Era tudo tão, tão, tão previsível

Aparentemente, a Grécia vai mesmo ter um terceiro resgate. De acordo com uma das narrativas que agora circula, a história é simples de contar. Primeiro, os gregos elegeram um Governo mandatado para acabar com a austeridade. Depois, o resto da Zona Euro cortou o financiamento e deixou o Estado grego sem meios para pagar as contas. E posteriormente foi a vez do BCE colocar um limite à ajuda a conceder aos bancos da Grécia, obrigando à imposição de controlos de capitais. Perante a chantagem europeia, que impediu o Syriza de cumprir as suas promessas eleitorais, Tsipras não teve outra opção que não aceitar este humilhante acordo.

Descontando o framing enviesado (os votos gregos contra a austeridade são um “exercício da democracia”, os votos alemães contra um empréstimo adicional são uma perfídia), julgo que esta é uma descrição correcta dos acontecimentos. Sim, o Governo grego cedeu porque não houve, na Zona Euro ou no Banco Central Europeu, quem quisesse emprestar mais dinheiro.

O que é extraordinário é haver quem veja nesta atitude alguma intenção de sabotar o programa do Syriza, inviabilizando uma opção (a alternativa à austeridade) que, em circunstâncias normais, poderia ser adoptada. A realidade é muito mais prosaica: o dinheiro não cai do céu. Podemos discutir o grau de solidariedade europeia e a dimensão dos empréstimos que teria sido razoável negociar (em retrospectiva, julgo que é claro que eles deveriam ter sido maiores). Mas presumir que o Syriza se deparou com dificuldades que estiveram ausentes noutras latitudes é não perceber nada do que se passou: foi precisamente porque não havia dinheiro que três países europeus se sujeitaram a programas de consolidação verdadeiramente brutais, que podem ter destruído até 8% da sua produção anual.

E se o Syriza e os seus apoiantes precisaram de passar por este calvário para perceber que numa união monetária a “alternativa à austeridade” depende do dinheiro dos outros, o mínimo que se pode dizer é que não fizeram o trabalho de casa. Culpar agora o “directório de capitalistas” pelo seu fracasso é um pouco como como um clube de segunda divisão começar a prometer a vitória na Liga dos Campeões e acabar a justificar-se com o imenso poderio económico da concorrência que defrontou. Apesar de ser uma justificação plausível, ela não era propriamente uma informação desconhecida quando a promessa foi feita. E o conhecimento desse facto deveria ter inspirado uma abordagem mais cuidadosa e promessas eleitorais menos bombásticas.

A este propósito, não resisto a respigar um post de há uns meses, escrito pouco depois de participar num debate do Livre acerca de reestruturação da dívida (ver documento aqui). O corolário da minha intervenção, que incidiu sobre o caso de Portugal, era simples: “A recusa da reestruturação não resulta de insensibilidade face a estes problemas, ou da convicção de que a dívida é para pagar a qualquer custo. Resulta simplesmente da crença de que, nas circunstâncias concretas em que Portugal se encontra, a ameaça de um default acabaria por os agravar, em vez de minorar (…) O que recomenda prudência a quem estiver a pensar erigir programas políticos em torno da bandeira da reestruturação”.

Esta conclusão resultava de dois elementos. Primeiro, a eterna questão do saldo primário: na altura em que escrevi, Portugal tinha um saldo primário marginalmente positivo, o que significava, na prática, que o excedente das receitas sobre as despesas sem juros era pequeno. Ou seja, o alívio concedido pelo não pagamento de juros seria quase totalmente cancelado pela redução dos empréstimos que o default acarretaria (secção default e tiros no pé, na página 7).

É verdade que a Grécia tinha uma posição orçamental mais favorável do que a de Portugal, com um saldo primário previsto para 2014 em torno dos 3% e perspectivas de crescimento relativamente benignas de 2015 em diante. Por outro lado, o saldo de 2014 foi delapidado no final do ano e as perspectivas de crescimento sofreram uma revisão em baixa brutal (ver contas aqui). A debilidade das contas gregas acabou assim por impedir a Grécia de usar o default como arma de arremesso. Numa situação de default seria sempre ela a primeira a perder. Ninguém achou estranho que um Governo eleito para renegociar a dívida tivesse andado de mão estendida durante meses para encontrar maneira de a pagar? Não foi por acaso.

