Segundo o FMI, a sustentabilidade da dívida pública portuguesa exige superávites primários na casa dos 3% do PIB. Que sacrifícios são necessários para colocar o saldo orçamental a este nível? O post anterior tentou mostrar que o esforço adicional é mais pequeno do que parece – e muito menor do que seria sugerido pela experiência dos últimos três anos. Vale a pena utilizar um exemplo concreto para tornar o raciocínio mais claro.
A imagem de baixo mostra a evolução do saldo primário do orçamento português entre 2010 e 2013 (azul escuro) e a previsão do FMI para os próximos anos (azul claro). A linha vermelha representa a melhoria acumulada do saldo relativamente a 2010. Os valores não são exactamente iguais aos que aparecem nos documentos oficiais porque foram corrigidos para o impacto de medidas extraordinárias e pontuais.
Estes são os resultados: até agora, uma melhoria do saldo primário de 4,5% do PIB. Para perceber os custos, é necessário justapor a estes valores o volume de medidas de consolidação orçamental. A Comissão Europeia faz uma compilação dessas medidas nos relatórios trimestrais (procurar a tabela Artihmetic of the government deficit), segundo a qual a dose de austeridade implementada entre 2010 e 2013 terá rondado os 12,2% do PIB.
Fazendo as contas, conclui-se que para cada euro de melhoria do saldo foi necessário cortar 2,7€ (12,2/4,5=2,7). Ou, fazendo as contas de outra forma, que cada euro de cortes orçamentais se traduziu numa melhoria orçamental de apenas 0,37€.
Vejamos agora um caso diferente. O país representado no quadro de baixo consolidou as contas públicas em 3,6% do PIB em apenas dois anos. O ajustamento acumulado é muito inferior àquilo que está implícito nas simulações do FMI para 2010-2017; mas o ajustamento médio anual ao longo destes dois anos é de 1,8% do PIB, um valor que na verdade é mais alto do que aquilo que Portugal conseguiu nos últimos três anos.
Que país é este, que passou de um défice de 4% para um saldo primário praticamente equilibrado em apenas dois anos, enquanto o PIB real crescia a uma taxa média de 1,5% ao ano?
Nada mais, nada menos, do que Portugal em 2005-2007.
E quais foram os custos? Infelizmente, na altura ainda não havia a prática de sistematizar nos Orçamentos anuais as medidas de consolidação, mas um grupo de investigadores do FMI tem vindo a produzir estimativas para esse período. De acordo com estas estimativas (que têm um upward bias considerável*), entre 2005 e 2007 terá havido cortes em torno dos 3,1% do PIB. Ou seja, cada euro de medidas melhorou o saldo primário em 1,16€.
A diferença entre os dois períodos é impressionante quando se comparam estes ‘rácios de eficiência’ (ler também Tiros de pólvora seca). Mas a explicação é simples. Em 2010-2013, a consolidação foi feita sobre uma economia a contrair, o que corroeu as receitas fiscais e neutralizou uma boa parte do efeito dos cortes – à semelhança do que aconteceria a um atleta que tentasse correr contra uma passadeira rolante. Em 2005-2007, por outro lado, a economia estava a crescer, o que aumentava as receitas fiscais e gerava uma melhoria inercial da posição orçamental. O atleta estava a correr a favor da passadeira rolante.
O quadro de baixo sistematiza esta ideia, isolando 2014 por ser este o primeiro ano de programa em que se espera crescimento positivo. A coluna ‘rácio’ indica quantos euros de austeridade são necessários para melhorar o saldo primário em um euro. Para os próximos anos, o rácio estará mais próximo de 0,86 (e provavelmente será inferior a isto) do que 2,73.
O que aconteceu em 2005-2007 sugere que até períodos de crescimento reduzido permitem diminuir o défice sem que impor custos extraordinários. Porquê então a dificuldade crónica da generalidade dos países europeus em conformarem-se à regra do défice de 3% desde a formação do euro?
