Consequências orçamentais de um Governo de Esquerda

Imaginemos, por um momento, que o PS firma um acordo com a Esquerda e, uma vez no Governo, submete a sua política orçamental aos desejos do PCP e aos anseios do Bloco. O défice dispara, os mercados entram em pânico e vem aí a Troika outra vez? Ou não acontece nada disto?

Ninguém sabe ao certo. Tanto o PCP como o BE defendem uma série de políticas cujo impacto económico é certamente negativo. Mas é muito difícil saber com exactidão quão negativo é este impacto, e qual o horizonte ao longo do qual ele se faz sentir. Mesmo que a subida do Salário Mínimo cause algum (bastante?) desemprego, não é líquido que o impacto agregado retire mais do que apenas algumas décimas de ponto percentual ao crescimento do PIB. Aos olhos dos investidores, este impacto é possivelmente irrelevante. Ou talvez não seja. Mas o ponto é esse: não fazemos ideia.

Um Governo apoiado pela Esquerda também origina, ou pode originar, problemas mais vaporosos. Por exemplo, a interacção entre mercados mais receosos e a descoberta de buracos orçamentas é o gatilho perfeito para gerar uma espiral diabólica em que juros mais altos degradam a sustentabilidade da dívida e esta degradação, por sua vez, justifica a subida dos juros. Nem é preciso que o Governo de Esquerda seja efectivamente tão irresponsável ou imprudente quanto alguns julgam; basta que seja essa a crença prevalecente na cabeça de quem actua nos mercados para que o caldo fique irremediavelmente entornado.

Tentar prever qualquer um destes factores é fazer futurologia. Por isso vou restringir um bocadinho a questão e fazer uma pergunta mais modesta: quanto vão custar as medidas negociadas com o PCP e BE?

Para já, a imprensa apenas relatou os termos gerais do acordo com o BE. Falta ainda o PCP. Vamos assumir que o que está no prelo é algo deste género. Se os relatos forem fiéis, não há-de ser nada muito diferente:

  • Corte salarial da Função Pública: Devolução completa do corte de 2011 já em 2016. O PS queria devolver em dois anos e a coligação em quatro. Segundo o DE, PS e BE já acordaram na reposição integral no próximo ano.
  • Sobretaxa de IRS: Eliminação completa da taxa em 2016. O PS propunha a devolução em dois anos e a coligação em quatro. O acordo PS/BE aparentemente prevê uma devolução faseada, mas vamos assumir que o PCP consegue esticar a corda e devolver tudo em 2016.
  • Actualização de todas as pensões: Actualização das pensões em linha com a inflação de 2016 em diante. A medida faz parte do acordo PS/BE e não deve gerar, presumo, problemas com o PCP.
  • Redução do IVA da Restauração: Redução do IVA para a taxa intermédia (13%), algo que também estará no acordo PS/BE.

Agora podemos calcular individualmente o impacto de cada medida, introduzi-los num cenário de políticas invariantes, pôr as variáveis a interagir e calcular novos percursos alternativos para o défice e para a dívida.

Ou então podemos recorrer ao Conselho das Finanças Públicas, que já fez esse trabalho na sua última nota económica.

O procedimento do CFP é simples. O Conselho traça um no policy-change scenario para a situação orçamental que, por coincidência, envolve precisamente o fim do corte salarial e da sobretaxa de IRS e a actualização das pensões. Também inclui algumas coisas que não estão no acordo PS/BE, e deixa de fora outras – mas são tudo elementos de menor dimensão que, de resto, se integram facilmente nas contas finais1.

Os quadros seguintes comparam este cenário PS/BE/PCP com o cenário traçado pelo Governo no PEC 2015-2019 para três indicadores diferentes: saldo efectivo, saldo estrutural e dívida pública.

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O que é que salta à vista? Pelo menos duas coisas, e há conclusões para todos os gostos – embora, diria eu, pouco surpreendentes para quem segue o tema.

A primeira conclusão é que o plano do actual Governo permite chegar a 2019 com um défice muito mais baixo (na verdade, um pequeno excedente) e com uma dívida pública bastante menor. Isto é relativamente trivial2. Na verdade, é precisamente o resultado que seria de esperar, tendo em conta que neste cenário as medidas de austeridade são retiradas de maneira mais gradual (veja-se a evolução do saldo estrutural). No nosso universo, mais austeridade significa um défice mais baixo. Menos austeridade significa um défice mais alto. Quem diria?

