Uma das ‘pontas soltas’ que encontrei no draft orçamental (ver post anterior ) foi a divergência entre o défice de 2015 com que todos contávamos (3%) e o défice identificado no documento (2,5%). De onde vinha a discrepância?
Entretanto, a UTAO deu a resposta: o Governo considerou que algumas das medidas tomadas em 2015, e reforçadas em 2016 – como a redução da sobretaxa de IRS, por exemplo -, são de natureza extraordinária e não devem por isso contar para o défice orçamental1. Entre muitas outras coisas, como provocar um desnecessário atrito com a Comissão Europeia, esta opção contabilística tem o notável efeito de invalidar quase todas as análises do documento feitas até ao momento. Ritmo da consolidação, exequibilidade das metas, realismo do cenário macroeconómico? Vai ser preciso refazer tudo do zero.
A UTAO não tem grandes dúvidas: a decisão é um erro metodológico. O que é uma adjectivação pesada para a UTAO, mas que neste caso até transmite uma ideia demasiado benévola do que está a ser proposto. Porque há muitas formas de uma opção estar errada, e esta está errada de todas as formas possíveis.
Nestas coisas é importante não deixar a discussão desviar-se do essencial. É verdade que uma medida extraordinária não é fácil de definir (e, na verdade, até alimenta discussão científica). Mas os objectivos que levaram a Comissão Europeia (CE) a criar o conceito são simples e intuitivos, e é à luz desses objectivos que a adequação da utilização prática do conceito deve ser avaliada.
O principal objectivo é ter uma ideia mais fiável da saúde orçamental de um país. Há algumas operações que afectam o défice global mas que sabemos à partida não serem informativas acerca da estabilidade efectiva das finanças públicas. Varrer estas operações do indicador global “défice” permite obter uma imagem mais rigorosa do que se está a passar nas contas do Estado. Daí a utilidade do conceito
O caso mais flagrante é o da utilização de fundos de pensões, que tem impacto no défice (ou tinha, até há pouco tempo) mas que é necessariamente pontual: uma vez consumada, esgota-se e deixa de ser fonte de receita. A questão não é tanto o facto de a medida ser extraordinária, no sentido de ser incomum. É o facto de ser ser irrepetível. Um défice expurgado desta receita é obviamente um défice mais informativo do que um défice que a inclua.
Uma subida de impostos, como um corte de salários, não caem obviamente nesta categoria. Mesmo que sejam temporários, eles podem, pelo menos em princípio, repetir-se ou prolongar-se no tempo – e, no caso das medidas em causa, não só podiam prolongar-se como foram efectivamente prolongadas. Os cortes não foram uma artimanha contabilística, como a transferência de fundos de pensões, ou uma despesa única, como gastos em catástrofes naturais. Permitiram de facto melhorar a sustentabilidade da dívida durante muito tempo, e ao fazê-lo traduziram uma melhoria efectiva do défice.
Aliás, imagine-se o tipo de incentivos que teria um Governo a partir do momento em que a temporalidade de uma medida chegasse para a excluir do défice. Bastaria garantir à partida a reversão futura de uma determinada política para a tornar automaticamente neutra do ponto de vista orçamental. Seguir-se-iam cortes de impostos “temporários”, aumentos salariais “reversíveis” e um sem número de outras operações semelhantes. Se levarmos o argumento da “temporalidade” ao limite, até é possível argumentar que as PPP’s não devem contar para o défice, uma vez que também implicam pagamentos balizados no tempo.
Não é por acaso que o SEC 2010, o sistema de contas europeu, declara explicitamente nos seus princípios que a realidade económica tem precedência sobre a realidade legal dos factos. Por exemplo, no apuramento do défice orçamental de um país as entidades que ‘contam’ e não são apenas aquelas que fazem legalmente parte do Estado, mas sim todas aquelas que economicamente se comportam como um serviço público. Este mecanismo é a melhor garantia de que não há incentivos para criar empresas públicas com o objectivo único de driblar as regras europeias.
Mas mesmo que fizesse sentido incluir estes elementos no rol de medidas extraordinárias – e não faz -, o Governo português devia ser o último interessado em fazê-lo. Porquê? Porque estas medidas reduzem o défice. Considerá-las extraordinárias agravaria, em vez de melhorar, o saldo orçamental.
Claro que a ideia do Governo não é bem esta. A proposta, segundo informações da imprensa económica, é considerar que as medidas podem de facto ser registadas quando foram implementadas – mas tornar extraordinário o seu cancelamento posterior. Assim, o défice de 2010 a 2014 não é negativamente afectado por medidas que afinal são extraordinárias; e de 2015 em diante é possível reverter as medidas sem qualquer impacto nas contas públicas.
Se lhe parece bizarro, posso garantir-lhe que não está sozinho. O argumento parece ser algo como: sim, as medidas sempre foram temporárias, e na nossa opinião não deviam ter melhorado o défice. Mas uma vez que ninguém deu por ela, vamos agora corrigir as coisas. E, fácil de ver, vamos fazê-lo de uma forma particularmente conveniente para nós.
Imagine que o mesmo argumento – estas medidas são extraordinárias – tinha sido feito em 2010. A implicação mais directa teria sido a obrigatoriedade de apresentar medidas do mesmo montante, mas permanentes, de maneira a salvaguardar as metas do défice. Portugal foi assim objectivamente beneficiado por um suposto tapar de olhos da Troika – e agora espera utilizar essa condescendência passada como argumento para alterar as regras actuais em seu favor.
Aceitar esta proposta também abriria um leque de possibilidades infinito. Congelamento de carreiras, não actualização de pensões, redução de prestações sociais, corte de investimento? Bastaria argumentar a posterior que tudo isto era temporário (e algumas destas medidas caíam obviamente nessa categoria) para que se abrisse uma enorme caixa de Pandora. A declaração de “temporalidade” funcionaria como uma autêntica máquina de lavagem de dinheiro, onde as medidas entravam como défice e saíam imaculadas.
Enfim, tudo isto me parece de um chico-espertismo tão flagrante que tenho dificuldade em pensar como é que alguém se lembrou de sequer propor uma coisa destas.
Bem, vejamos, medidas como cortes salariais e sobretaxa, onde o Tribunal constitucional se pronunciou e considerou como temporárias, e que têm de ser repostas num prazo que definiu, não deviam ter sido contabilizadas para efeitos do saldo estrutural.
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O défice estrutural anterior devia ser corrigido retirando as medidas consideradas temporárias.
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Por outro lado, considerar medidas extraordinárias a reposição dos cortes e sobretaxa é uma forma simples e lógica de anular um erro anterior. Para anular a medida erradamente considerada como definitiva, a única forma de contabilisticamente correcta para o fazer (sem prejuizo do status anterior) é fazer o movimento oposto.
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Rb
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