A resposta tem muito mais a ver com questões de economia política do que de política económica. Apertar o orçamento (mesmo que de forma passiva, isto é, manter o crescimento da despesa abaixo do crescimento da receita) tem custos políticos sérios, e portanto há a uma irresistível tentação de esticar a política orçamental e fiscal até aos limites máximos tolerados por Bruxelas.
De resto, não deixa de ser revelador que muitos países europeus tenham de facto levado a cabo ajustamentos orçamentais notáveis no período de convergência nominal antes da adesão ao euro – melhorias que foram bruscamente travadas a partir do momento em que atingiram o critério do défice de 3%. É improvável que a consolidação orçamental tenha sido uniformemente travada por ‘fadiga da austeridade’. Uma hipótese mais plausível é que os países em causa se limitaram a cumprir os ‘mínimos olímpicos’ para integrarem o clube do euro, e limitaram-se, a partir daí, a gerir o orçamento em torno desses limites.
Para estes países, ter défices de 3% era tão impensável em 1985 quanto é para nós ter superávites primários de 3%. Mas não era porque o ajustamento orçamental implícito a este valor fosse insuportavelmente violento. Era porque não havia incentivos aos decisores de política económica para imporem constrangimentos à gestão orçamental. Quando esses incentivos – isto é, a possibilidade de adesão ao euro – foram criados, os défices rapidamente convergiram para os 3%. Neste contexto, dizer que Portugal nunca obteve superávites primários de 3% é muito pouco relevante para aferir a exequibilidade desta meta.
P.S.- Para que fique tudo claro: este post não defende que a consolidação orçamental não tem custos, mas sim que estes custos são fortemente variáveis. Em síntese: a) os custos da consolidação orçamental para 2014/2015 são significativamente menores do que os custos para o período 2010/2013; b) para o período posterior (2016 em diante) os custos são negligenciáveis, na medida em que o ajustamento orçamental pode ser feito de forma meramente passiva. Ou seja, a sustentabilidade da dívida pode ser assegurada sem grandes custos adicionais relativamente àquilo que já foi feito.
*A base de dados do FMI avalia as medidas de consolidação através dos Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC) entregues a Bruxelas, pelo que na verdade é uma mera quantificação de intenções declaradas. A experiência mostra que entre aquilo que é anunciado e efectivamente implementado vai uma grande diferença, e de facto algumas das medidas elencadas no PEC acabaram por não se verificar na execução orçamental. Por esta razão, as medidas orçamentais identificadas pelo FMI sobrestimam fortemente a verdadeira dimensão da consolidação.
Caro Pedro Romano,
Mas uma parte do problema não é exactamente essa? Estamos a (tentar) ajustar a contra-ciclo – o seu exemplo da passadeira é brilhante – e não me parece que a passadeira esteja propriamente a inverter a marcha.
Se quiser uma anologia pior mas mais “económica”, é como pedir a famílias para reduzirem despesa: se elas estiverem bem financeiramente, reduzem sem grandes demais. Se estiverem com um orçamento apertado, torna-se francamente mais complicado – por diversas razões, mas sendo a mais importante a que qualquer corte será sempre sentida como um grande sacríficio e uma perda efectiva de qualidade de vida.
GostarGostar
Pedro
Tenho uma dúvida. Presumo que o seu post se baseia no facto de o racio entre as medidas de consolidação e o seu efeito no défice reflete não só os multiplicadores da despesa e dos impostos ( que se presumem diferentes) mas também o efeito dos estabilizadores automáticos. Se trabalharmos em valores e não em percentagens do PIB, será possivel isolar cada um destes efeitos?
E agora uma questão. E a sustentabilidade social do programa? Como se vão reduzir os niveis de desemprego com tão poucos recursos para o investimento público? Acha que o crescimento das exportações vai criarr volumes significativos de emprego?
GostarGostar
Carlos Duarte,
Sim, o problema é precisamente esse: ajustamento em contra-ciclo.
A ideia de que a passadeira agora vai começar a andar para a frente é condicional à manutenção das boas indicações macroeconómicas dos últimos 6-9 meses. Caso esses sinais sejam revertidos (o que me parece improvável – mas…), aquilo que escrevi deixa de se aplicar.