O segundo elemento tinha que ver com a percentagem de dívida pública detida pelo próprio sistema financeiro do país (discussão na página 10). A partir do momento em que uma fracção das obrigações portuguesas estão em mãos dos bancos portugueses, uma boa parte parte dos custos do default serão assumidos pelos bancos em causa – e, consequentemente, pelos credores (por exemplo, depositantes) desses mesmos bancos.

No caso da Grécia, o sistema financeiro estava altamente exposto aos títulos soberanos; o espectro do default (e, numa fase tardia, a materialização desse risco) tornou os títulos um activo arriscado, que deixou de ser considerado elegível para as operações de refinanciamento do BCE. Sem liquidez, foi obviamente necessário implementar controlo de capitais para travar levantamentos abruptos.

É tentador criticar o BCE pela opção que tomou, mas convém ter em conta que este é o procedimento standard neste tipo de situações, porque é suposto que o Banco Central actue apenas com activos sem risco. Pedir-lhe que continuasse a financiar os bancos num momento em que os colaterais subjacentes estão em default equivale a dizer que devia ignorar o seu mandato para ajudar um Estado-membro – o tipo de coisa que o BCE foi criado para não fazer. É incrível como o cumprimento das regras fundamentais do BCE é visto como uma espécie de waterbording financeiro, ou uma táctica mafiosa para vergar o Syriza.

Um terceiro elemento, que não referi no debate mas que enfatizei várias vezes neste blogue durante os últimos anos, é a eterna questão da credibilidade e da confiança. O “braço de ferro” entre credores e devedores pode ser visto como uma disputa por recursos: os gregos precisam do dinheiro alemão, e a Alemanha não quer emprestar dinheiro à Grécia. A única forma de reduzir os receios alemães passa por oferecer garantias, tão credíveis quanto possível, de que esse dinheiro será devolvido. Nesse sentido, prometer que se está disposto a fazer o que for preciso para pôr as contas em dia – um whatever it takes, versão Vítor Gaspar – é a melhor maneira de obter mais dinheiro e, dessa forma, adoptar uma estratégia de consolidação orçamental mais suave e prolongada no tempo.

Já a repetição ad nauseum de que a dívida é insustentável, de que a austeridade é uma opção e de que “agora vai ser diferente” só reforça, nos credores, a ideia de que o dinheiro que eventualmente emprestarem não voltará a entrar nos seus cofres. Apesar de muita gente ter visto tiques de malvadez no acordo proposto à Grécia, que é aparentemente mais doloroso do que o que estava em cima da mesa há duas semanas, é preciso ter presente que uma boa parte dos pormenores mais melindrosos – como a exigência da criação de uma espécie de fundo de activos hipotecados – serve apenas como um mecanismo de seguro para garantir que o empréstimo é pago. Esta atitude de suspeição e controlo, humilhante como é, era praticamente inevitável depois de o Governo grego ter convocado um referendo para ganhar força no combate aos cortes orçamentais. Na prática, o referendo apenas tornou mais vazia a intersecção entre o conjunto das opções que a Grécia acha aceitáveis e o conjunto de concessões que a Alemanha está disposta a fazer.

Tudo isto é trágico, doloroso e lamentável. Mas nada disto é particularmente surpreendente.

E daqui para a frente? Os últimos meses foram terríveis. O plano de austeridade inicialmente previsto foi reforçado, e vai operar agora sobre uma economia muito mais débil (ainda não há previsões para os próximos anos, mas não é difícil imaginar que não vão ser bonitas), com controlos de capitais em vigor. De forma pouco surpreendente, o discurso contra a austeridade acabou por reforçá-la na sua magnitude e por exacerbar o seu impacto.

Mas mais trágico ainda é o facto de se terem fechado uma série de portas que em 2014 estavam abertas. Por exemplo, no final do ano passado houve uma série de apelos, por parte de vários economistas, à flexibilização das metas orçamentais gregas (ver o Bruegel, por exemplo; e aqui fui eu a meter a colher).. O argumento era simples: a dinâmica da dívida pública era suficientemente boa para ser compaginável com um relaxar das metas, e esse relaxar seria obtido sem implicar qualquer reestruturação, politicamente tóxica para os credores. Neste momento, a situação orçamental já não permite flexibilizações deste género: baixar a exigência para o saldo primário colocaria rapidamente a dívida numa trajectória insustentável, razão pela qual a Europa dificilmente cederá neste ponto.

