A dívida pública é sustentável?

A dívida pública é sustentável? A resposta a esta pergunta exige duas coisas. Primeiro, clarificar com precisão o que se entende por sustentabilidade. Segundo, assumir certas hipóteses e fazer alguns cálculos.

Estes passos prévios são importantes porque o debate em torno da reestruturação mostrou que pessoas diferentes utilizam o termo sustentabilidade em sentidos diferentes. E que esta sustentabilidade é frequentemente vista como matéria de opinião ou preferência pessoal. Argumenta-se que a dívida é insustentável porque é grande, porque o crescimento é baixo, ou porque os juros são altos; mas não há nenhum cálculo rigoroso que integre todos os factores relevantes.

Não há uma definição unânime de sustentabilidade da dívida, mas no caso de Portugal não é difícil consensualizar uma definição: a dívida pública é sustentável se puder ser reduzida (ou estabilizada) para um conjunto de hipóteses e políticas plausíveis. Isto é, a diminuição da dívida não deve depender de valores irrealistas para o crescimento económico, impossíveis de atingir, ou de ajustamentos orçamentais extraordinários, impossíveis de aplicar.

É importante notar que o que está aqui em causa não é ‘pagar a dívida’. Ao contrário de uma família, que tem um horizonte de vida finito dentro do qual tem de conseguir honrar as suas dívidas, um Estado pode viver perpetuamente endividado – o importante é que este endividamento não entre numa trajectória explosiva. A dívida tem de parar de subir e, idealmente, descer para valores razoáveis. Mas não tem de ‘ser paga’ no sentido tradicional do termo.

A trajectória da dívida pública (dívida em % do PIB) depende de três variáveis: a) o crescimento nominal do PIB (crescimento real mais inflação), já que este determina o tamanho do denominador; b) a taxa de juro da dívida pública, da qual dependem os gastos com o serviço da dívida e, portanto, crescimento inercial da dívida; c) o saldo primário, que é o défice orçamental expurgado da despesa com juros. Um saldo positivo abate à dívida, um saldo negativo aumenta-a.

Com estas três variáveis são possíveis combinações. Se o crescimento nominal do PIB for igual à taxa de juro, é necessário um saldo primário equilibrado para manter a dívida constante; se o crescimento superar a taxa de juro, então é possível relaxar um pouco o saldo (e o inverso também é verdade).

O FMI integra todas estas variáveis num modelo estandardizado (a doutrina está aqui, as instruções de utilização estão aqui e até é possível aceder ao próprio modelo) que aplica periodicamente à generalidade das economias. A última avaliação de Portugal consta do relatório do 10º exame regular, e aparece reproduzida em baixo.

Sem Título

A previsão do FMI aponta para uma descida da dívida já em 2014, mas esta previsão, em si, não é muito relevante, porque pode resultar apenas de whishful thinking dos técnicos. Para perceber se este cenário é plausível é preciso olhar para as hipóteses subjacentes:

  • Primeira hipótese: a taxa de juro implícita da dívida (quarta linha do quadro) começa nos 3,4% e sobe gradualmente até aos 4%.

Qual é o risco de a taxa de juro ser superior a 4%? Muito baixo. A grande maioria da dívida pública resulta de empréstimos da Troika, de juros bastante simpáticos (3% em média) – e estes empréstimos têm uma maturidade convenientemente prolongada, o que permite ‘trancar’ num nível baixo de juros uma boa fatia da dívida pública. Isto é, mesmo que Portugal tenha de se financiar em condições difíceis a partir de 2015, a taxa de juro média será pouco sensível aos humores do mercado (nota: o FMI assume que o Estado se financia em mercado a juros em torno dos 5,5%; neste momento, as OT’s a 10 anos têm taxas inferiores a 5%).

  • Segunda hipótese: o crescimento económico (primeira linha) converge para 1,8%.

Para 2014, a previsão é reconhecidamente conservadora – os 0,8% serão quase de certeza ultrapassados. Daí em diante, a situação é menos clara. O crescimento médio da última década, atéà Grande Recessão (2000-2007), foi 1,5%. Por outro lado, este foi o período de crescimento mais baixo desde os anos 60, e um mistério difícil de explicar até pelos melhores economistas (ver The Portuguese Slump and Crash, de Ricardo Reis, e os comentários na secção de discussão). Tendo em conta o nível de desenvolvimento da economia portuguesa, as projecções demográficas e a evolução recente da produtividade, um crescimento tendencial de 1,8% não é um valor irrealista. Debatível e discutível, certamente, mas nada que justifique as críticas de “suposições absurdas” que foram feitas ao FMI.

  • Terceira hipótese: crescimento dos preços (segunda linha) converge para 1,8%.

O crescimento dos preços na economia portuguesa terá ficado entre 1,5 e 2% em 2013 (embora este valor resulte em boa parte da devolução dos subsídios aos funcionários públicos – uma longa história). A meta do BCE para a evolução dos preços é de 2%, e é aceitável pressupor que os preços cresçam um pouco abaixo da média europeia nos próximos anos (nota técnica: então mas não estamos em deflação? Não exactamente. Convém distinguir entre o Índice de Preços no Consumidor, onde há de facto quebra de preços, e o deflator do PIB, que é o indicador relevante neste caso).

