«Não é a direcção – é o ritmo»

Quem leu o post anterior pode ter ficado com uma ideia errada de como algumas coisas funcionam. Este post clarifica.

O Estado pode usar o Orçamento para fazer crescer a economia?

Sim. Apesar de ser fácil caricaturar esta ideia (“atirar dinheiro para cima dos problemas”), é quase consensual que a política orçamental tem influência sobre o PIB. As divergências são mais sobre magnitude – qual é o multiplicador, afinal? – e persistência desses efeitos do que propriamente sobre a sua existência.

Mas isso não é a escola keynesiana? Não há outras escolas, com ideias diferentes?

Digamos que é uma ideia keynesiana. Nem toda a economia keynesiana sobreviveu ao teste do tempo, mas esta é uma das ideias que mais se disseminou. E por boas razões. Às vezes a ciência progride mesmo – até a económica.

Mas não é nada essa a ideia com que se fica quando se ouve debates na televisão. 

Talvez não. Mas anote: os principais manuais de macroeconomia – como este e este – introduzem o tema dos ciclos económicos recorrendo a um modelo keynesiano (o IS-LM). A generalidade dos bancos centrais faz simulações de políticas usando modelos modernos chamados de… neokeynesianos. O FMI segue a mesma prática. Um inquérito a economistas americanos – americanos! – concluiu que 97% dos inquiridos acha que o programa de estímulo económico de 2009 teve efeitos positivos no emprego. A esmagadora maioria dos estudos empíricos de política orçamental corrobora esta ideia. Isto é tão consensual quanto algo pode ser consensual em economia. Nesse sentido, hoje somos todos keynesianos.

Então mas Portugal não teve défices atrás de défices na última década? E crescemos uma míngua. 

Esse não é um argumento informado. Aquilo que no modelo keynesiano afecta o crescimento económico não é o défice em si, que pode ser alto, baixo ou nulo – é a variação do saldo orçamental (aliás, a variação do saldo orçamental estrutural). E apesar de Portugal ter de facto tido défices crónicos durante a primeira década do século, a verdade é que o seu saldo estrutural praticamente não se mexeu – foi de -4,8% em 2001, e -3,7% em 2007.

Também é importante notar que o efeito da política orçamental sobre a economia tende a ser tanto maior quanto maior for a capacidade inutilizada (desemprego involuntário), e temos poucas razões para acreditar que entre 2000 e 2007 Portugal tivesse problemas de procura desta natureza. O Output Gap, a melhor medida que temos para medir a capacidade disponível, rondou os 0% (em média), nunca caindo abaixo dos -1,4%. E a taxa de câmbio real, que numa situação de slack tende a desvalorizar, continuou a apreciar-se ao longo do período.

Por isso não é estranho que não tenhamos visto os resultados dos estímulos orçamentais. Não os vimos porque não existiram. E mesmo que tivessem existido provavelmente não teriam grandes efeitos, dado que a capacidade disponível era diminuta.

Percebo. E neste momento?

Neste momento, Portugal tem um Output Gap de cerca de -4%, segundo a Comissão Europeia (embora a própria Comissão ache que este número subestima o verdadeiro Gap, como este grupo tem defendido). Também tem uma taxa de desemprego em torno dos 12%, que com toda a certeza é largamente cíclica e involuntária.

Isso significa que este é o momento ideal para estimular a economia?

Do ponto de vista económico um estímulo neste momento teria, em princípio, um efeito muito maior do que um estímulo em 2000 ou em 2007.

Portanto, é consensual que a política orçamental tem efeitos económicos…

Sim.

… E esses efeitos são particularmente violentos no momento actual…

Exacto.

Então por que raio é que é precisamente agora que pedem que reduzamos o défice? Está tudo maluco?

A questão não pode ser colocada desta forma. Só é possível tomar medidas expansionistas se houver dinheiro para as financiar, e o facto mais incontornável do Portugal de 2011 foi a perda de acesso aos mercados, que financiavam o nosso défice. É como comer legumes ao jantar: não basta saber que fazem bem à saúde, é preciso ter dinheiro para os comprar.

Isso é a doutrina do TINA (there is no alternative). É mesmo assim?

É. Quem quer gastar sem ter dinheiro ou pede emprestado ou… enfim, não gasta. E sim, é mesmo assim tão simples. A questão é só se um país se apercebe dessa restrição a tempo e tenta arranjar maneira de a aliviar, ou se a ignora enquanto pode até que ela lhe bata com estrondo na cara 

Mas agora Portugal financia-se a juros inferiores a 3%. É óbvio que há gente disposta a emprestar-nos dinheiro. Há algum argumento para não estimular a economia neste momento?

Há dois argumentos. O primeiro é que esse acesso aos mercados não é incondicional, e pode ser relativamente fácil cair de novo numa situação em que os mercados deixam de nos financiar Por exemplo, se o Governo implementar um estímulo de 10% do PIB é óbvio que as taxas de juro sobem – mesmo que a economia cresça 10% e, em consequência, o défice real apenas suba 5 pontos percentuais.

