Os problemas fantasma das contas com o exterior

A divulgação dos números do Comércio Internacional é quase sempre seguida de um coro de comentários – em geral, bastante  negativos. Ou são as importações que crescem, ou o saldo externo que se deteriora, ou é – imagine-se – o contributo-da-procura-externa-líquida-para-o -PIB que é negativo.

A atenção é de louvar, porque foi precisamente a desvalorização das contas externas que esteve na origem da crise. Mas calma: não é preciso ir do oito ao oitenta, nem encontrar problemas onde eles manifestamente não existem. Neste post destaco apenas dois dos erros mais comuns de quem tem hipersensibilidade a este tema.

O primeiro são os números que caem do ar, sem contexto ou enquadramento. Dou um exemplo próximo. Toda a gente já ouviu falar do sucesso do sector exportador português desde 2011. O que nem toda a gente sabe é que as exportações, ao contrário do que se esperaria, não cresceram mais neste período do que durante a época anterior. De facto, entre 2011 e 2014 só por duas vezes a evolução das exportações foi melhor do que a média do período 2000-2007.

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Este é, pelo menos, uma das críticas mais frequentes. Uma das suas variantes é o típico “exportações crescem menos do que no ano passado”.

Mas, como é óbvio, as exportações dependem não apenas da capacidade das empresas portuguesas de venderem mais e melhor (seja através de preços mais baixos ou outros factores), mas também da capacidade de absorção dos mercados que importam os nosso produtos. Um crescimento das exportações de 5% não é, em si mesmo, muito significativo – pode ser um resultado impressionante se a procura externa estagnou, mas também pode ser um número medíocre caso a procura externa esteja a cavalgar 10%.

A contextualização destes números exige, por isso, ter pelo menos uma ideia de como está a evoluir a procura externa relevante para Portugal. E é só tendo esses valores à frente que a performance das exportações desde 2011 se tornam notáveis. As exportações não cresceram mais do que o habitual, pelo menos se o “habitual” for a média da última década. Mas elas cresceram muito mais do que seria justificado pelo comportamento da procura externa, o que se traduziu num ganho de quota de mercado. A figura de baixo, do Economic Outlook da OCDE, dá uma ideia desta performance.

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No caso das importações também é preciso ter algum cuidado.  Um crescimento das importações de 10% é muito ou é pouco? Depende. Se a procura interna está a crescer 10%, então as importações estão apenas a ser arrastadas por esse impulso. E, na medida em que o crescimento da procura interna aumenta o Produto, essas importações adicionais são apenas o preço a pagar por um nível de emprego mais alto – e serão, em todo o caso, diluídas num denominador (PIB) mais volumoso.

Mas se as importações estão a crescer acima da procura interna, então a situação é menos benigna. A leitura a fazer, neste caso, é que o aumento da procura interna está a alimentar mais a produção de países terceiros do que a nossa própria produção, o que é obviamente um problema.

O bottom line, em qualquer dos casos, é que as importações não podem ser desligadas do comportamento do PIB, da mesma forma que as exportações não podem ser desligadas do comportamento da procura externa. Quem lamenta o aumento das importações sem ter em conta o crescimento do PIB está a assumir implicitamente que é possível aumentar a procura sem que pelo menos um pouco dessa procura seja destinada a bens ou serviços produzidos lá fora, o que é obviamente irrealista. Por isso, a questão não é se as importações crescem ou não, mas se a sua evolução está em linha com o comportamento do PIB1.

Agora, é possível argumentar que o défice comercial nunca deve ultrapassar um determinado limite máximo, a partir do qual pode pôr em causa a sustentabilidade da dívida externa. E, se não é possível assegurar o cumprimento desse limite através do crescimento das exportações, então ele deve ser garantido à força através da contracção das importações, mesmo que isso implique um grande sacrifício do Produto.

Não há nada de errado com este argumento. Mas então qual é exactamente o valor que se tem de respeitar?

A generalidade dos comentadores usa o critério do se-o défice-desce-é-bom-se-sobe-é-mau, como se alguém estivesse à espera que a saldo comercial com o exterior estivesse permanentemente a melhorar. Mas isto é apenas um óptimo exemplo de ancoragem: como nunca ninguém sabe qual é o valor ideal para o saldo comercial, assume-se que o valor do ano anterior é o benchmark e raciocina-se a partir daí. Isto não é muito diferente de criticar um jogador de futebol por não conseguir melhorar continuamente o seu número de golos.

Uma alternativa mais razoável passa por comparar o saldo comercial com uma determinada meta fixada previamente. Por exemplo, a meta traçada no Memorando de Entendimento assinado em Maio de 2011. A imagem de baixo mostra o saldo da Balança de Transacções Correntes, já que o MoU não detalhava valores relativamente à subcomponente “comercial”. Como se vê, não há razões na alarme – na verdade, o saldo até se poderia deteriorar em quase 3% do PIB em 2015 que os objectivos continuariam a ser cumpridos.

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Outra possibilidade é calcular primeiro uma meta para um determinado nível de dívida externa e extrair, a partir daí, o valor do saldo comercial que essa meta implica. Utilizar esta métrica não altera muito a conclusão anterior de que a situação não é problemática. Na verdade, o valor do saldo comercial até é suficiente para reduzir a dívida externa a metade do seu valor actual nos próximos 20 anos (página 13).

1 Em bom rigor, o que interessa é se a elasticidade das importações face ao PIB está a aumentar ou não

4 comments on “Os problemas fantasma das contas com o exterior

  1. Pedro Simoes diz:

    Pedro, boa analise, mas esqueceu-se de que muitas importacoes sao input para exportacoes. Por exemplo, a Galp importa petroleo e exporta produtos refinados. Se aumentar as exportacoes 10%, isso leva necessariamente a um aumento de importacoes de 3% (por exemplo), mesmo sem variacao da procura interna.

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  2. Joao diz:

    Um criterio importante e se o pais se endivida para consumir ou investir. Defices associados a investimento sao uma maneira de o pais antecipar parte do aumento no consumo que esse investimento proporciona

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  3. SFF diz:

    O défice externo, em princípio, não vai continuar assim, porque isto é uma situação de excepção, conjuntural, e é mais provável que se deteriore nos próximos anos. Aí voltará a ser um problema.

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  4. Catarina diz:

    Descobri hoje o blog e já estou a gostar! Obrigada pelas análises profundas.

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