Continuando a série:
Uma das críticas feitas à ideia de que o OE 2016 é regressivo é que é possível encontrar outros números que chegam a conclusões opostas. Este parece ser o caso das simulações feitas pela PwC para o Jornal de Negócios, e destacadas por Ricardo Paes Mamede para dizer que “em geral, o impacto das medidas adoptadas pelo governo beneficia mais os rendimentos inferiores”.
Mas estaremos a dizer coisas assim tão afastadas? Não necessariamente. Na verdade, parece-me que estamos simplesmente a olhar para números diferentes.
Comecemos pelas simulações da PwC. Nesta compilação, o OE parece altamente progressivo. Quem está no fundo da tabela tem um ganho salarial de 25% (!). Segue-se uma melhoria menor, mas ainda expressiva, na casa dos 4,8%. A partir daí, as coisas vão oscilando entre os 0,5 e os 2,9%, sem uma tendência clara e definida.
Contudo, ao lermos a nota técnica da PwC descobrimos que:
- Uma boa parte das subidas salariais reportadas para as camadas mais baixas consegue-se apenas, ou sobretudo, pelo efeito “automático” do aumento do Salário Mínimo (SMN). Isto é, um salário de 505€ regista imediatamente um aumento de cerca de 5%, por razões que nada têm que ver com o Orçamento.
- Ainda segundo a nota, as contas são feitas com base nas tabelas de retenção de Janeiro. Ou seja, “ignoraram a reposição salarial [da função pública] que terá lugar ao longo do ano, considerando apenas o aumento relativo ao primeiro trimestre”. Ou seja, na prática contabilizam apenas um quarto do acréscimo salarial que vai decorrer este ano, e que corresponde à reposição das três parcelas de salário que falta devolver.
Portanto, as simulações da PwC ‘contam’ o aumento do SMN como uma medida orçamental (assumindo implicitamente que o impacto no emprego é zero), não abrangem questões como a descida do IVA da Restauração, aparentemente bastante regressiva, e não contabilizam a maioria da reposição salarial da Função Pública, de longe a medida mais regressiva.
Logo, não é de estranhar que o OE 2016 pareça progressivo à luz das simulações da PwC. Aquilo que o torna regressivo pura e simplesmente não é levado em conta.
Posso tentar clarificar este ponto recorrendo exactamente às mesmas simulações da PwC. O que faço em baixo é ordenar as simulações por escalão de rendimento e por categoria profissional ou social – pensionista, sector privado, beneficiários de prestações sociais, etc.). Apenas introduzo dois ajustamentos: primeiro, elimino variações de rendimento produzidas pelo aumento do SMN; segundo, não reporto os casos que estão ou abaixo do SMN (200€) ou que são muito, muito particulares (sim, estou a fazer cherry-picking – mas já lá vamos).
O resultado é este. A distribuição parece um pouco regressiva, embora sem grande dramatismo: varia tudo entre 0 e 3% de rendimento adicional.
Mas se usar o outro simulador do Negócios para calcular o ganho de rendimento da Função Pública para o conjunto do ano, e não apenas para o primeiro trimestre, a coisa muda um bocado de figura.
Voltámos ao ponto de partida. Os salários ou pensões de 500 a 600€ crescem entre 0 a 1%. Só a partir dos 1.600€ em diante é que se nota algo com peso, com os funcionários públicos a colherem os melhores frutos.
Ok, mas lembram-se dos casos particulares que referi acima, e que não retratei no gráfico? Vamos voltar agora a esses casos. São casos-limite: ou de rendimentos muito, muito baixos, ou muito pouco típicos – mas que, em todo o caso, aparecem na simulação e não quero ignorar. Por exemplo, pensões mínimas, mães solteiras a receber 200€/mês, ou casais com um Salário Mínimo e três filhos a cargo. Aqui estão eles.
Bom, encontrámos aqui alguma coisa. Nos rendimentos baixos e médios pode não haver muito desafogo, mas nos mais pobres dos mais pobres o OE parece trazer alterações muito substanciais: as variações de rendimento, se tivermos pontaria e apanharmos os casos mais dramáticos, podem oscilar entre os 2,5 e os 29% (!).
Mas o que é que significa isto na prática? É que as medidas que justificam estas variações são basicamente quatro: alterações no Rendimento Social de Inserção, Complemento Solidário para Idosos e prestações familiares como o Abono de Família. Todas somadas dão 135M€ – menos de 10% das medidas de reposição de rendimentos. Se as variações de rendimento de alguns casos são altas, mas o montante total que financia essas variações é relativamente reduzido, isso só significa uma coisa: que as transferências são muito, muito direccionadas.
E isto é provavelmente um bom sinal. Aliás, nem era preciso fazer contas para chegar a esta conclusão: sendo prestações sociais sujeitas a condição de recursos, o Abono de Família, RSI e CSI são, por definição, medidas bem direccionadas (ao contrário das pensões mínimas).