Não é fácil quebrar este bloqueio. Uma possibilidade é a Grécia e os credores começarem urgentemente a reconstruir a relação de confiança, criando as bases para uma flexibilização no futuro. Esta é a solução frustrante: começar a empurrar novamente a pedra pela montanha acima. Mas os proveitos desta opção serão provavelmente curtos. As perspectivas económicas já são tão más que seriam necessárias concessões enormes para inverter rapidamente a onda recessiva que a Grécia começou a surfar. Por outro lado, a relação está tão deteriorada que concessões significativas a curto prazo são quase inconcebíveis.

Os próximos dias vão ser cruciais para se perceber o que vem aí. Primeiro, porque teremos mais detalhes acerca da verdadeira dimensão da austeridade exigida (sim, temos uma ideia das medidas em causa, mas nestas coisas precisamos de ter números, um baseline e uma série de outras informações que não aparecem nas declarações do Eurogrupo). Segundo, porque vamos conhecer com mais rigor o estado da economia grega (o Eurostat vai publicar um boletim nos próximos dias). E, terceiro, porque saberemos ao certo em que ponto está a relação entre credores e devedores.

Se as coisas estiverem tão mal como penso – e podem estar mesmo muito más -, a saída da Grécia do euro é o cenário mais provável. Caso as perspectivas sejam mais dois ou três anos de recessão dolorosa, e uma subida sucessiva no ranking das maiores tragédias macroeconómicas da história, o dracma acabará, a qualquer momento, por se tornar um mal menor (embora eu ache que já passámos há muito o ponto em que o argumento do “sem euro seria pior” fazia sentido – sobre isto, ver também Paul Krugman).

Dito isto, queria acrescentar um ponto. O argumento da “falta de confiança” não justifica tudo. Como os relatos da reunião de domingo mostram, nem todos estão de acordo em relação àquilo que são “garantias claras” por parte do Governo grego. Há visões diferentes, e alguns países exigem mais do que outros países. Neste momento complicado, era bom que a visão mais branda e solidária acabasse por sair vencedora. As perspectivas de sucesso para a via da ‘restauração da confiança + concessões crescentes’ já não são famosas; não precisamos de pulhices Schaublianas (para usar a expressão de um amigo) para as fazer descer a zero.

11 comments on “Era tudo tão, tão, tão previsível

  1. Parabéns pela excelente síntese do que se passou e está a passar com a Grécia.
    Gostaria de acrescentar ainda que também penso que o regresso ao dracma poderá não ser o mal maior para a Grécia, embora em qualquer cenário a sua situação vá ser muito complicada nos próximos anos.

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  2. «os votos gregos contra a austeridade são um “exercício da democracia”, os votos alemães contra um empréstimo adicional são uma perfídia»

    Eu até estou convencido que os eleitores alemães, falantes de línguas aparentadas, habitantes de antigos impérios germanófonos e afins são maioritariamente contra alívios à Grécia, mas a verdade é que creio que em nenhum desses países houve referendos ou até eleições centradas principalmente à volta desse assunto (talvez na Finlândia, mas mesmo aí não sei se a posição anti-baiouts dos Verdadeiros Finlandeses era mesmo um aspeto importante do seu programa, ou apenas algo a que a imprensa portuguesa deu, por motivos óbvios, atenção desproporcionada).

    Suspeito que se se fizesse uma votação pan-europeia usando aqueles esquemas que alguns académicos propõem para os eleitores puderem dar mais ou menos intensidade ao voto, as forças anti-austeridade ganhariam (já que imagino que os países devedores darão mais importância à anti-austeridade do que os credores à pro-austeridade)

    «que deixou de ser considerado elegível para as operações de refinanciamento do BCE. Sem liquidez, foi obviamente necessário implementar controlo de capitais para travar levantamentos abruptos.»

    Mas foi por isso que o BCE cortou o fornecimento de liquidez? Há aqui dois momentos diferentes – por um lado, logo em fevereiro ou março, o BCE deixou de emprestar dinheiro a trocos de títulos gregos, e creio que tal foi justificado por os títulos terem deixado de ser de confiança; por outro, há umas semanas o BCE deixou, na prática, de emprestar dinheiro ao Banco da Grécia para este emprestar aos bancos gregos; essa decisão também foi justificada com esse argumento (de que a dívida grega já não era segura)? Ou foi simplesmente apresentado como “decidimos porque decidimos”?

    «Já a repetição ad nauseum de que a dívida é insustentável, de que a austeridade é uma opção e de que “agora vai ser diferente” só reforça, nos credores, a ideia de que o dinheiro que eventualmente emprestarem não voltará a entrar nos seus cofres.»

