O crescimento do emprego e o emprego público

Uma notícia do Público tem gerado muito interesse por parte de quem esteve atento ao debate em torno da descida do desemprego. A manchete, publicada no sábado, dizia: «Estado foi o maior criador de emprego no final de 2013». Segundo o Público, ao todo foram criados 29.800 empregos, sendo que 24.700 foram da responsabilidade do sector ‘Administração Pública, Defesa e Segurança Social’.

Ou seja, mais de 80% da criação líquida de emprego vem do Estado. Será que a quebra abrupta do desemprego é uma ficção criada por um frenesim de contratações no sector público? Não – e, aliás, nem o próprio jornal, na versão na versão digital da notícia, sugere essa conclusão. Explico porquê.

A primeira razão é simples, mas subtil. Dizer que o Estado criou 80% dos empregos líquidos pode dar a ideia de que o Estado é responsável por quatro em cada cinco empregos criados. Na verdade, isto é apenas uma ilusão óptica. A imagem de baixo, que mostra a alteração no número de empregos por actividade, permite perceber porquê.

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Houve criação de 29.700 empregos, e o Estado criou 24.700. Contas feitas, representa 82% do total. E o Comércio? O Comércio criou 23.800 empregos – cerca de 80%. Com 22.700 empregos, a Restauração vale 76%. E a fracção relativa a actividades científicas ascende a 72%.

Por esta hora já há quatro actividades a explicar 310% da variação total. Isto é aberrante? Não. É apenas o resultado necessário de um somatório que inclui parcelas negativas. Um exemplo simples: também é possível dizer que o Comércio criou 80% dos empregos líquidos no quarto trimestre – mas daqui seria errado inferir (como se faz no Jugular) que «o que explica o milagre do emprego é o emprego do comércio».

Esta ilusão de perspectiva é reforçada – e esta é a segunda razão – por um problema já referido na FAQ do desemprego, e que tem que ver com a comparação de períodos homólogos em vez da comparação com o ‘pico do desemprego’. Quando se compara o 4º trimestre de 2013 com o 1º trimestre de 2013, quando a taxa de desemprego atingiu o seu máximo, verifica-se uma criação líquida de cerca de 120.000 empregos, valor que baixa para 29.700 na comparação homóloga. Ao diminuir o valor do emprego líquido total, a questão do período comparativo empola imenso o contributo relativo de qualquer variação nalgum dos sectores de actividade.

Confuso? Tentemos outra abordagem. Uma forma mais fácil de perceber o impacto das contratações do sector público é ‘fixar’ o emprego público a um determinado nível e perceber como teria evoluído a taxa de desemprego caso ele se mantivesse nesse ponto. O gráfico de baixo mostra, assim, três taxas de desemprego: a taxa de desemprego oficial e a taxa de desemprego que se verificaria caso o emprego público se tivesse mantido constante. Para todos os efeitos, assumo que os empregos adicionais a partir do 4º trimestre de 2013 são considerados desempregados, aumentando assim a taxa. Como a classificação de empregos na administração pública não inclui o sector da educação ou da saúde, calculei também uma taxa que faz a mesma imputação a estes dois sectores. O resultado é o seguinte.

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E aplicando o mesmo método ao nível de emprego:

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Eliminar a variação do emprego público tem algum impacto quer no perfil da taxa de desemprego, quer no perfil do nível de emprego. Mas esse impacto é bastante modesto, e está longe de alterar a tendência que aparece nos dados oficiais. A título de exemplo: a taxa oficial de desemprego caiu 2,4 pontos percentuais ao longo dos últimos quatro trimestres, valor que passa para 2 p.p. na taxa de desemprego ‘de Administração Pública constante’, e para 1,5 p.p. na versão ‘alargada’ para neutralizar também o efeito da Educação e Saúde.

Note-se ainda que estas contas assentam num cenário extremo. Assumem, em primeiro lugar, que todo o sector da Educação e Saúde é público, o que é obviamente falso. E assumem, em segundo lugar, que todos os empregados adicionais do sector público estariam desempregados caso não tivessem encontrado colocação no Estado. As taxas de desemprego assim calculadas representam limites superiores ao impacto que o sector público poderá ter na evolução do mercado de trabalho.

