E não é que a receita com IVA da restauração cresceu 109%

O Governo apresentou finalmente o Relatório sobre a situação económico-financeira e custos de contexto da hotelaria, restauração e similares. A comunicação social está a dar destaque à possibilidade, admitida no Relatório, de se baixar o IVA da restauração já em 2014. Eu gostaria de chamar a atenção para uma parte diferente do documento, que replico em baixo.

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Este gráfico, que aparece na página 11, mostra o contributo líquido (em milhões de euros) que o sector da restauração deu para a consolidação orçamental em 2012. Considera-se não apenas o impacto da alteração da taxa de IVA aplicada ao sector (recorde-se que esta subiu para 23%), mas também os efeitos negativos que essa mesma subida teve na actividade e no emprego correspondentes – seja na receita de IRS, seja na colecta de IRC, seja nas contribuições sociais e despesa com subsídio de desemprego.

Que o resultado líquido seria claramente positivo (como acabou por ser, efectivamente) já era de esperar. Não havia nenhuma razão para esperar que uma subida de impostos tivesse um impacto tão grande na economia que acabasse por para degradar, em vez de melhorar, o saldo orçamental.

Mas ninguém diria isto olhando para o debate que se gerou em 2012 (e que se prolongou bem até 2013). Na altura, não faltou quem dissesse que a medida seria contraprodutiva e que o impacto líquido seria crescentemente negativo. Até a PwC fez um estudo a ‘mostrar’ como a alteração da taxa prejudicaria as contas públicas em 93 milhões de euros – estimativas assumidamente “conservadoras”.  “Disparate” e “estupidez” foram alguns dos adjectivos mais brandos para caracterizar a subida do IVA da restauração.

Não é de estranhar que uma medida deste género gerasse a polémica que de facto gerou. Tenho mais dificuldade em perceber a forma acrítica como tanta gente ‘comprou’ a tese de que o impacto orçamental seria negativo, na ausência de qualquer evidência convincente. Note-se que, em princípio, uma medida de consolidação orçamental consolida as contas, não as degrada. Para que o contrário aconteça, é necessário assumir multiplicadores completamente irrealistas, entre os 4 e os 5).

Mas se os multiplicadores são estes, então qualquer esforço de consolidação – e não apenas o que recai sobre a restauração, via IVA – está condenado ao fracasso. E se não são, então é preciso explicar muito bem por que razão insondável tem a política orçamental um impacto na restauração que seria três a quatro vezes superior àquele que tem no resto da economia.

Como é óbvio, ninguém apresentou qualquer dado a suportar esta tese. O que não impediu que se gerasse um ‘quase-consenso’ em torno de “óbvia” estupidez da subida do IVA da restauração. Ironicamente, a posição heterodoxa e implausível – mais impostos significam mais défice – tornou-se subitamente uma opinião que qualquer pessoa de bom senso deveria partilhar. Quem diria que há tantos lafferianos em Portugal?

A este propósito, e para colocar a questão em perspectiva, comparei a performance da restauração com o resto da economia, utilizando os dados disponibilizados no relatório do Governo e números do INE e da DGO. O quadro apresenta as mudanças de um ano para o outro em variáveis fiscais e de actividade (volumes de actividade e emprego). Uma vez que o relatório muitas vezes se limita a apresentar a diferença de valores entre 2012 e 2013, sem identificar os valores concretos de cada ano, nem sempre foi possível fazer comparações percentuais. Em todo o caso, aqui fica o que foi possível comparar.

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Uma nota adicional: a actividade da restauração é avaliada através do respectivo índice de volume de negócios, que não é directamente comparável com o ‘barómetro’ utilizado para a Economia total (PIB). Se utilizarmos o índice de volume dos serviços como termo de comparação, a quebra correspondente seria sensivelmente semelhante à da restauração.

Finalmente, note-se que dizer que a subida do IVA contribuiu para a consolidação orçamental não é o mesmo que dizer que ela não pode, ou não deve, ser revertida – da mesma forma que argumentar que a austeridade reduz efectivamente o défice é compatível com a defesa de uma austeridade mais suave. Mas esta defesa será tanto mais convincente e credível quanto mais informada for.

4 comments on “E não é que a receita com IVA da restauração cresceu 109%

  1. “Para que o contrário aconteça, é necessário assumir multiplicadores completamente irrealistas, entre os 4 e os 5).”

    Numa perspeciva keynesiana, sim; numa lafferiana, penso que a discussão se passa num plano diferente – nesse caso, bastaria assumir que a restauração tenha alguma peculariedade especial (p.ex., uma elevada elasticidade procura-preço) que fizesse a curva de laffer especifica para esse sector se tornar decrescente mais cedo.

    [A “peculiaridade” que, no meu dia a dia, eu costumo ouvir para dizer que o aumento do IVA na restauração é catastrófico é de que se trata de um sector essencialmente de pequenas empresas; também, falando da economia em geral, ouço muita gente dizer o governo, com a sua austeridade, esqueceu-se que Portugal é uma economia de pequenas empresas – mas confesso que não percebo bem a relação: porque razão é que aumentos do IVA ou a austeridade em geral haverão de ser mais dolorosas para pequenas empresas? Até se pode argumentar que as micro-empresas pai-mãe-filho-nora têm menos problemas de rigidez nominal de salários do que as grandes]

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  2. No estudo referido estão contemplados os efeitos do combate à evasão fiscal?

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  3. Sim, o relatório tenta separar o efeito da alteração do IVA do efeito do combate à evasão fiscal.

    Miguel, uma ‘curva lafferiana’ específica da restauração é tão implausível como uma ‘curva keynesiana’ particular a este sector. Sobretudo quando os argumentos a favor desta especificidade são tão débeis como o exemplo que o Miguel dá. A questão da dimensão da empresa não tem implicações óbvias à primeira vista (pelo menos no que diz respeito à sensibilidade aos impostos), e parece-me muito mais uma desculpa do que uma justificação.

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  4. Luis f diz:

    Parece-me que se está a ignorar outro aspecto relevante: imputar ao aumento do IVA as quebras de emprego e actividade da restauração é excessivo. A quebra de rendimento da população reflecte-se necessariamente na actividade da restauração.
    Ja para nao falar da avaliação de medidas alternativas, que teriam eventualmente efeitos semelhantes.

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