    No caso de um empréstimo para pagar um empréstimo, isso não alterará um pouco as coisas? Afinal, agora a alternativa é “entramos em default e não recebem nada ou então renovam o empréstimo em condições mais vantajosas e até pode ser, com sorte, que venham a receber qualquer coisa”

    O ponto final sobre a questão da “confiança”, que tem sido muito falada nestas últimas semanas; a ideia que tenho é que o governo syriza-anel em momento algum deixou de cumprir algum compromisso que tenha assumido com a UE (se houve algum não-cumprimento até foi no sentido oposto – de fazer ameaças que depois não cumpria).

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    • “a ideia que tenho é que o governo syriza-anel em momento algum deixou de cumprir algum compromisso que tenha assumido com a UE ”

      Entretanto, (pelas notícias que tenho) o Comité Central do Syriza rejeitou o acordo – admito que conte como não cumprir um compromisso assumido.

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    • Carlos Duarte diz:

      Eu ia mais longe: que confiança merecem os proponentes do plano de resgate, quando as previsões constantes do referido programa são sucessivamente e de forma grave, falhadas?

      A confiança é importante, mas tem de ser mútua. Neste caso implicava que para a Grécia poder aceitar de boa fé um programa dos credores (por mais duro que fosse), este tinham igualmente de se comprometer com as metas.

      Um exemplo: quando se fala de alívio da dívida, porque não uma claúsula de redução automática da mesma em caso de falha dos objectivos por má previsão do programa? Ou transferências compensatórias caso o PIB caísse mais que o estimado? Ou, e pela vigência do programa, alvos de consolidação orçamental em termos absolutos e não relativos?

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      • Talvez pudesse haver algo parecido com a “falência pessoal” para países – quando uma pessoa vai à falência, durante 5 anos (acho) fica com um administrador e gerir-lhe as finanças, e tudo o que ganha acima do salário mínimo vai para pagar dívidas; ao fim dos 5 anos, as dívidas são consideradas pagas.

        Uma variante pura e dura disto (um país ficar com um governador colonial durante 5 anos, e ao fim desses 5 anos perdoar toda a dívida do país que ainda não tivesse sido paga) era impraticável nos dias de hoje (no mundo da democracia e da soberania das nações), mas poderia haver um sistema de o país comprometer-se a aplicar um dado programa de austeridade durante alguns anos (e com uma “troika” a vigiar a aplicação do programa, e com algo parecido com poder de veto – ou pelo menos poder para dizer “não concordamos com essa lei que aprovaram” – sobre novas leis), e se ao fim do programa ele tiver sido cumprido e o país não tiver aprovado novas medidas contra a vontade da “troika”, a dívida é automaticamente reduzida a um valor predefinido.

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      • Carlos Duarte diz:

        Mas isso já acontece, de certa forma, Miguel Madeira. Os programas de assistência cristalizaram-se de tal forma que a margem de manobra do governo (neste caso Grego) é diminuta – e com a “nova versão”, ainda mais.

        O caso grego, em termos “práticos”, até é simples e tem três pontos:

        1 – A dívida é sustentável nos prazos da mesma? Se não, tem de ser reduzida / reescalonada.

        2- Caso o ponto 1 seja negativo e se proceda à redução dos encargos com a dívida, qual a possibilidade a mesma ser a médio-longo prazo sustentável dentro da zona euro, desde que se façam reformas? Se sim, façam-se as reformas, se não passa ao ponto seguinte.

        3- Caso os dois pontos anteriores não sejam possíveis ou caso a Grécia falhe no cumprimento das reformas acordadas, deve sair do Euro. Neste caso, a saída deve ser planeada e suportada, com um “sliding peg” do novo Dracma ao Euro (i.e. desvalorização controlada e faseada) e com todo o apoio económico por parte do BCE (em termos de liquidez do sistema bancário), investimento reforçado por parte da UE (como contra-peso à queda do PIB) e eliminação total da dívida institucional (i.e. não devida a privados) por parte do governo grego. A dívida privada deve ser reconvertida em Dracmas (incluíndo contratos de crédito), bem como os depósitos bancários cobertos pelo Banco Central Grego.

        O que vemos, em vez disso, é um jogo de sombras em que andam uns a enganar-se aos outros, quando todos sabem que nada disto é real.

