Viver acima das possibilidades – algumas pontas soltas

Quem seguiu a série de posts acerca do défice externo (I, II) sabe que desconfio da explicação mais habitual para este fenómeno – um “boom de consumo das famílias financiado pelo crédito da Zona Euro”. Esta tese choca com um facto elementar das contas externas da primeira década do euro: de 2000 a 2008 a diferença entre importações e exportações praticamente não se alterou.

Ao contrário do que seria de esperar, a maior parte do desequilíbrio resulta de elementos que pouco ou nada têm que ver com competitividade, preços, ou taxas de câmbio reais. Foi sobretudo a queda das transferências unilaterais líquidas (como fundos estruturais da Europa ou remessas de emigrantes) e dos rendimentos de títulos financeiros líquidos (juros de obrigações, dividendos, etc.) que cavou o fosso de financiamento.

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Isto não invalida a ideia de que Portugal viveu acima das suas posses durante quase uma década, apenas obriga a qualificar esta conclusão. A origem do problema não está numa orgia irracional de despesismo das famílias, mas na incapacidade do país – como um todo – de ajustar o seu padrão de despesa a uma situação de contracção abrupta do rendimento disponível. E é quando se tenta perceber a razão dessa falta de capacidade de resposta que as coisas começam a ficar interessantes (I, II, III).

Mas quando se desagrega ainda mais a balança externa surgem alguns factos difíceis de encaixar no quadro geral. Comecemos por separar o saldo externo da economia em termos dos vários sectores institucionais que a compõem (o ‘resto’ é o sector financeiro e as IPSS, que agreguei por conveniência). O primeiro problema é este:

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Tanto quanto sei, as transferências correntes e de capital afectam sobretudo os sectores institucionais das famílias e das Administrações Públicas. Mas estes sectores, ao contrário do que seria de esperar, até mantiveram as suas necessidades de financiamento bastante estáveis ao longo do período 1995-2008. A origem do défice está toda nas empresas não financeiras.

É possível desagregar ainda mais os dados e perceber quais as razões para esta variação do saldo financeiro. Depois de algumas contas, é fácil concluir que há dois elementos que conduzem o saldo global das empresas portuguesas entre 1995 e 2008: a despesa com investimentos e a distribuição de dividendos. A imagem de baixo explica esta ideia com dois quadros: o primeiro mostra a variação do investimento e dos dividendos; o segundo mostra como evoluiu o défice externo e como teria evoluído se estas variáveis tivessem permanecido ao nível de 1995.

Sem Título

Aparentemente, o défice externo vem todo, ou quase todo, destas duas variáveis. E à primeira vista não é fácil conciliar isto com a primeira imagem do post. A análise do saldo externo por tipo de fluxo financeiro sugere que o problema foi i) a falta de reacção da despesa interna à redução do rendimento disponível; mas a análise por sector institucional aponta para ii) um comportamento disfuncional da política de investimento & remuneração das empresas.

Uma análise estática deste género pode ser enganadora, porque os sectores institucionais são porosos e é óbvio que uma parte da despesa de um sector é receita de outro. O quadro contabilístico das Contas Nacionais não permite lançar luz sobre os mecanismos de causalidade subjacentes, e sem dúvida que, com alguma imaginação, é possível contar uma história coerente que ligue as explicações i) e ii).

Mas mesmo que essa explicação exista, o último quadro é interessante em curioso em si mesmo. Se o crescimento do investimento entre 1995 e 2000 é mais ou menos compreensível tendo em conta o rápido crescimento da altura, a distribuição de rendimentos a partir de 2003 já é mais difícil de justificar: a remuneração dos accionistas dispara num período em que o crescimento económico já está pelas ruas da amargura. E com a dívida financeira a atingir máximos históricos, as empresas continuam a delapidar os seus lucros em vez de reterem capital para amortizar dívida.

Uma pergunta para quem percebe destes temas: como é que se explica este comportamento?

