Ainda a descida da TSU (agora com mais realismo)

A descida da TSU «versão PS» tem-me dado que pensar. Num dos posts anteriores tentei explicar a dinâmica da medida assumindo que as famílias são minimamente racionais e antecipam correctamente as consequências da descida das contribuições. Mas e se flexibilizarmos um pouco este pressuposto?

Imagine-se – novamente, e apenas para não começar o raciocínio a meio – que as famílias são de facto forward looking e percebem que a redução actual da TSU é contrabalançada por uma redução futura da pensão. Como não há alteração do rendimento permanente, a medida é neutra para a maior parte das famílias. A única excepção são as famílias que já queriam gastar mais do que gastam, e que, por restrições de liquidez, não o podiam fazer. Daqui extraem-se duas conclusões:

  • O impacto da medida na procura depende da percentagem de famílias que tiverem restrições de liquidez. Quanto maior a percentagem, maior a procura adicional que este “empréstimo” permite satisfazer, e portanto maior o impulso fornecido à economia;
  • A medida não funciona do lado da oferta. Porquê? Porque o custo salarial não é afectado. As famílias percebem que o “novo salário”, mais alto, é  rigorosamente igual ao salário anterior – a única diferença é o momento em que ele é pago. Por essa razão, não há qualquer alteração de comportamento dos trabalhadores na forma como oferecem a sua mão-de-obra às empresas. Em economês, a “curva de oferta de trabalho” não se mexe.

Mas vamos agora flexibilizar um pouco esta restrição ricardiana. E assumir que algumas famílias são relativamente míopes, pensando – erradamente – que o maior salário real actual não vai ser compensado, no futuro, por uma pensão mais baixa.

A primeira consequência desta inovação é que o efeito da descida da TSU na procura aumenta. Se no primeiro caso a procura adicional resultava apenas das despesas “trancadas” pelas restrições de liquidez de algumas famílias, com famílias míopes passa a haver uma fracção da redução da TSU, transversal a todas as famílias, que é consumida em vez de poupada. Este efeito de “procura adicional” não é propriamente surpreendente.

A segunda consequência, nem tanto. É que famílias míopes tenderão também a percepcionar o “novo” salário real como um salário efectivamente maior. Isto é: apesar de o salário bruto não mudar, as famílias passam a associá-lo a um salário real maior, porque não percebem que o que ganham hoje é exactamente igual ao que perdem amanhã. Levadas por esta ilusão, elas estão agora mais disponíveis para trabalhar ao salário bruto corrente. Ou seja, a curva de oferta de trabalho desloca-se.

Vamos tentar perceber melhor os passos do processo. A imagem de baixo mostra o salário de equilíbrio, ditado pelo salário bruto oferecido pelas empresas e o nível de emprego oferecido pelas famílias. Isto é antes da mexida na TSU.

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O primeiro impacto da descida da TSU, num contexto de famílias não ricardianas, é uma alteração da curva de oferta de trabalho. As famílias passam a acreditar que um mesmo salário bruto corresponde agora a um rendimento permanente mais alto, deslocando a curva para a direita, aumentando o emprego e… reduzindo o salário de equilíbrio.

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Este lógica pode parecer estranha. Então baixa-se a TSU e o salário cai?

Para perceber porquê, convém ir aos bastidores e ver o que se está a passar. Primeiro, os trabalhadores, convencidos de que o seu rendimento permanente aumentou (afinal de contas estão a receber mais, já que a TSU desceu) aumentam a oferta de trabalho para o nível corrente de salários brutos. Segundo, este aumento da oferta de trabalho pressiona para baixo os salários brutos. Terceiro, o efeito de diminuição dos salários brutos compensa parcialmente o efeito que a redução da TSU tem no salário real. No final, há mais emprego, com um salário bruto médio mais baixo e um salário real mais alto. Ou seja, o que cai é o salário bruto de equilíbrio – o salário real, efectivamente recebido pelo trabalhador, de facto aumentou, como o senso comum sugeria.

E pronto, eis que a TSU «versão PS» se transmuta, como que por magia não-ricardiana, num poderoso mecanismo de aumento da oferta. E aqui as semelhanças com a TSU “tipo desvalorização fiscal” voltam a aparecer, com os custos salariais pagos pelas empresas a descer e a competitividade externa a melhorar.

Agora vamos unir os dois efeitos – oferta e procura – no mesmo diagrama. O primeiro efeito já lá está; agora é só somar o efeito que a procura acrescida tem no mercado de trabalho. À partida, mais procura altera a curva de procura de trabalho das empresa. O que resulta no efeito seguinte.

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Qual é a novidade? A novidade é que o emprego aumentou ainda mais, e desta vez o salário bruto cresceu, em vez de diminuir.