  • Quarta hipótese: O saldo primário (quinta linha) atinge 3,2% do PIB em 2019.

Esta é a variável crucial. Para atingir 3,2% do PIB em 2019, o saldo primário tem de melhorar em cerca de 3 pontos percentuais do PIB. E 3% do PIB são cerca de 5000 milhões de euros. Significa isto que a redução da dívida pública só é assegurada com medidas deste montante? Não, nem por sombras. Isto porque uma parte da consolidação orçamental é inercial: o défice reduz-se automaticamente em virtude do crescimento económico, por arrasto das receitas fiscais – não o suficiente para atingir a melhoria de 3 p.p., mas o suficiente para reduzir significativamente o volume de medidas de austeridade necessárias para diminuir a dívida.

Qual a dimensão deste efeito? É bastante grande. Caso o PIB cresça 3% em termos nominais, e esse crescimento se transmita integralmente às receitas fiscais e contributivas (elasticidade unitária), então só este efeito é suficiente para reduzir o défice em mais de 1000 milhões de euros – 0,6 pontos percentuais do PIB. Como é óbvio, para que esta consolidação seja efectiva é necessário garantir que a despesa pública se fixa ao nível do período anterior (um cap nominal, portanto).

Se o crescimento nominal for de 3% ao ano até 2019, então esta dinâmica é suficiente para melhorar o saldo orçamental nos 3 p.p. necessários. Por que razão exige então a Troika cortes adicionais em 2015? A razão é simples: porque esta consolidação ‘inercial’ só se concretiza caso a despesa pública fique congelada até 2019, uma suposição obviamente irrealista*. De facto, a Troika assume que a despesa pública primária começa já a crescer a partir de 2016, entre 1,2 e 2% ao ano (página 40).

Segundo o FMI, as medidas em causa rondarão os 2000 milhões de euros em 2015. Serão necessárias mais medidas? O relatório não dá indicações nesse sentido, e algumas contas sugerem que esses 2000 milhões são de facto suficientes para atingir a meta de 2015 – e que a melhoria do saldo primário que se prevê daí em diante resulte única e exclusivamente da consolidação inercial já referida.

O que é importante reter é que, apesar de as simulações do FMI assumirem de facto uma melhoria constante do saldo primário até 2019 no valor de 3% do PIB, essa melhoria não decorre de medidas de austeridade dessa magnitude, mas sim de um valor muito mais modesto. O resto é produto da evolução das receitas fiscais, sendo que essa evolução, por si só, até é suficiente para acomodar aumento da despesa de 2016 em diante. A ideia de sustenabilidade da dívida só pode ser garantida através da repetição da ‘dose’ de 2012 e 2013 não leva em conta que uma boa parte do défice é endógena e cavalga a economia – este efeito foi negativo em 2011, 2012 e 2013, mas passa a ser positivo daqui para a frente.

A propósito disto, a imagem de baixo mostra o comportamento do saldo primário de duas economias nórdicas no rescaldo de graves recessões (a finlandesa provocada por problemas financeiros e pelo colapso da União Soviética, com quem tinha ligações comerciais importantes, e a sueca no seguimento da implosão do seu sistema bancário).

XXXX

* Não seria então mais fácil congelar a despesa e evitar mais cortes? Possivelmente sim, mas há um problema sério com esta opção. As medidas de austeridade podem ser decididas, supervisionadas e confirmadas pela Troika enquanto Portugal ainda está abrangido por um Memorando de Entendimento. O congelamento da despesa fica dependente da boa vontade que a classe política tiver durante os próximos quatro ou cinco anos. É compreensível que a Troika prefira a primeira opção, sobretudo depois de ter constatado a impossibilidade de acordos interpartidários que permitam clarificar a trajectória futura da despesa pública nos próximos anos. Mais sobre isso neste post.

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7 comments on “A dívida pública é sustentável?

  1. Carlos Duarte diz:

    Caro Pedro Romano,

    Agradecido (já que lhe tinha lançado a pergunta num post anterior).

    Acho, mais uma vez, que temos algum afastamento no que consideramos um critério de dívida sustentável. Eu considero uma dívida sustentável um valor que permite o país absorver crises externas ou internas sem sacríficios desnecessários. Os 60% do Tratado Orçamental parece-me eventualmente um bom número. Da mesma forma, um prazo para essa redução superior a 15 anos parece-me excessivo (porque, especialmente no início, continuamos vulneráveis a choques). Por estes motivos considero a dívida não pagável.

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  2. Ludwig diz:

    Pedro,

    É uma boa análise, mas parece-me que estás demasiado optimista. Primeiro, porque não basta «um conjunto de hipóteses e políticas plausíveis.» Sendo necessário que se cumpram todas estas condições durante umas décadas, é preciso que a conjunção de todas estas condições seja muito mais do que meramente plausível.