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7 comments on “Viver acima das possibilidades – algumas pontas soltas

  1. Possível explicação:

    – a parte do aumento do investimento não oferece qualquer mistério: de acordo com os modelos macroeconómicos que eu aprendi na primeira metade dos anos 90, a taxa de juro determina é o investimento, não o consumo, logo a tal redução dos juros provocada pelo euro terá provocado exatamente uma explosão de investimento

    – a respeito de não ter havido um aumento relevante do deficit comercial, talvez tenhamos aqui dois factores que se anularam mutuamente: a redução do rendimento disponível (via redução das transferencias) fez diminuir as importações e a baixa de juros / aumento do investimento fez aumentá-las, ficando tudo mais ou menos na mesma.

    [basicamente, a minha teoria é que a redução do rendimento disponivel via redução das transferencias é simplesmente ruido, e que fora isso ocorreu exatamente o previsto na teoria convencional – baixa de juros originou aumento da procura interna e do deficit comercial; o problema aqui é que não se verificou o ceteris paribus

    – quanto ao aumento da distribuição de dividendos, talvez os juros mais baixos tenham, no momento da escolha “aumentar os capitais próprios ou pedir emprestado”, levado mais empresas a optar pela opção “pedir emprestado” e assim distribuirem mais dividendos em vez de reforçarem os capitais próprios (mas estou menos seguro face a esta hipotese do que em relação à outras duas)

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  2. Pedro S diz:

    A minha hipotese seria que a rentabilidade passou para o sector nao transaccionavel (PPPs, rendas Galp, EDP, PT, Banca, Saude, Construcao), e que estas tem maior participacao accionista estrangeira (vs. PMEs atingidas pelo alargamento da UE e abertura à China)… Isto e recurso a maior alavancagem por parte destas mesmas empresas.

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    • “A minha hipotese seria que a rentabilidade passou para o sector nao transaccionavel (PPPs, rendas Galp, EDP, PT, Banca, Saude, Construcao), e que estas tem maior participacao accionista estrangeira (vs. PMEs atingidas pelo alargamento da UE e abertura à China)”

      O problema dessa análise é que o setor não transacionável é uma mistura de extremos – mega-empresas como a EDP ou a PT (atenção que eu poria a GALP nos transacionáveis) e mais as típicas pequenas empresas portuguesas (cafés, restaurantes, oficinas e cabeleireiros – as tais empresas que dão direito a receber 15% do IVA na fatura), enquanto suspeito que o transacionável será dominado por grandes e médias empresas (com algumas pequenas empresas agricolas à mistura, mas que duvido sejam economicamente significativas)

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  3. Joao diz:

    Dados muito curiosos, sem duvida. Qual e a fonte do quadro da despesa das empresas?

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  4. João,

    Os dados vêm todos do INE, que tem quadros bastante detalhados (tentei fazer o mesmo para os outros países, mas o Eurostat não disponibiliza números com um nível de desagregação tão grande).

    Miguel,

    No modelo básico, o Investimento depende da taxa de juro mas também do Produto, e o Produto estava a abrandar. Mas essa nem é a principal ponta solta, porque quando esse abrandamento se tornou aparente o Investimento de facto recuou (2002/2003).

    A explicação para o ‘não aumento’ do défice comercial é interessante e não tinha pensado nela. Obrigado pela nota. Já a dos dividendos não me convence: foi precisamente quando as taxas de juro começaram a subir (2007/2008) que a distribuição de dividendos atingiu o máximo.

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  5. gbtaveira diz:

    Era interessante analisar uma série mais longa. Em 1999-2000 já se fazia sentir em grande medida o impacto do SME / Euro – a nível das taxas de juro e câmbio. De facto, só para mencionar um aspecto, o déficit da balança comercial quase triplicou entre 1990 e 2000. Ver gráfico da Pordata: http://www.pordata.pt/Portugal/Exporta%C3%A7%C3%B5es++importa%C3%A7%C3%B5es+e+saldo+da+balan%C3%A7a+de+bens+total+e+por+principais+grupos+de+pa%C3%ADses+parceiros+comerciais-2341

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    • Os anos de 1999/20000 aparecem nos gráficos. Relativamente aos dados da Pordata, convém notar que estão expressos em valor nominal, e não em percentagem do PIB. Normalizando, o comportamento fica mais, enfim, Normal.

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