Isso é descabido. Ninguém propõe gastar isso tudo.

Claro que não, mas radicalizar a pergunta pode ajudar a clarificar a resposta. E o ponto essencial da resposta é que há sempre algum défice a partir do qual os mercados começam a reagir mal. Não sabemos bem qual é esse défice, mas ele existe. E mesmo pequenos desvios de trajectória podem ter impactos consideráveis, se se entender que esses desvios sinalizam alterações de comportamento com impactos de longo prazo. Não quer dizer que tenham; quer dizer que podem ter. Manter a consolidação orçamental ao ritmo previsto é assim uma política de seguro.

E a segunda razão?

A segunda razão é um pouco diferente. Mesmo que os mercados sejam coniventes com um défice mais alto, há regras europeias que nos obrigam a manter a consolidação orçamental em velocidade cruzeiro – a regra do saldo estrutural equilibrado, da redução da dívida até aos 60%, etc. Estímulos económicos, mesmo pequenos, podem ser incompatíveis com estes objectivos.

Mas se as regras impõem custos desnecessários, inviabilizando programas de estímulo que os Estados acham desejáveis e os mercados acham aceitáveis, não era altura de mudar as regras?

É possível que algumas das metas não façam sentido em termos económicos. Há muita gente que pensa isso (I, II), inclusivamente na própria Comssão. E talvez valha a pena lutar por regras diferentes. Mas enquanto esse debate é feito as regras em vigor continuam a ser as que existem, e é por elas que temos de nos pautar. É como algumas normas do Código da Estrada: mesmo que não façam muito sentido convém não as ignorar – pelo menos quando a polícia estiver por perto.

Mas já ninguém segue essas normas. Está tudo com défices e dívidas por essa Europa fora.

Bom, algumas regras europeias não são exactamente desrespeitadas, mas sim “suspensas” ao abrigo de cláusulas de excepção conhecidas por todos. E muitos países embarcaram em programas de austeridade violentíssimos precisamente por causa da existência destas regras. Dizer que ninguém lhes liga patavina é por isso um pouco exagerado. Dito isto, é verdade que o cumprimento das regras não é famoso. Mas convém pelo menos não as desprezar à descarada, nem fazer alarde do incumprimento.

Compreendo. Mas os mesmos argumentos não podiam ser aplicados rigorosamente da mesma forma em 2012 e 2013? Afinal de contas nessa altura o actual Governo também tentou renegociar as metas do défice. Qual é a diferença?

Há duas pequenas diferenças. A primeira é que Portugal estava sob um programa de assistência, e para todos os efeitos financiava-se junto de credores oficiais. O argumento de que os mercados podiam reagir negativamente era por isso menos relevante. A segunda é que as metas do défice já eram negociadas indirectamente com a Comissão Europeia, que fazia parte da Troika. Não fazia muito sentido invocar metas europeias quando o órgão responsável por garantir o enforcement dessas metas já tinha dado o seu assentimento tácito a metas diferentes.

Dito isto, as diferenças são menos relevantes do que parecem. Adiar a consolidação podia não trazer juros mais altos no curto prazo mas tornava o regresso aos mercados mais arriscado, alimentando o receio de juros mais altos. E sair do programa com um défice mais alto também significava ter um caminho maior por percorrer assim que as regras europeias voltassem a aplicar-se. Deste ponto de vista, a decisão de ter um défice mais alto que o previsto em 2012 e 2013 não é de facto muito diferente da decisão de ter um défice mais alto que o previsto em 2016 ou 2017.

Portanto, ao pedir a renegociação das metas o Governo basicamente estava a “manter a direcção, abrandando o ritmo”?

Sim, qualquer coisa desse género. Na prática suavizou o ritmo para deixar a economia respirar mais, assumindo o ónus de ter uma dívida e um défice mais altos do que teriam do que se tivessem mantido as metas originais.

Agora outra pergunta. E não é possível usar o mesmo argumento do “risco” para propor mais austeridade?

Como assim?

Se é possível dizer que “metas menos exigentes do que as actuais são arriscadas”, então por que não ir mais longe e defender metas mais exigentes do que as actuais? Não seria esta opção ainda menos arriscada?

Esse argumento não só é perfeitamente válido como vai à essência do problema. Se quisermos ficar ainda mais imunizados contra os humores de mercado podemos fixar metas orçamentais ainda mais exigentes do que as propostas actuais – assumindo obviamente o ónus de se obter um desemprego que será também consequentemente mais alto. Não há nada de mágico nas metas actuais. .É sempre uma questão de velocidade.

Então como é que se escolhem as metas? Há alguma regra que ajude a definir a “política orçamental” ideal?

É preciso encontrar um equilíbrio delicado entre os riscos de uma dívida mais alta e os problemas de uma economia mais débil. Boas simulações ajudam, sem dúvida. Mas no final a escolha terá tanto de arte quanto de ciência.