    Em segundo lugar, a subida do saldo primário para 3.2% é uma condição pouco plausível. Seria um feito extraordinário na Europa de hoje e exigiria muita austeridade adicional, ao contrário do que indicas. Até pode ser que «Caso o PIB cresça 3% em termos nominais, e esse crescimento se transmita integralmente às receitas fiscais e contributivas (elasticidade unitária), então só este efeito é suficiente para reduzir o défice em mais de 1000 milhões de euros – 0,6 pontos percentuais do PIB.» Mas a probabilidade do PIB crescer 3% não parece muito alta, e 0,6 é muito menos do que 3,2…

    Finalmente, penso que estás a descurar o maior problema para a economia, que é a dívida privada. É cerca de 300% do PIB e continua a aumentar. Eventualmente, isto vai dar problemas sérios. E se há uma coisa que este cenário da sustentabilidade não aguenta é um problema sério. Ou sequer um soluço…

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  3. Qual é que é atualmente a inflação referente ao deflator do PIB?

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  4. Carlos Duarte,

    Sim, Portugal continuará vulnerável. Mas esta vulnerabilidade é sempre uma questão de grau. Convém recordar que Irlanda e Espanha chegaram a 2007 com uma dívida na casa dos 40-50% do PIB, e nem essa margem de segurança evitou os problemas.

    Ludwig,

    Talvez não me tenha explicado bem. Os «0,6» são os valores obtidos a cada ano, e não no final dos cinco anos. 0,6 x 5 anos = +/- 3 p.p. de ajustamento, precisamente aquilo que é exigido para cumprir os pressupostos das simulações do FMI. E 3% não é um valor extraordinário: durante a última década, que foi a pior de sempre em termos de crescimento, o PIB cresceu em média a esse ritmo (o crescimento real foi de 1%, mas os preços cresceram quase sempre acima dos 2%). ,

    Sobre a dívida privada, é importante notar que ela está mais bem ‘almofadada’ do que a dívida pública. Isto é, a banca — que é quem na prática deve ao estrangeiro — tem vindo a ser capitalizada para suportar choques. Como é óbvio, esta ‘almofadação’ não caiu do céu: foi conseguida via Estado, o que aumentou a dívida pública, e novos requisitos de desalavancagem, que retirou crédito à economia [Podemos discutir se vale a pena combater um problema de dívida privada criando um problema na dívida pública – e há quem defenda que os bancos deviam ter falido para ‘limpar a dívida privada’ -, mas o ponto, aqui, é que esta opção tornou a questão da dívida privada um problema menor do que era].

    (Já agora, em bom rigor a dívida privada externa não está a aumentar. O que se lê nos jornais resulta largamente de um efeito estatístico da forma como a dívida externa é apurada, que é bastante diferente do método utilizado para contabilizar a dívida pública: https://desviocolossal.wordpress.com/2013/01/31/curiosidades-da-divida-externa/ – o post, de 2012, está escrito com base num ‘suponho que’, mas entretanto o Banco de Portugal já veio confirmar que é mesmo este efeito por detrás do crescimento da dívida ):

    Miguel,

    O deflator tem andado à volta dos 2%.

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    • Carlos Duarte diz:

      Caro Pedro,

      Eu não queria passar a ideia que um nível baixo de dívida chega, apenas que é um dos factores (aliado a outros) essenciais para garantir um futuro mais seguro (sem maiúscula).

      Acho interessante que tenha trazido o exemplo de Espanha, porque representa um caso oposto ao nosso: nós estamos assim (principalmente) por sobre-despesa pública e eles por sobre-investimento (ou despesa) privada. Em termos puramente teóricos, qual será o mais sustentável?

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  5. Ludwig diz:

    Pedro,

    Mesmo que o crescimento exigido não seja impossível, é pouco plausível que seja sustentado durante estes períodos ao mesmo tempo que se corta tanto na despesa do Estado. Nota que se está a exigir um crescimento acima do que normalmente se tem conseguido ao mesmo tempo que se exige uma contenção de despesa pública muito acima do que normalmente se tem conseguido. Essa combinação parece-me muito pouco plausível.

    Nisto também é um grande problema a dívida privada nacional. Nem sequer é preciso considerar a dívida externa. Os defaults destes empréstimos ou são absorvidos pela banca afectando o crescimento ou são compensados pelo Estado e lá se vai a contenção da despesa.

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  6. Ludwig,

    O crescimento não é “acima do que normalmente se tem conseguido”. É um valor em linha com o que se verificou na pior década de sempre da economia portuguesa: entre 3,5 e 4% ao ano. A generalidade das estimativas de longo prazo independentes das da Troika (OCDE, por exemplo) apontam para valores em torno de 4%.

    É verdade que a condição adicional de que a despesa pública tem de crescer ligeiramente abaixo das receitas fiscais quase nunca se verificou. Mas até 1995 também nunca tinha havido um mix de receitas e despesas capazes de gerar um défice inferior a 3%. E a partir do momento em que os 3% passaram a ser critério de convergência, as despesas e receitas ajustaram. As razões pelas quais nunca houve défice abaixo de 3% são políticas e não económicas; tal como as razões pelas quais é difícil conformar o crescimento da despesa ao crescimento da receita.

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