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  3. António Barreto* diz:

    Uma lição e peras (aprende-se muito por aqui!)! Julgo que Tsypras está acabado; perdeu a credibilidade nas três frentes, credores, gregos e Syriza. Restauração da confiança com eleições e recomeçar do zero. Período de carência de juros, alargamento das maturidades e…o mais difícil, reformas estruturais.

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  4. JL diz:

    Desvalorizas enormemente múltiplos aspectos político legais deste imbróglios. Na maior parte dos casos optas por os ignorar. A crise, nos últimos meses, pouco teve de económica. Foi um produto de questões politico-legais passadas (i.e. os vários tratados que versam sobre a moeda única) e presentes (i.e.

    Por exemplo, o trilema da moeda única já há muito estava identificado: ou bailouts ou perda de soberania fiscal. Aí a questão ultrapassa absolutamente aspectos económicos, pese embora o apontamento e a necessidade de um ou outro nasça aí. Nunca vi nos textos uma franja de compreensão desses aspectos. Outros exemplos são a inexistência de cláusulas de saída e de reestruturação de dívidas. Sugerir, como muitos sugeriram nos últimos meses, incluindo membros do Eurogrupo, que isto é um entrave – no caso do Schäuble, sugeriu (de má fé) que os tratados o impossibilitavam – é uma desculpa política. O pacto de estabilidade e crescimento e depois o compacto fiscal também não existiam antes de haver vontade política e execução legal (e outros exemplos existem dentro da união monetária). É importante compreender estas dimensões do problema para realmente se perceber o ‘não quiseram dar dinheiro’. É fundamental porque o Eurogrupo não existe. A troika não existe. O IMF também não está previsto nos tratados. É notável que passes ao lado disso na tua estória. Admito que seja por estares centrado em questões económicas e tenhas menor aderência para outras disciplinas, mas semelhante estória requer uma visão abrangente. Significa isto que queriam sabotar o Syriza? A adjectivação do acto é retórica política. Aqui revelas estar atento a aspectos populistas da política, portanto pouco substanciais. Facto é que tiveram o propósito de pressionar. Foram desculpas políticas. Foi falta de vontade. Não foi falta de confiança. A confiança só se tornou um problema com o arrastar do tempo. As cartas estavam na mesa desde o início. A partir daí foi jogo político e inação legal. A perda de confiança foi recíproca é fomentada (é isso sabotagem?) por razões políticas. É evidente que houve governos que extremaram posições por questões políticas, i.e. porque eram internamente a favor da austeridade, ou por recearem a emergência de partidos contra a austeridade – ou seja, motivados pela auto-preservação -, é isto sabotagem? Como disse, essa é já de si uma adjectivação; uma classificado dos actos. Os actos e os factos, esses são uma evidência. E esses pertencem por excelência nas estórias. A visão que te falta, aqui, é político-legal. Era essa a que te permitiria questionar e perceber porque é que os Estados Unidos, a Rússia ou China se pronunciaram em relação à Grécia (reparaste em que sentido?); ou porque é que a adjectivação do Reino Unido como eurocéptico é reveladora da incompreensão dos média, tão bem manipulados pela linguagem política, das reais tensões e dimensões de soberania subjacentes à UE (e, inclusiva a outras instituições supraestaduais como a OECD, WTO ou IMF). A estória que contarias seria diferente, aqui e ali.

    Atenção, ainda, para as questões de défice democrático existentes na Europa. O referendo da Grécia é apenas a cereja no topo do bolo. Oposição ao referendo de 2011 também foi manifestada, afastando qualquer ilusão de que a actual posição estava relacionada com o Syriza. O absoluto receio nasceu com o referendo à constituição europeia. A tal cujos artigos, em grande parte foram pouco depois reciclados em amendas ao aos tratados, em Lisboa. Mas o défice democrático é mais antigo e encontras essas indicações em vasta literatura científica. As atribuições que pertencem ao conselho e não ao parlamento, ou a integração negativa e o expansivo papel do TJUE, alargando a sua Kompetenz-Kompetenz, são apenas dois exemplos. E que dizer da maior reforma fiscal internacional de sempre, mandatada pelo G20 e UE à OECD e actualmente em curso? Não ouviste falar muito disso pois não? 🙂 Estórias. Já dizia o Napoleão…

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  5. Leitor diz:

    O problema é que, no entendimento da crise grega a nível europeu, parece que estamos presos em 2010 e não avançamos http://blogs.ft.com/brusselsblog/2014/11/11/draghis-ecb-management-the-leaked-geithner-files/

    Como escreveu Vítor Bento http://observador.pt/especiais/eurocrise-uma-outra-perspectiva/ deveria existir ajuste simétrico ou menos assimétrico e desse ninguém fala, já Keynes, em Bretton Woods, se preocupava que o esforço de ajustamento dos desequilíbrios externos terem de ser sempre do lado dos devedores, nunca conjugado com os credores…

    Como dizia o Prof. Ferreira do Amaral o pé português não cabe na forma do euro, cortamos o pé ou procuramos ou nova forma?