Portanto, não há nada de intrinsecamente idiota em rever as metas?

Não. É perfeitamente normal. Mas…

Há sempre um mas…

Mas há uma coisa de que qualquer revisão de planos devia vir acompanhada: cálculos sólidos e fiáveis acerca das implicações das novas escolhas orçamentais têm. E as propostas que têm sido apresentadas não parecem cumprir esse critério. Aparentemente há programas de estímulo que se pagam a si mesmos, enxertos de programas que deixam as contas inalteradas e sabe-se lá mais o quê. Se vamos dizer aos mercados que a dívida vai ser maior do que esperavam, então pelo menos devemos garantir que esse desvio vai ser aquele que esperamos, e não outro qualquer. Falhar uma meta a posteriori por incompetência é muito pior do que mudá-la de forma consciente.

A incerteza parece ser muito importante nestas coisas.

Sem duvida. Em última análise, os investidores estão preocupados com a solvência do Estado. E essa solvência depende muito mais de factores de longo prazo do que das oscilações diárias da bolsa, alguns pontinhos a mais de défice externo ou um défice ligeiramente mais alto. Aliás, quem contacta com investidores fica quase sempre espantado com o grau de desconhecimento que a maioria revela acerca da economia na qual investe. Eles estão muito mais atentos às grandes manchetes do que à volatilidade da conjuntura económica que são amplamente comentados na imprensa.

De certeza que isso tem uma implicação qualquer. Mas não estou a perceber qual é…

A principal implicação é que em princípio deve ser possível fazer algumas alterações de substância na política orçamental sem causar grande alarme. Basta acompanhar essas alterações de garantias sólidas de que elas são pequenas mudanças de curto prazo, sem grande impactos na solvência do Estado em horizontes mais largos. É difícil imaginar um investidor a deixar de comprar dívida portuguesa porque o défice de 2016 vai ser de 2,8% em vez de 2,4%, por exemplo.

Como é que se faz isso? Que tipo de “garantias” podem ser essas?

Não é tão difícil quanto parece. Uma possibilidade é ter um ministro das Finanças capaz de cultivar uma imagem de fanático da consolidação. Isto pode gerar problemas políticos internos, mas externamente funciona muito bem, porque os investidores ficam muito mais seguros de que o seu dinheiro está bem guardado. Sim, isto tem muito de relações públicas. E gera um paradoxo curiosíssimo: na prática, é precisamente quem passa menos tempo a falar de revisão das metas que terá mais facilidade em alterá-las num momento posterior. A credibilidade é um activo inestimável.

Este post começa a ficar enorme. Não é melhor escrever já a bottom line?

A bottom line é que propor uma política orçamental menos rigorosa não é um disparate nenhum. Já foi feito antes e pode fazer sentido de novo. Mas essa proposta devia vir acompanhada de garantias de estabilidade política, contas fiáveis e compromissos de longo prazo, que são as condições que permitem reduzir os custos potenciais desta opção. Infelizmente, não é nada disso que está a acontecer.

4 comments on “«Não é a direcção – é o ritmo»

  1. Carlos Duarte diz:

    Caro Pedro Romano,

    A questão aqui não é que Portugal se devia endividar para estimular a economia (não devia – devia era ter poupado quando eram vacas gordas para agora dar uma ajudinha, mas parece-me que mais difícil do que apertar o cinto quando já estamos à rasca é deixar de viver à farta quando as coisas vão de feição) – é a Europa que devia procurar um equilíbrio intra-EU, em vez de só punir défices excessivos em economias deprimidas (posto de outra forma, nós devemos apertar os cintos mas os alemães devem deixar de acumular tanto).

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    • Carlos, “endividar para estimular a economia” é colocar a questão da forma errada. Portugal tem um défice, e não vai deixar de ter nos próximos anos. Portanto a questão não é se se vai endividar ou não, mas a dimensão desse endividamento – e os prós e contras do endividamento adicional que está em cima da mesa. Quanto à Europa, concordo com a ideia. Mas quem faz política em Portugal tem de a fazer com base no que a Europa decide, e não com base no que a Europa devia decidir.

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      • Carlos Duarte diz:

        Pedro, por “endividar” entenda “aumentar o défice”. Quanto à Europa, há uma diferença entre seguir o acordado a nível europeu – que o deve ser – mas manter uma posição crítica ou pura e simplesmente não o fazer. Até porque a exigência de, e para pegar no exemplo “clássico”, a Alemanha reduzir o superavit externo não só seria provavelmente lido de forma positiva pelos mercados como não afecta em nada os nossos compromissos com os credores.

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  2. Carlos, repare como usa “endividar” e “aumentar o défice” de maneira indistinta. Mas o ponto do post (sobretudo o seguinte) é precisamente mostrar como “endividar mais” pode ser compatível com “descer o défice” e “descer a dívida”.

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