A segunda conclusão, esta menos intuitiva, é que aparentemente é possível baixar o IVA da restauração, actualizar as pensões e devolver de imediato a sobretaxa e os cortes salariais e ainda assim colocar o défice abaixo dos 3% dentro de dois anos. Apesar de as regras europeias não serem cumpridas (a meta do défice estrutural de 0,5%, em particular, é apenas uma miragem neste cenário), não deixa de ser notável que mesmo com uma reversão radical da austeridade seja possível – pelo menos – evitar que o défice entre em descontrolo. Extraordinário?

Nem tanto. Há dois factores que estão a ser esquecidos pelo meio.

O primeiro é que apesar de a sobretaxa e os cortes salariais serem as medidas mais visíveis da austeridade, elas estão longe de ser a sua componente mais importante. Entre 2010 e 2014, o saldo estrutural primário melhorou em cerca de 9% do PIB. Estas duas medidas são uma gota neste oceano. Para além delas, temos de contar todas as subidas de impostos, todas as actualizações de pensões e salários que ficaram por fazer, todos os cortes em consumos intermédios, as reduções de investimento e por aí fora.

Por exemplo, ao longo dos últimos cinco anos os funcionários públicos perderam cerca de 8% de rendimento só por via da inflação. Neste contexto, a “não actualização salarial” é uma medida de austeridade – os sindicatos obviamente pediram aumentos nos últimos anos, e PCP e BE deram apoio a estas exigências. Repor o rendimento pela inflação perdido implicava qualquer coisa como mais 900 ou 950 milhões de euros adicionais em 2016. Claro que ninguém propõe um aumento de 8% no próximo ano; mas, em bom rigor, “acabar com a austeridade” implicaria ajustamentos desta magnitude em todas as rubricas.

E é por isso que é possível reverter quatro medidas de consolidação e ainda assim ficar abaixo da fasquia dos 3%. Pela simples razão de que essas medidas não representam assim tanto no volume total de austeridade aplicado desde 2010. O grosso do défice fica inalterado porque o grosso da austeridade também fica.

A segunda razão é ainda mais importante. A experiência sugere que só com doses cavalares de austeridade se consegue pôr as contas em ordem . E que, por isso, pequenas inversões de marcha – devolver um salário aqui, actualizar uma pensão acolá – causa um rombo enorme nas contas. Mas esta ideia é em boa medida moldada pela nossa história recente. Na nossa memória, entre 2010 e 2014 Portugal precisou de medidas de austeridade de 9% do PIB para diminuir o défice primário em cerca de 4,5% do PIB. Isto é: por cada medida de austeridade o défice caiu cerca de 50 cêntimos – o resto esfumou-se no ar. Foi como correr contra o vento: muito esforço, poucos resultados.

Mas se olharmos um pouco – não muito, mas apenas um pouco – mais longe, as coisas são diferentes. Entre 2005 e 2007, por exemplo, o saldo primário melhorou em 3,6% do PIB, e aposto que a maior parte das pessoas não conseguirá sequer identificar as medidas de austeridade da altura. Não é por acaso: é porque de facto não houve grande coisa a esse nível. O défice caiu porque a economia estava a crescer, o crescimento arrastou as receitas fiscais e tudo o que o Estado teve de fazer foi garantir que a despesa crescia menos do que a receita.

Uma maneira simples de perceber o que está em causa é comparar o volume de medidas de austeridade com a redução do défice primário. A tabela de baixo (retirada daqui) tem esses valores, calculando um “rácio de eficiência” que nos diz quantos euros de austeridade são precisos para diminuir um euro do défice. Os números da “austeridade” são ligeiramente diferentes dos que refiro neste post porque usei uma métrica diferente (“abordagem narrativa” por oposição ao saldo estrutural).

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A maioria das pessoas imagina que estamos na situação da primeira linha, em que é preciso cortar até ao osso para tirar uns pontinhos ao défice. Mas este rácio de eficiência decorre do facto de a austeridade ter sido implementada com a economia a contrair (ver quarta coluna). A partir do momento em que a economia começou a recuperar (2014), os rácios de eficiência melhoraram (segunda linha, terceira coluna).