Acácio Pinheiro,
Não percebi bem a primeira parte do seu comentário. O rácio é uma divisão simples: ‘consolidação efectiva/medidas de consolidação’. Os mecanismos que justificam rácios diferentes podem ser muitos (multiplicadores elevados, fraco crescimento de tendência, grande elasticidade das receitas ao ciclo, etc.), mas o cálculo, em si, não pressupõe nenhum destes mecanismos.
GostarGostar
Pedro
O racio, conforme o apresentou, entra com a consolidação efectiva, isto é, a variação no saldo orçamental. Mas para essa variação contribuiram vários factores, nomeadamente o efeito dos estabilizadores automáticos. Julgo que a instabilidade dos multiplicadores se deve à contribuição de outros factores, nalguns casos com um peso maior do que foi previsto pelos modelos, o que também causa a variação nos racios.
Será possível isolar, ainda que de forma aproximada, os diferentes efeitos, de forma a poder identificar melhor a origem dos desvios?
E deixo de novo a segunda questão. E a sustentabilidade social do programa? Como se vão reduzir os niveis de desemprego com tão poucos recursos para o investimento público? Acha que o crescimento das exportações vai criar volumes significativos de emprego?
GostarGostar
Já percebi. Sim, em princípio é possível fazer essa contabilidade. Mas é um exercício complicado.
O emprego virá, como sempre, do crescimento económico – seja qual for a sua fonte. Não há razão para pensar que um crescimento apoiado em vendas ao exterior gere menos emprego do que um crescimento apoiado em investimento público. O investimento público tem um papel crucial no aumento do potencial de crescimento, mas essa é uma questão diferente.
GostarGostar
Aquela imagem de que “o atleta estava a correr a favor da passadeira rolante” não me parece muito feliz..Se me fosse permitido, utilizaria, antes, esta imagem: “o atleta estava a correr a favor do vento”.
Desculpe a ousadia.
GostarGostar
Pedro, excelentes analises sobre o tema da divida.
So um ponto sobre este texto. Quando dizes que entre 2010 e 2013 cada euro de austeridade resultou apenas em 0,37 de consolidacao orcamental estas implicitamente a assumir que o saldo primario se teria mantido inalterado na ausencia das medidas de austeridade. Isto e seguramente falso, teria piorado porque a economia estava em queda. O que significa que o efeito dos 12,2pp de medidas de austeridade nao sao 4,5pp de consolidacao, sao 4,5pp mais a deterioracao do saldo primario que se teria verificado na ausencia dessas medidas.
Isto nao invalida a ideia de que e muito mais facil consolidar em tempos de expansao e que o saldo primario exigido para a sustentabilidade da divida nao e irrealista. Mas e importante na avaliacao da politica de front loading da austeridade que foi seguida.
GostarGostar
João, concordo que o apuramento da ‘eficácia’ das medidas exige fazer um contrafactual. Mas a ideia não era bem obter uma medida da eficácia da consolidação – se fosse, teria não apenas de descontar o efeito ‘degradação automática do saldo’ no período 2011-2013, mas também o efeito ‘melhoria automática do saldo’ no período 2005-2007.
O objectivo é mesmo mostrar que a evolução do saldo é bastante sensível ao ciclo. E essa sensibilidade pode ser constatada através da comparação entre o impacto de medidas de austeridade em dois períodos muito diferentes: crescimento ou recessão. O rácio de 2,73 relativo a 2011-2013 reflecte, em parte, precisamente esse efeito: a degradação do défice como resultado da recessão.
O bottom line é muito simples: olhar para a relação austeridade/melhoria verificada até 2013 e usar essa relação para extrapolar ‘esforças futuros’ é muito enganador.
GostarGostar
Inteiramente de acordo com o bottom line, so me pareceu que a linguagem podia levar a uma interpretacao causal injustificada. Mas fica esclarecido.