Um pequeno comentário final, inevitável tendo em conta que este é o sexto post dedicado a teses de conspiração em torno da subida do emprego (por memória: sazonalidade, emigração, empregos de horários curtos, estágios profissionaisempregos mal pagos). Se o crescimento do emprego fosse uma variável isolada, em contra-ciclo com o resto das indicações macroeconómicas, faria algum sentido ir ao detalhe dos números do INE e tentar identificar peças soltas para explicar o puzzle. As estatísticas são imperfeitas e muitas vezes justifica-se desconfiar dos números oficiais quando estes não passam num cross-checking de plausibilidade com outras fontes de informação (veja-se aqui o misterioso caso da produtividade italiana, por exemplo; veja-se aqui uma crítica deste bogue ao apuramento dos saldos estruturais pela Comissão Europeia).

O que acontece agora é precisamente o contrário. A economia está a crescer e todos os sinais directos do mercado laboral apontam para uma melhoria consistente. As ofertas de emprego disponíveis nos Centros de Emprego estão a crescer há quase um ano, os salários médios registados na Segurança Social entraram novamente em terreno positivo e até o indicador do Expresso/ISEG para ofertas de trabalho anunciadas em páginas de jornal está a contar uma estória semelhante.

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Com tantas fontes independentes a apontarem no mesmo sentido, estranho seria que a subida do emprego representasse alguma aberração estatística do Inquérito ao Emprego. A meta-lição a retirar deste caso é que a generalidade das pessoas deveria ser bastante mais céptica em relação às teorias da conspiração em torno da descida do desemprego – sobretudo sempre que estas exigirem desconfiar dos números oficiais sem trazerem qualquer poder explicativo adicional (e entrando, muitas vezes, em choque directo com informação independente da do INE).

P.S.- Em todo o caso, vale a pena deixar a nota: os dados do INE mostram que o emprego no sector ‘Administração Pública, Defesa e Segurança Social’ tem estado a crescer ao longo de cinco trimestres. Estes valores, apesar de não serem suficientes para alterar de forma relevante o perfil da taxa de desemprego (ver gráficos acima) chocam directamente com os dados do emprego público divulgados pela Direcção -Geral da Administração e Emprego Público. O facto de as categorias classificativas não serem as mesmas que as do INE não explica tudo, e este é um tema que justifica alguma investigação.

6 comments on “O crescimento do emprego e o emprego público

  1. Olá Pedro,
    Duas coisas:
    1) numa economia que perdeu pelo menos 250 mil pessoas em 3 anos para a emigração e cerca de 270 mil são “desencorajados” (“Inativos disponíveis mas que não procuram emprego”) a evolução da taxa de desemprego, com toda a sinceridade, não vale grande coisa. Basta somares os 270 mil “desencorajados” aos desempregados oficiais e tens o “desemprego” acima dos 20%. É um exercício frágil, dirás – mas é tão frágil como levar muito a sério a taxa de desemprego quando meio milhão de pessoas deixou de pressionar o mercado de trabalho.
    2) É por isso que o que escrevi no ‘Jugular’ apenas se prende apenas e só com o emprego, que é o melhor indicador neste contexto para avaliar a evolução do mercado de trabalho. Parece-me que interpetas o que escrevi de forma bastante torcida (escrevi outro post para perceber o que está em causa: http://jugular.blogs.sapo.pt/o-que-explica-o-milagre-do-emprego-3702334). Nada do que vejo aqui escrito contraria a ideia de que só há crescimento do emprego global por causa (totalmente ou quase, depende dos critérios que usamos para definir emprego público) do crescimento do emprego público.

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  2. Hugo,

    Sim, a taxa de desemprego pode ser enganadora. Precisamente por isso é que repliquei os cálculos para o volume de emprego(3º gráfico). E o perfil do volume de emprego não é significativamente afectado pela exclusão das variações de emprego do sector público.

    É verdade que, em termos homólogos, a criação de emprego ‘sem Estado’ é residual*. Mas isso resulta apenas o facto de, em termos homólogos, a criação de emprego total já não ser muito grande. Daí em diante, criam-se 120.000 empregos, sendo que a parte explicada pelo sector público varia entre 0 e 40.000 (conforme a especificação de ‘sector público).

