente ligada a algumas das questões levantadas por ele. Pode ser chamada de Curva de Phillips do Estado: no longo prazo, e pelo menos nos países desenvolvidos, não há relação entre o tamanho do Estado e o tamanho da dívida pública.

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