Boas ideias do PS – Complemento Salarial Anual

Valeu a pena esperar pelo cenário macroeconómico do PS. Entre outras coisas importantes, o documento já pôs toda a gente a discutir questões como o papel do Conselho das Finanças Públicas e da UTAO na avaliação prévia de promessas eleitorais e a importância da divulgação pública dos modelos subjacentes às previsões. São temas recorrentes neste blogue, e é bom saber que, pouco a pouco, esse caminho vai sendo feito.

Mas queria voltar ao tema porque o post de ontem foi demasiado ácido e pode, visto em retrospectiva, ser facilmente mal interpretado. O objectivo não era tanto criticar o programa, que como frisei tem “óptimas ideias que vale a pena discutir”, mas sim desmistificar a ilusão – que por pouco não ganhou lastro nalguns jornais – de que se está na presença de uma “via alternativa”, capaz de ignorar restrições orçamentais e alinhada com a crítica desleixada ao “capitalismo neoliberal” (seja lá o que isso for).

Feito o esclarecimento, queria discutir duas das propostas do documento que me parecem particularmente promissoras. Começo com o Complemento Salarial Anual (página 35), deixando a segunda para um post seguinte.

O princípio do Complemento, tanto quanto percebo, é o do célebre imposto negativo. A partir do momento em que uma família tenha um rendimento inferior a determinada fasquia, passa automaticamente a receber um complemento salarial que lhe permite aproximar-se dessa mesma fasquia, sem contudo a atingir. Consegue-se assim subsidiar quem ganha pouco, mantendo intactos os incentivos para trabalhar mais e subir na escada salarial. Na prática, aumenta-se o salário de quem está ‘na base’ da distribuição de rendimentos.

Uma crítica habitual ao modelo é que ele não abrange quem mais precisa de apoio – os desempregados. E não abrange. Mas também não é esse o objectivo. Para apoiar os desempregados já existem subsídios de desemprego e mecanismos de recurso quando essa via se esgota, como o subsídio social, o RSI e por aí fora. O que esta opção permite é substituir o Salário Mínimo Nacional (SMN) enquanto mecanismo de combate à pobreza, e é sob esse prisma que o seu mérito deve ser avaliado.

Em que medida é que um é superior ao outro? A minha leitura dos estudos que conheço1, que julgo que não será diferente da de 99% dos economistas da área laboral, é que o SMN tem efeitos negativos, mas contidos – digamos, algo entre o “escasso” e o “negligenciável” – no emprego. Na prática, o SMN parece servir de facto para aumentar os salários mais baixos, embora às custas de alguns postos de trabalho (veja-se, por exemplo, esta súmula de Christina Romer, antiga economista-chefe de Obama).

Por essa razão, muitos economistas estão dispostos a aceitar um SMN moderado. A divergência não é tanto em relação à existência deste efeito, mas sim à sua magnitude exacta e ao tradeoff concreto entre salários e emprego que cada um está disposto a tolerar. E esta é frequentemente mais uma questão normativa do que positiva. Subir ou não ou SMN será sempre uma decisão contingente e provisória – depende do estado da economia, depende do grau de concorrência presente no mercado e depende do valor actual do SMN. Não é raro economistas partidários do SMN defenderem, em contextos específicos e circunstâncias concretas, congelamentos mais ou menos prolongados do mesmo (julgo que é o caso de João Cerejeira, do NIPE).

O problema é que o “contexto específico” em que Portugal se encontra, e as “circunstâncias concretas” da nossa economia, são precisamente aquelas que tornam o SMN um instrumento arriscado como mecanismo de combate à pobreza.

Em primeiro lugar, porque o SMN já está fixado num nível relativamente elevado. Não é elevado tendo em conta a média europeia, os salários na Suécia ou outra comparação igualmente desajustada. É elevado tendo em conta o nível salarial que vigora em Portugal – a única comparação que faz sentido para aferir aquilo que interessa – o seu potencial efeito no emprego.

Em segundo lugar, porque Portugal continua, apesar das melhorias do último ano e meio, com uma das taxas de desemprego mais altas da sua história. E, tendo em conta a experiência europeia, temos de assumir o risco real de uma boa parte deste desemprego se cristalizar como desemprego estrutural e deixar uma marca permanente na economia (mesmo que não saibamos exactamente como é que o efeito se processa). As implicações de uma taxa desemprego persistentemente mais alta são imensas – desde logo para os próprios desempregados, mas também para a Segurança Social.

Por que é que o nível da taxa de desemprego nos deveria fazer reavaliar a pertinência do SMN? Por um lado, porque torna sem dúvida menos apelativo o tradeoff «mais salários vs. menos emprego». A partir do momento em que uma franja maior da população está fora do mercado de trabalho, é da mais elementar justiça que quem tem emprego partilhe o fardo, sob a forma de salários mais baixos. Por outro lado, e este é um ponto importante, porque aumenta imenso o impacto negativo de uma eventual erro de cálculo.

Isto é: num cenário de desemprego baixo, uma subida do SMN que se revele exagerada a posteriori insufla o problema, mas um problema que era pequeno à partida e que pode ser amenizado com políticas de rendimentos. Num cenário de desemprego elevado e restrições orçamentais, um SMN mal calibrado pode dar proporções bíblicas ao problema, com danos colaterais que não poderão ser controlados através do Orçamento. A diferença do nível de desemprego agrava assim as consequências nefastas de uma subida extemporânea do SMN, tornando-a portanto mais arriscada.

Claro que o imposto negativo não é isento de riscos. Um dos mais sérios é o de subsidiar as empresas que pagam salários mais baixos. Mas tendo em conta o risco da alternativa, julgo que ao pesar prós e contras este devia ser um risco relativamente mais aceitável.

Finalmente, esta proposta tem ainda outras vantagens adicionais, que a prazo podem ser muito importantes. Na medida em que torna o pagamento de IRS ‘subsidiável’ pelo Estado, desincentiva o trabalho informal. E pode, eventualmente, abrir as portas à consolidação, numa única prestação social, de dezenas de medidas de combate à pobreza que estão, neste momento, dispersas e fragmentadas por inúmeros diplomas e iniciativas, gerando uma manta de retalhos que pulveriza recursos em vez de os concentrar.

1 Por exemplo este, feito por… Mário Centeno.

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