Numa situação normal – que é a que se espera para os próximos anos -, até é o contrário que acontece: o próprio crescimento económico produz uma melhoria do saldo orçamental, à semelhança do que aconteceu em 2004-2007. O corolário do raciocínio é simples: com a economia a crescer, é possível retirar gradualmente (friso o gradualmente) algumas das medidas de consolidação, que a economia se encarregará de tapar os buracos que essa decisão causar.

Muita gente desconfia deste mecanismo, mas não é difícil fazer estas contas. Se se assumir que a economia portuguesa vai crescer cerca de 3% (1,5% em termos reais, mais 1,5% por via dos preços) em 2016, só este efeito gera um acréscimo de receitas – sem alteração de taxas – da ordem dos 2.000 milhões de euros. Este valor pode posteriormente ser usado para consolidação adicional, reversão da austeridade ou uma mistura dos dois. E estou aqui a deixar de lado outros factores que, se levados em conta, só reforçariam este valor (gastos com subsídios de desemprego, receitas não fiscais, etc.).

Portanto, a surpresa não tem muita razão de ser. É possível começar a retirar algumas medidas porque o crescimento económico cria margem para isso. E esta não é uma racionalização a posteriori de factos consumados – na verdade, é exactamente o que escrevi em 2013 (aqui e aqui, entre outras entradas). quanto estava (quase) toda a gente a falar “austeridade permanente”.

1 O CFP assume o fim da Contribuição Extraordinária de Solidariedade sobre as pensões altas, das contribuições especiais sobre a banca e energia e a alteração do regime de pagamento de trabalho extraordinário da Função Pública. Não leva em conta a descida do IVA da Restauração. Eu levei em conta os factores um, dois e quatro recorrendo a informação dos vários Orçamentos do Estado. Só o ponto três ficou de fora, por falta de informação.
2 Ou talvez não seja tão trivial assim. Notem que o famoso cenário macroeconómico do PS assentava num modelo que apresentava a curiosa propriedade de mais medidas de austeridade conduzirem a… um défice mais alto. Felizmente o PS não usou o modelo para avaliar o impacto orçamental das propostas do BE e do PCP.

7 comments on “Consequências orçamentais de um Governo de Esquerda

  1. António JR Barreto* diz:

    Qual o impacto consequente nas contas externas?

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  2. Carlos diz:

    Sim, o exercicio parece-me correcto, as contas batem certo. Mas…, mesmo admitindo que PC e BE aceitam, para inicio de conversa (e de governo), a retirada das gotas de austeridade, faz sentido pensar que vão ficar 4 anos satisfeitos com isso?

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    • Daí o terceiro parágrafo: «Tentar prever qualquer um destes factores é fazer futurologia. Por isso vou restringir um bocadinho a questão e fazer uma pergunta mais modesta: quanto vão custar as medidas negociadas com o PCP e BE?». Sublinho o “negociadas”.

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    • Não é necessário que fiquem “satisfeitos” – podem simplesmente seguir a linha “não estamos satisfeitos, mas apoiamos o governo contra os ataques da reação” (exemplo de como isto se pode passar numa votação orçamental – 1º governo apresenta proposta de orçamento – PS, BE, PCP e PEV votam a favor na generalidade; 2º na especialidade BE e PCP apresentam montes de propostas de alteração, rejeitadas com os votos do PS, PSD e CDS; 3º na votação final do documento, é aprovado com os votos do PS, do BE , do PCP e do PEV)

      [Um aparte – ao contrário do que tinha profetizado há uns dias, desconfio agora que o complemento salarial é capaz de não passar, não apenas pela desconfiança do BE e do PCP, mas também – ou sobretudo – pelo efeito “bem se já gastamos mais do que o previsto aqui, onde vamos gastar menos para compensar?”]

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  3. carlos diz:

    Pois, num cenário estático assim aconteceria provavelmente.
    Mas se as estas suposições existirem novas receitas com supressão dos benefícios fiscais, com impostos sobre o capital financeiro (mais impostos sobre dividendos, etc) então a coisa já muda de figura e as contas já não serão estas, não é verdade?

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