Robôs a roubar empregos

Este é um daqueles post guardados como draft há algum tempo. A ideia era publicar alguma coisa durante a Web Summit, mas acabei por não ter tempo. Felizmente, o Observador fez-me o favor de manter o tema vivo:

Os robôs vão ajudar-nos a mudar o mundo. E vão roubar os nossos empregos: O Fórum Económico Mundial prevê que, até 2020, desapareçam cinco milhões de empregos nos quinze países mais desenvolvidos do mundo por causa da evolução da robótica e da inteligência artificial. Segundo o estudo, divulgado no início deste ano na Conferência de Davos, os setores da saúde, energético e financeiro serão os mais afetados, mas também haverá perdas de trabalho consideráveis na construção, na extração de recursos e no setor das artes e do entretenimento.

Vamos supor que há de facto uma legião de robôs capazes de fazer tão bem ou melhor o trabalho que hoje é feito por seres humanos. Este é um grande ‘se’, como veremos daqui a pouco. Mas mesmo assumindo a premissa como verdadeira não é óbvio em que é que isto difere dos processos de mecanização e automatização que estão em curso há… enfim, há vários séculos. Trocar mão-de-obra por maquinaria é o que tem acontecido nas economias desenvolvidas pelo menos desde a Revolução Industrial.

A substituição de pessoas por máquinas – ou ‘trabalho’ por ‘capital’ – permite produzir a mesma quantidade de bens e serviços com um menor número de trabalhadores. Este é o objectivo declarado da mecanização: produzir o mesmo com menos.

E este processo tem um nome. Chama-se crescimento da produtividade. E habitualmente pensamos na produtividade como uma coisa boa a estimular, não como um problema a evitar. Se cada pessoa produz mais, então – e assumindo que a produção adicional não é exportada para a Lua – cada pessoa pode também consumir mais.

A ideia de que o aumento da produtividade é mau decorre de uma falácia comum, que é a falácia da quantidade fixa de empregos. Tudo começa com a suposição de que há um número fixo de postos de trabalho, no qual a mão-de-obra tem de ser encaixada. Se um destes postos de trabalho é ‘tomado’ por uma máquina então há (pelo menos) um trabalhador do país que fica desempregado. Deste ponto de vista, o progresso tecnológico acaba inevitavelmente por destruir empregos, da mesma forma – e através do mesmo mecanismo – que a globalização ou a imigração.

Por que é que este raciocínio é falacioso? Porque não leva em conta a procura adicional gerada pelo aumento da produtividade. A partir do momento em que alguém está a ganhar rendimento com a substituição de trabalho por capital – e alguém tem de estar, porque caso contrário a troca de trabalhadores por máquinas não seria lucrativa – esse alguém vai gastar o dinheiro em outros bens e serviços. E essa produção de novos bens e serviços vai implicar um aumento do emprego noutros novos sectores.

A Economia é fértil em just-so-stories: teorias aceites mais por elegância teórica do que por confirmação empírica. Mas mesmo que  o mecanismo exposto no parágrafo anterior seja uma simplificação grosseira da questão – e é, por ignorar uma série de elementos que tornam a história real mais complicada -, o modelo subjacente é, ainda assim, uma aproximação muito mais fiel à realidade do que o ‘modelo’ alternativo do número fixo de empregos. O facto de a produtividade nos países desenvolvidos ter aumentado mais de 20 vezes nos últimos dois séculos (podem brincar com a fonte aqui) sem impactos que se vejam no emprego, é uma prova decisiva de que a tecnologia e o mercado laboral são realidades distintas. A tecnologia tem trazido melhores salários, não mais desemprego.

Podemos portanto excluir da nossa lista de preocupações prementes o risco de uma sociedade sem empregos. Mas fora do cardápio de futuros distópicos há receios mais plausíveis que deviam ser levados a sério.

Em primeiro lugar, nem sempre o a inovação elimina actividades obsoletas. É possível que os trabalhadores ameaçados pelo progresso não reajam à pressão competitiva mudando de ramo de actividade, mas aceitando cortes salariais cada vez maiores. Neste caso, os trabalhadores afectados pela concorrência tecnológica não alimentam novos sectores em crescimento. Limitam-se a vegetar num sector de actividade cada vez mais decrépito, assistindo passivamente ao alargar do fosso salarial.

Claro que o processo de absorção de choques por via salarial não pode durar indefinidamente (quanto mais não seja por causa dos limites impostos pelo salário mínimo). A certa altura, o posto de trabalho desaparece. Hoje em dia ninguém está disponível para empregar um operador, por muito baixo que seja o salário exigido. Os botões – salvo excepções muito restritas – dão bem conta do recado.

Mas entre o momento em que um trabalhador deixa uma posição num sector a definhar e o momento em que pega de estaca numa nova actividade (ou numa actividade já existente – o que para o caso é indiferente) pode ir muito tempo. A evidência histórica mostra que ao longo de um período longo – várias décadas, digamos – a produtividade traduz-se em salários mais altos, sem impacto que se veja no emprego. Mas em prazos mais curtos – e o ‘curto’, neste caso, pode bem ser 10 ou 20 anos – é perfeitamente possível que se notem efeitos no mercado laboral, como se notou (e de que maneira!) durante o colapso do planeamento central na Rússia. E este é um problema sério. No longo prazo, como alguém dizia, estamos todos mortos1.