A conjugação dos dois efeitos é, portanto, um duplo aumento do emprego e, simultaneamente, o choque de duas forças adversas que pressionam, em sentido contrário, o nível salarial. No exemplo que desenhei as forças anulam-se uma à outra, deixando o salário bruto sensivelmente inalterado. Mas, na prática, tanto pode acontecer uma descida do salário bruto como uma subida do salário bruto. Tudo depende da inclinação das duas curvas.

Finalmente, por que não usar o IRS para obter o mesmo efeito? Esta foi a crítica de Vítor Bento (ver Expresso), que rejeitou o uso da TSU como medida contracíclica. Penso que a resposta é simples: se a TSU for reduzida de forma permanente, então é possível argumentar que Portugal está a passar de um sistema de Segurança Social de repartição para um sistema de capitalização. Sendo esta uma reforma estrutural, o seu impacto financeiro poderia ser considerado um custo de transição, não considerável para efeitos de défice e dívida pública. Esta é uma benesse impossível de obter caso o estímulo seja feito via IRS.

6 comments on “Ainda a descida da TSU (agora com mais realismo)

  1. Paulo Pinto diz:

    O único problema é o pressuposto das famílias “minimamente racionais”.

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  2. João Filipe diz:

    A racionalidade será menos prudente se atacarmos pelo IRS. Desde logo, não há o perigo de hipotecar pensões futuras, fruto da baixa da TSU, o que pode levar a que se invista na economia o valor da baixa do IRS.

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  3. mesmo mantendo o actual nível de TSU, e atendendo às várias alterações que que o sistema de Segurança Social tem sofrido, com as consequentes alterações de fórmulas de cálculo e diminuição da pensão/reforma futura, é de prever que as famílias racionais também prefiram aplicar elas próprias o acréscimo de rendimento líquido resultante dessa diminuição da TSU do que esperar para reavê-lo (em montante incerto) no futuro

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  4. Um problema que vejo neste raciocínio é que

    “As famílias passam a acreditar que um mesmo salário bruto corresponde agora a um rendimento permanente mais alto, deslocando a curva para a direita, aumentando o emprego e… reduzindo o salário de equilíbrio.”

    também pode ser perfeitamente

    “As famílias passam a acreditar que um mesmo salário bruto corresponde agora a um rendimento permanente mais alto e que são mais ricas do que aquilo que realmente são, deslocando a curva para a esquerda, diminuindo o emprego e… aumentando o salário de equilíbrio.”

    (é a velha questão do efeito-substituição e do efeito-rendimento a empurrarem para lados diferentes)

    Aliás, é por essa ambiguidade de efeitos que eu, nos meus posts, hesito em dizer que o complemento salarial é um subsidio aos empregadores (digo só que “pode ser”).

    Na verdade suspeito que os dois efeitos largamente se anulam e que a curva da oferta de trabalho é quase vertical (talvez com uma ligeira inclinação noroeste-sueste a longo prazo), e que portanto não irá ter grandes variações com variações da TSU.

    Já agora, uma questão um bocado picuinhas e puramente semântica (que talvez requeresse uma comissão mista de economistas e linguistas para resolver); noto que o Pedro usa “oferta de trabalho” (no texto) e “oferta de emprego” (nos gráficos) como equivalentes; mas será que o equivalente a “oferta de trabalho” não será “procura de emprego”? [eu por mim evitaria usar a expressão “emprego” nesses gráficos: enquanto a expressão “trabalho” tem o significado duplo de “serviço que o trabalhador vende” – e é esse serviço que tem preços, oferta e procura – e “relação contratual entre trabalhador e empregador”, creio que “emprego” só tem o significado de “relação contratual entre trabalhador e empregador”; já agora, ao escrever isto, noto que quando “trabalho” e “emprego” são sufixados por “-ador”, o significado pretendido é bastante diferente]

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    • Concordo com o primeiro ponto. Mas acho que há duas boas razões para considerar que o efeito substituição é mais forte do que o efeito rendimento:

      a) Na maior parte dos modelos económicos usados em simulações este é o efeito que de facto prevalece, e por isso é natural que esteja também subjacente ao exercício feito pelos economistas do PS. Nesse caso, este post serve menos para fazer uma previsão de efeitos do que para clarificar aquilo que vai na cabeça do grupo do PS.

      b) Penso que empiricamente se constata que o efeito substituição é mais forte do que o efeito rendimento, pelo menos no curto prazo e se for levado em conta todo o espectro de rendimentos (e não apenas os mais baixos, como acontece quando se analisa medidas de combate à pobreza)

      «noto que o Pedro usa “oferta de trabalho” (no texto) e “oferta de emprego” (nos gráficos) como equivalentes; mas será que o equivalente a “oferta de trabalho” não será “procura de emprego”?»

      Sem dúvida. Foi uma escolha infeliz de termos. É o que dá desenhar coisas no paint e escrever os posts em períodos diferentes do dia.

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