    *É residual assumindo que apenas a ‘Administração Pública, Segurança Social e Defesa’ são ‘Estado’. Se o conceito for alargado para abranger também a Sáude e Educação, então o impacto do ‘Estado’ torna-se virtualmente nulo – mesmo em termos homólogos.

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    • O que entendes por ‘Estado’ aqui? Se juntarmos as categorias O (Administração Pública, Segurança Social e Defesa), P (Educação) e Q (Saude e apoio social), o emprego criado em termos homólogos foi de 29 mil – quase os 30 mil que foram criados no total (eu não chamaria ‘Estado’, mas ‘emprego público’ ou ‘para-público’, dado que muito do emprego é financiado pelo Estado e não seria conseguido sem o seu apoio).
      Eu concedo que o ciclo em 2013 é outro, e que o emprego público não tem o mesmo peso no emprego criado a partir do 2T2013. Mas estou ainda no plano da comparação homóloga; veremos o que os comparações homólogas nos dirão em 2014 (não disputo, obviamente, o que dizes relativamente à tendência dos últimos meses).
      Uma nota final: confesso ser um pouco estranho que, nas tuas criteriosas análises da evolução do desemprego não refiras nunca (não encontrei, mas pode ser lapso meu – mas a verdade é que quase ninguém o refere) o que aconteceu aos “desencorajados” desde 2011; são 274 mil no 4T2013 que, se estivessem na população ativa, elevariam o desemprego – assumindo que estariam todos desempregados, o que me parece plausível, dado serem aqueles que menos ‘attachement’ têm ao mercado de trabalho – para os 20%.

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  3. Eu uso dois conceitos de Estado: a categoria O e as categoria O+P+Q.

    A criação líquida de emprego ‘privado’ ao longo dos últimos três trimestres é de 80.000 ou 110.000 conforme o conceito de Estado que usarmos. Face ao período homólogo, a criação líquida é praticamente nula, seja qual for o conceito (o meu «mesmo em termos homólogos» é engano, provavelmente por ter lido a coluna errada).

    Mas o ponto de comparação não é uma questão de somenos. A melhor analogia é a de uma pessoa que ganha 2kgs por mês durante 2012 e que a partir de 2013 começa a perder peso ao mesmo ritmo. Dizer que em Abril o “peso está a crescer 5% face ao período homólogo” esconde mais do que esclarece. A utilização do ‘período homólogo’ como termo de comparação enviesa toda a análise posterior.

    A questão dos desencorajados não aparece explicitamente nos posts, mas está implícita, seja porque olho não apenas para a evolução do desemprego mas também para a evolução do emprego, seja porque complemento a análise da taxa de desemprego com análise da população activa (de modo a que qualquer descida da taxa de desemprego ‘artificial’, induzida por emigração ou aumento dos desencorajados, seja rapidamente ‘capturada’ pela variação deste indicador. Já agora: https://desviocolossal.files.wordpress.com/2014/02/3.png )

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    • A forma como fazemos as comparações é seguramente relevante. É também relevante perceber que o emprego que se entretanto se criou (falo do ‘privado’) está a compensar uma vaga de destruição muito superior à esperada. Quando se atinge um ponto muito baixo, não é assim tão difícil apresentar uma subida a partir desse ponto muito baixo como algo ‘impressionante’, etc.

      O gráfico que linkaste é muito revelador. Dá uma imagem mais fiel, mesmo que indireta e com dimensão contrafactuais, do que aconteceu nos últimos anos ao mercado de trabalho. E mesmo que tenha havido uma inversão nos últimos trimestres (os ‘desencorajados’ desceram de 306 mil para 275 mil do 2T para o 3T2013, o que é um indicador importante), o que daqui resulta é uma avaliação bem diferente do que aconteceu nos últimos anos do que aquela que nos é dada por uma taxa de desemprego de 15,3%.

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  4. Eu diria que tudo isso é relevante para se perceber o estado do mercado laboral.

    Mas é absolutamente irrelevante para aquilo que estava a ser discutido: se a descida do desemprego é virtual ou não.

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