Finalmente, e em terceiro lugar, não é certo nem seguro que os ganhos recolhidos por quem beneficia do progresso tecnológico – sejam os detentores das máquinas, sejam os trabalhadores que com elas trabalham – acabem por gastar esses lucros/salários adicionais. E este é um pressuposto importante, mas nem sempre devidamente explicitado, do modelo que nos permite dizer que a tecnologia não afecta o emprego (e, já agora, do modelo que diz o mesmo acerca do comércio internacional2).

O que dizem os estudos empíricos? Como em quase tudo na economia, há estimativas para dar a vender. Mas apesar de os coeficientes estimados diferirem de estudo para estudo, parece-me que a maior parte chega à conclusão que a tecnologia – em conjunto com a globalização e factores mais, hum, ‘políticos’ – explica pelo menos um pouco do crescimento da desigualdade nas últimas quatro décadas.

Ok, agora a parte importante. Não duvido que a tecnologia possa causar danos colaterais, capazes de erodir parte dos ganhos prometidos. Claramente pode, e é por isso que convém ter no arsenal dos policymakers um conjunto de políticas que permitam maximizar os benefícios e contornar os custos: uma rede social generosa para amortecer choques e programas de treino e requalificação para apoiar a troca de emprego.

A questão, e é uma questão importante, é que não há sinal visível de progresso tecnológico acelerado nas estatísticas.

Por que digo isto? Porque a produtividade em praticamente todo o mundo desenvolvido tem vindo a cair ao longo das últimas décadas e está hoje mais ou menos estagnada. Nalguns países até houve redução da produtividade nos últimos anos.

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Incluí apenas algumas economias para não encher o gráfico de lixo, mas podia contar-se a mesma história para o Canadá, Austrália, Alemanha e países nórdicos. Se há um surto de inovação, então alguém escondeu a produtividade correspondente na Área 51.

Já agora, isto não é uma descoberta minha. Um pouco por toda a OCDE não falta discussões acaloradas sobre o que é que está a reter a produtividade. No Reino Unido até já cunharam o termo Productivity Puzzle, e um dos best-sellers do momento é uma obra monumental a defender a ideia de que os frutos mais suculentos da inovação já foram colhidos, tendo agora a humanidade de se contentar com as migalhas3.

Estas duas ideias são incompatíveis. Podemos acreditar que estamos a viver uma era de inovação nunca vista, que vai causar conturbações sociais enormes; e podemos acreditar que estamos num período de estagnação, em que a produtividade vai estagnar ou crescer pouquíssimo. Mas não podemos acreditar nas duas coisas ao mesmo.

E, se não podemos, então quem é que tem razão? É uma boa questão para um próximo post. Entretanto, podem ir lendo algumas coisas interessantes que andam por aí: Opportunities and challenges of artificial intelligence (Jason Furman), Why I am relatively relaxed about robots (John Lewis) e Robotics or fascination with anthropomorphism (Branko Milanovic).

 1 Esta citação é frequentemente mal interpretada. Eu gosto mais da outra formulação: «Economists set themselves too easy, too useless a task, if in tempestuous seasons they can only tell us, that when the storm is long past, the ocean is flat again». Expressa a mesma ideia, sem arriscar a ser lido como uma exortação ao carpe diem. 
Procurem em Ricardo’s difficult idea por ‘constant employment’ e leiam a partir daí. Aliás, aproveitem e leitam todo o ensaio, porque é das coisas mais interessantes que eu já li acerca de comércio internacional.
3 Ok, há muita gente a falar sobre a diminuição da produtividade, mas há menos pessoas a notarem que isso é incompatível com a história dos robôs a roubarem empregos. A primeira pessoa – que eu saiba – a chamar a atenção para este paradoxo foi o Dean Baker.

 

 

3 comments on “Robôs a roubar empregos

  1. Talvez esta questão fosse melhor discutida se fosse discutida em termos de “a concorrência dos robots pode fazer baixar o salário de equilíbrio no mercado de trabalho?” em vez de “os robots podem roubar emprego?” [Se a resposta à primeira pergunta fosse “sim”, a segunda também poderia ser “sim” se houvesse alguma coisa a impedir essa baixa de se concretizar]

    Uma situação em que me dá a ideia que os robots podem efetivamente, não sei bem se roubar trabalho, ou pelo menos fazer descer os salários, é se [taxa de crescimento da produtividade aparente do trabalho] – [taxa de crescimento da produtividade aparente do capital] > [taxa de crescimento do stock de capital]; isto é, se houve uma mudança teconológica para processos de produção cada vez mais capital-intensivos, e o stock existente de capital não aumentar em conformidade, isso poderia efetivamente criar uma ambundância relativa de trabalho e uma escassez relativa de capital, e talvez fazer baixar os salários (ou baixaria apenas os salários em relação ao lucros, mas sem os baixar em termos absolutos?).

    E se a tendência fosse mesmo para a produtividade aparente do trabalho aumentar e a do capital diminuir (isto é, uma situação em que, para produzir uma unidade de produto, cada vez se usasse mais máquinas e menos trabalhadores), acho que isso iria mesmo acabar por provocar o colapso do sistema.

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