A questão é que o grau de progressividade (ou regressividade) do Orçamento não depende daquilo que ele faz apenas a quem está na base da distribuição de rendimentos – a não ser que adoptemos uma definição de “progressividade” tão restrita que na prática se confunda com “combate à pobreza extrema”. A progressividade depende da forma como o volume orçamental total é alocado globalmente por cada decil (ou quintil) de rendimento – mesmo que dentro de cada beneficie/prejudique muito alguns dos seus membros.
Um exemplo de sentido contrário, para ilustrar melhor este ponto. A redução da Contribuição Especial de Solidariedade (CES), um imposto especial sobre as super-pensões (>4.600€) é extremamente regressiva. Pensões muito altas podem ter este ano aumentos superiores a 10%. Será que isto torna o Orçamento, no seu todo, regressivo? Não, porque o impacto relativo desta alteração é mínimo: são apenas 24M€, menos de 2% da devolução total de rendimentos. A importância é tão pequena que nem me dei ao trabalho de levar isto em conta nos cálculos deste post.
O bottom line a que queria chegar é que simulações caso-a-caso como as da PwC podem ser muito enganadoras, porque não nos dizem a frequência relativa de cada caso. Para termos uma ideia do impacto global do OE ao nível da distribuição de rendimento temos de agregar e consolidar números. Idealmente, dividiríamos a população por níveis de poder de compra (declarações de IRS, níveis salariais ou rendimento por adulto-equivalente), pegávamos no custo total das medidas de políticas e alocávamos a cada faixa, para perceber qual delas é que ganha mais – um pouco como o FMI fez aqui.
Não é nada fácil fazer isto. Mas depois de perder algum tempo a manipular os números parece-me que no caso do OE 2016 as diferenças de “alocação orçamental” entre os vários quintis são tão gritantes que qualquer método minimamente razoável chegará, de forma mais ou menos vigorosa, à mesma conclusão. Eu experimentei fazer o exercício para todas as medidas e, usando hipóteses propositadamente conservadoras*, acabei sempre com gráficos deste género. (Neste caso, até tentei integrar um factor importante que ficou de fora no post anterior, a alteração do quociente familiar).
E também é possível abater a esta reposição de rendimentos o impacto dos impostos directos (b) e os cortes em acção social e subsídio de doença. Isto muda os níveis de rendimento, mas não a sua distribuição por quintil.
Concordam com estas contas? Se não concordam, o que é que mudavam? Que hipóteses em relação à incidência dos cortes salariais, poupanças em acção social ou despesas em tabaco é que assumem? Sou capaz de apostar que se fizerem as escolhas primeiro e só depois somarem as parcelas acabarão por chegar a valores muito semelhantes.
Assim até apetece ler posts mais complicados. Parabens pela clareza . Continue sempre assim. serio e preciso.
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Pedro
Eu julgo que se deve considerar o aumento do salário minimo quando se analisa o impacto da politica de redistribuição de rendimentos ( não exclusivamente o OE ).. Ainda assim, e para melhor me apropriar dos seus gráficos, era importante perceber qual é a base do cálculo ( escalões do IRS ? ) e qual o valor médio ou extremos dos quintis.
Abraço
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Acácio,
Para considerar o impacto do SMN deve no mínimo fazer-se um ajustamento para levar em conta o desemprego causado. Assumir que não há desemprego é um bocado passar ao lado do problema, e enviesa completamente o resultado.
Quanto à base de cálculo, eu usei fontes diversas, são a remuneração média anual. Os valores médios e extremos aparecem num estudo de Carlos Farinha Rodrigues, da FFMS (“Desigualdade salarial em Portugal”). Mas as contas não estão completamente harmonizadas: por exemplo, para atribuir impactos no caso de impostos indirectos usei uma divisão por quintis via rendimento por adulto equivalente.
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Pedro
Obrigado. Mas julgo que se refere a um artigo de 2010 com cálculos até 2005. Creio que muito mudou desde então. Mas eu prefiro trabalhar com classes de rendimento e número variável de pessoas, pois o 1º e o 5º quintil são muito heterogeneos. Porque não utiliza a distribuição por escalões de IRS?
A reserva quanto ao SMN faz sentido, embora eu creio que o desemprego não será significativo. Mas por esse critério, então também devia considerar o emprego criado pela redução do IVA na restauração. Eu não, pois também não o acho relevante.
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Acácio,
Os dados são de 2011.
A distribuição por escalões de IRS levanta outro tipo de problemas, o menor dos quais não é a acessibilidade dos dados.
Quanto ao SMN, há uma diferença importante. O aumento de IVA da restauração é um efeito de segunda ordem [imposto mais baixo, LOGO mais emprego – é aqui, neste segundo passo, que a magia acontece]. No caso do SMN, o efeito análogo é o “aumento do emprego em virtude de o salário adicional ser gasto”. Mas a descida do emprego em virtude da subida do custo do trabalho é um efeito de primeira ordem, tão directo como a subida do salário. É esta diferença que justifica a diferença de tratamento.
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