GostarGostar
Pedro
Desculpe voltar ao tema, mas como considero os seus contributos de elevado nível e esta é uma questão que me tem confundido ( mais pela diversidade de posições publicitadas ) agradeço que me esclareça.
Estamos a falar do impacto das medidas discricionarias sobre o defice primário, logo começa por ser uma relação contabilistica. Cortes na despesa aumentam o saldo ( positivo) de igual montante e aumentos de impostos também. Logo o rácio devia ser 1. Quando a despesa são remunerações ou algumas classes de prestações sociais será inferior a 1, por via da retenção dos impostos correspondentes.
Depois temos a relação económica, multiplicadores e efeitos induzidos por alterações nas outras variáveis. E a consideração ou alteração dos estabilizadores.
Até aqui tudo é computável e consoante o mix poderá estar mais perto ou longe de 1 mas na sua vizinhança. Ex ante, no papel.
Assim, se eu estiver certo, o rácio ex post tem muito mais a ver com a qualidade do modelo, nomeadamente da boa previsão dos comportamentos das variáveis exógenas e dos parâmetros, do que da fase do ciclo.
Concordo que empiricamente os ajustamentos são mais fáceis em crescimento, mas porque é possivel fazer crescer a despesa mais lentamente que a receita ( como no caso do periodo 2004-2007.
E para isso, como já li o seu post de hoje, a inflação dá uma grande ajuda.
GostarGostar
Acácio,
Esse mecanismo que expõe está correcto. A mecânica da consolidação funciona por etapas: 1) um corte de despesa melhora o défice; 2) o corte de despesa degrada o PIB, reduzindo o denominador; 3) a redução do PIB piora a receita fiscal, contrariando, parcialmente o impacto inicial do corte de despesa. Os parâmetros dos quais dependem o efeito final são o multiplicador (relação 2) e a elasticidade do saldo orçamental face à variação do PIB (relação 3).
Conhecendo os parâmetros, é possível ter uma ideia da ‘eficácia’ da política orçamental discricionária – quantos euros de medidas são necessários para baixar o défice em um euro. Mas o *discricionária* aqui é o elemento central.
Isto porque na ausência de medidas o saldo também oscila. Oscila conforme as oscilações na economia, melhorando em períodos de expansão e degradando-se em períodos de contracção. Por isso, apesar de a bastar saber a 1), 2) e 3) para se conhecer a eficácia da política orçamental, estes três factores não chegam para determinar a evolução do saldo orçamental. Esta evolução depende também do ‘crescimento de base’ (isto é, o crescimento que se verificaria sem medidas de consolidação’).
Por exemplo: se o crescimento de base for 2%, então o saldo orçamental melhorará mesmo sem medidas; se o crescimento for -2%, verificar-se-á o oposto. E os ‘rácios’ que aparecem na minha tabela também reflectem diferentes ‘crescimentos de base’. O ponto a reter é que os rácios que vigoraram em 2010-2013 não podem ser projectados para o período subsequente, precisamente porque os crescimentos de base não são iguais
(Estou aqui a deixar de lado o facto de haver alguma evidência de que os multiplicadores são mais altos em períodos recessivos. Isto reforçava o mesmo ponto, mas também tornava mais difícil explicá-lo). Já agora, se tiver interesse em aprofundar o tema: http://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2013/wp13182.pdf
GostarGostar
Pedro
Agradeço a resposta, que me ajudou a clarificar estes temas.
Eu estou completamente de acordo com a sua ideia. Julgo que o comportamento assimétrico dos multiplicadores terá alguma coisa a ver com a reacção face ao ganho e à perda que é também assimétrica. Calculo que os progressos da economia comportamental vão trazer algumas elucidações a estes comportamentos dos agentes.
Finalmente, não acha que a diminuição muito significativa dos volumes de crédito à economia explica também parte do valor excepcionalmente alto do seu rácio?
GostarGostar
Claro. Mas “a diminuição muito significativa dos volumes de crédito à economia” é uma das razões pelas quais o crescimento foi negativo. E nesse sentido já está ‘integrada’ como variável explicativa no modelo que descrevi antes.
GostarGostar