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  6. Desculpem lá, mas em férias só cá venho de longe a longe. Respondendo:

    Miguel Madeira,

    “Mas foi por isso que o BCE cortou o fornecimento de liquidez? Há aqui dois momentos diferentes – por um lado, logo em fevereiro ou março, o BCE deixou de emprestar dinheiro a trocos de títulos gregos, e creio que tal foi justificado por os títulos terem deixado de ser de confiança; por outro, há umas semanas o BCE deixou, na prática, de emprestar dinheiro ao Banco da Grécia para este emprestar aos bancos gregos; essa decisão também foi justificada com esse argumento (de que a dívida grega já não era segura)? Ou foi simplesmente apresentado como “decidimos porque decidimos”?”

    As regras concretas do ELA não são claras – aliás, tanto quanto sei, não são conhecidas de todo. Mas o que é claro é que no caso do ELA o risco recai sobre o BC nacional, pelo que um default tem de ser coberto pelo próprio BC, através de recapitalização do Governo. Se o Governo em causa está insolvente, é natural que a linha seja descontinuada. Já agora, a Irlanda teve um problema semelhante em 2009, que o BCE tratou de forma parecida, julgo eu (ou seja, com ameaças – que neste caso foram mais veladas do que explícitas) de fim abrupto do ELA.

    “No caso de um empréstimo para pagar um empréstimo, isso não alterará um pouco as coisas? Afinal, agora a alternativa é “entramos em default e não recebem nada ou então renovam o empréstimo em condições mais vantajosas e até pode ser, com sorte, que venham a receber qualquer coisa”

    Penso que depende. Se a questão for substituir dívida oficial por dívida oficial, diria que sim. Mas na prática: a) há muita divida não oficial a ser substituída por dívida oficial, pelo que há necessariamente um aumento de exposição à Grécia; b) não sendo certa a dimensão do saldo primário, é impossível saber se o dinheiro é para refinanciar dívida que vence ou se é para pagar despesas correntes. Em todo o caso, na última análise de sustentabilidade da dívida grega que eu vi previa-se um grande aumento da exposição do sector oficial à Grécia.

    “O ponto final sobre a questão da “confiança”, que tem sido muito falada nestas últimas semanas; a ideia que tenho é que o governo syriza-anel em momento algum deixou de cumprir algum compromisso que tenha assumido com a UE (se houve algum não-cumprimento até foi no sentido oposto – de fazer ameaças que depois não cumpria)”.

    Fora algumas coisas mais simbólicas do que outras (como o caso das senhoras da limpeza re-contratadas, também é essa a minha impressão. Mas não sei até que ponto isso contraria o argumento. Eu diria que o facto de alguém estar a cumprir devia ser motivo para realçar esse compromisso, e não para anunciar uma posição de confronto. Neste caso, acho que só serve para ofuscar este ponto.

    Carlos Duarte,

    “Eu ia mais longe: que confiança merecem os proponentes do plano de resgate, quando as previsões constantes do referido programa são sucessivamente e de forma grave, falhadas?”

    A questão aqui é a assimetria do processo. A Grécia depende dos credores para obter mais financiamento. Os credores não dependem da Grécia. Obviamente que o processo corre melhor se houver confiança de parte a parte, mas se as coisas correrem mal é a Grécia, em primeiro lugar, que tem interesse em manter todas as pontes abertas.

    —-

    JL,

    Não consigo perceber a relevância da maioria desses pontos. Aliás, confesso que nem sequer consigo segui-los e perceber ao certo o encadeamento dos argumentos…

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    Leitor,

    “Como escreveu Vítor Bento http://observador.pt/especiais/eurocrise-uma-outra-perspectiva/ deveria existir ajuste simétrico ou menos assimétrico e desse ninguém fala”

    Não é verdade. Procure por “artigo de Vítor Bento” neste blogue e há-de encontrar muitas referências. Quanto ao artigo de Bernanke, concordo com tudo.

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