O crédito cresce como nunca. Pudera…

Imagine que lê num jornal de referência que os novos empréstimos para habitação e consumo cresceram “52% e 25% entre Janeiro e Maio, atingindo os valores mais altos desde 2011”. O que faz o leitor? Fica preocupado com a nova orgia de crédito que começa a desenhar-se no horizonte? Ou revira os olhos, respira fundo e vira a página?

Muita gente seguiu a primeira opção depois de ler esta notícia do Expresso: Novo crédito dispara para as famílias e encolhe para as empresas. Mas, neste caso, a segunda opção teria sido a escolha sensata.

Será por que os números estão errados? Não. Segundo os dados do Banco de Portugal (Boletim Estatístico, Capítulo B.7.1.2.), entre Janeiro e Maio o novo crédito às famílias cresceu mesmo 52% no segmento habitação e quase 25% no segmento consumo. E também é verdade que estas taxas de crescimento são as mais altas de sempre (embora o “de sempre”, aqui, não signifique grande coisa, uma vez que a série estatística começa em 2003).

O problema aqui é a eterna questão do efeito base. A taxa de variação do crédito compara o crédito actualmente concedido com o crédito concedido no período anterior (o período base). Mas se o crédito anterior tiver sido extraordinariamente reduzido, então qualquer aumento, por pequeno que seja, implicará necessariamente uma grande taxa de variação – mesmo que essa taxa de variação apenas represente, na prática, o regresso do crédito a um nível normal.

Para perceber melhor a questão podemos pegar nos mesmos dados – isto é, os novos créditos concedidos entre Janeiro e Maio de cada ano – e colocá-los num gráfico deste género. Esqueçam as taxas de variação por um momento. Vamos olhar para os valores brutos – o nível do crédito.

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Sim, o que está em cima são exactamente os dados usados na peça do Expresso. Tive o cuidado de colocar os números no crédito à habitação, para que os leitores possam fazer as contas por si e confirmar que a taxa de crescimento de 2014 para 2015 é precisamente de 52%. A questão é que o crédito já tinha caído tanto nos anos anteriores que qualquer pequena subida traduzir-se-ia sempre numa grande expansão percentual. Mas isto não altera a realidade das coisas: seja qual for a métrica, a concessão de crédito às famílias continua em níveis extraordinariamente baixos1.

Já agora, convém fazer uma pequena ressalva – que não é tão de pormenor quanto isso. Os “novos créditos” representam isso mesmo: novos créditos, ou seja, um fluxo de novos empréstimos. Estes créditos somam aos créditos já concedidos. Entretanto, alguns destes créditos vão sendo amortizados, e é dessa diferença (novos créditos mais antigos créditos menos créditos amortizados) que resulta o montante total de crédito que as famílias devem em cada momento. Este stock de crédito é, para efeitos de sustentabilidade financeira, aquilo que é verdadeiramente relevante. Felizmente, o Banco de Portugal também tem dados para este indicador.

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Uma nota final para quem segue estes temas. A forma como a concessão de crédito tende a ser reportada nos media leva muita gente a ligar intuitivamente a concessão de crédito à ideia de gastar mais do que aquilo que se recebe. Esta ideia é extremamente enganadora. Em primeiro lugar, porque muitas das pessoas que pedem crédito mantêm activos financeiros em sua posse. Ou seja, o valor do crédito que pediram não é, em bom rigor, igual à diferença entre aquilo que detêm e aquilo que gastam.

Em segundo lugar, porque os valores dos créditos são apenas uma fracção dos passivos brutos das famílias. Imagine-se que uma família com excedentes deposita 1000€ num banco, e que estes 1000€ são depois cedidos como crédito a outra família. Ao nível individual, o que temos é um crescimento do crédito às famílias de 1000€ – o crédito aumentou. Mas, ao nível agregado, a posição financeira do sector institucional “famílias” não se alterou. Uma família contraiu uma dívida, outra constituiu um activo. Mas no final a posição líquida não se alerta, porque o que uma tem a dever a outra tem a haver.

Por esta razão, julgo que é mais relevante olhar para as contas familiares numa perspectiva consolidada. Por exemplo, através dos saldos financeiros das famílias, que representam a diferença entre receitas e despesas registadas a cada ano (via Contas Nacionais)2. Ou através dos balanços de riqueza financeira líquida, que comparam simultaneamente o volume de activos com o volume de passivos (disponibilizados pelo Banco de Portugal).

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1 Este problema é muito frequente. Por exemplo, o super divulgado aumento do número de milionários em Portugal resultava precisamente de efeitos deste género. O crescimento robusto de países que passaram por profundas recessões também é um bom exemplo deste efeito.
2 Por que razão é que o comportamento do saldo financeiro parece hoje tão pouco diferente do que vigorou entre 2002 e 2007? Possivelmente porque o ajustamento de 2009-2014 já foi suficiente para recompor a saúde das folhas de balanço familiares. Ou, alternativamente, porque os gastos das famílias nunca foram o principal problema da economia portuguesa.

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