O misterioso “contributo da procura externa líquida”

Alerta prévio: isto é do mais desinteressante que se pode escrever

A maior parte das previsões macroeconómicas contém projecções para os principais indicadores: PIB e respectivos componentes, inflação, desemprego e por aí fora. Mas alguns quadros vão mais longe. E identificam também a origem do crescimento económico, separando o contributo da procura interna do contributo da procura externa líquida.

Estas linhas costumam despertar muito pouco interesse por parte dos analistas. Desde há um ano para cá, contudo, muita gente começou a estar atenta a esta métrica, notando que o regresso da economia ao crescimento está muito mais apoiado na procura interna do que na procura externa líquida. A questão ganhou especial relevância no contexto da eterna discussão acerca da sustentabilidade do saldo externo português (1, 2, 3, 4, 5): se o crescimento vinha da procura externa, então a retoma estava, obviamente, a pôr em causa este saldo.

Infelizmente, este é apenas (mais) um daqueles assuntos em que o mau domínio da Contabilidade Nacional conduz facilmente a conclusões erradas. Na verdade, nem os contributos têm grandes implicações para o défice externo nem eles permitem dizer aquilo que normalmente se lhes pede que digam. Os parágrafos seguintes são necessariamente técnicos.

A primeira razão pela qual nem o crescimento da procura interna nem o crescimento da procura externa determinam o saldo externo é que ambas as componentes são expressas em termos reais. Mas as trocas efectivas com o exterior são feitas em termos nominais. Por exemplo, basta que haja um aumento de preço dos bens exportados por Portugal e uma redução de preço dos bens importados para que o nosso saldo com o exterior melhore. Este efeito termos de troca, contudo, nem sequer aparece no cálculo dos contributos para o PIB.

A segunda razão é ainda mais subtil. Os contributos para o crescimento do PIB obtêm-se (ver aqui) multiplicando a variação de cada componente num determinado período pelo seu peso relativo no período anterior. Por exemplo, se a procura interna cresceu 5% e ela vale 80% do PIB, então o seu contributo para o crescimento do PIB será de 4 pontos percentuais. O mesmo princípio aplica-se às exportações.

Mas há um problema. É que tanto as exportações como a procura interna incorporam uma parte de produção importada, que não é obviamente responsabilidade do país. A contabilidade não pode, obviamente, ignorar este problema. Para eliminar esse factor, calcula-se um contributo ‘fictício’ das importações e atribui-se-lhe um valor negativo que é posteriormente abatido ao valor dos outros contributos. Para complicar ainda mais as coisas, esse valor é, por convenção, deduzido ao contributo das exportações, resultando daí esse indicador exótico que é o contributo da procura externa líquida para o PIB.

Esta forma de calcular contributos é, como se percebe, muito pouco útil. Não só não dá muita informação acerca dos verdadeiros drivers do crescimento como pode, no limite, dar uma imagem perfeitamente enviesada do comportamento da economia. Por exemplo, qualquer crescimento da procura interna – mesmo que alimente única e exclusivamente as importações – é automaticamente considerado um contributo positivo da procura interna para o crescimento. Pior ainda, o aumento das importações daí decorrente abate ao contributo das exportações. No final, a procura interna aparece com o contributo positivo e a procura externa tem um sinal negativo – apesar de na realidade ter acontecido exactamente o contrário (!).

No último ano e meio, a comparação dos contributos gerou uma série de análises enviesadas e muitas vezes contraditórias. Frequentemente falava-se do crescimento de 2014 como resultando de um contributo positivo da procura interna e de um contributo negativo da procura externa líquida, concluindo daí que a economia estava novamente a entrar em desequilíbrio externo. Mas o saldo externo da economia estava na verdade a melhorar – o que devia ter levado estes analistas pelo menos a desconfiar da pertinência deste indicador para servir de barómetro do equilíbrio externo.

Para que este cálculo fosse informativo, seria necessário que as importações fossem deduzidas directamente das componentes a que pertencem. Por que é que isto não é feito? Provavelmente, porque esse cálculo exige ter uma ideia do conteúdo importado da procura interna e das exportações, e esses valores não estão disponíveis numa base trimestral (ou mesmo anual). Felizmente, o Banco de Portugal utilizou a informação disponível para fazer um cálculo aproximado e recalcular os contributos de cada componente. O resultado, que apareceu no boletim de Junho de 2014, é o seguinte. Note-se como os contributos mudam radicalmente em 2014 e daí para a frente (2015 e 2016 são previsões).

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Por que é que estou a repescar uma questão de há pelo menos dois anos e um boletim com 10 meses? Apenas para contextualizar o que o Banco de Portugal passou a fazer nas novas previsões económicas, apresentadas hoje: pura e simplesmente deixar de apresentar os contributos para o crescimento na sua forma anterior e mostrar apenas os contributos líquidos de importações. Tendo em conta que isto é uma inovação (nunca vi nenhum organismo internacional fazer contas deste género – embora possa ser desatenção minha) presumo que pelo menos uma parte da motivação para fazer isto tenha sido travar a proliferação de notícias deste género.

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