Juros negativos e a política monetária virada do avesso

A Zona Euro está há quatro ou cinco anos com uma taxa de desemprego demasiado alta e uma taxa de inflação demasiado baixa. Não é de estranhar que o BCE, responsável máximo pela gestão macroeconómica da ZE, seja criticado por muita gente. Mas algumas das críticas que se ouvem por estes dias são verdadeiramente bizarras, e convinha que as colocássemos de lado antes que alguém se lembre de as levar até às últimas consequências.

Ontem, por exemplo, João Salgueiro disse na SIC Notícias que a descida das taxas de juro para níveis negativos estava a ser um travão à retoma europeia. Isto porque – cito de cabeça – juros negativos destroem a remuneração dos activos financeiros, afectam negativamente o rendimento de quem detém estes títulos e acabam, ao contrário do que se espera, por fazer contrair a procura global. Medina Carreira, que também estava presente, acenou com a cabeça .

Qual é o problema deste argumento? No plano empírico, ele não faz sentido. Quantas pessoas conhecem que dependem de rendimentos deste género para calibrar as suas decisões de despesa? É possível que no círculo social de João Salgueiro esse número seja significativo, mas a esmagadora maioria dos portugueses depende do seu salário para viver. A riqueza financeira está extremamente concentrada nas classes superiores, onde a propensão a gastar já é mais baixa.

Mas a maior falha do argumento não é na ligação aos dados – é na relação com a lógica. É que não há nada de mágico no número ‘zero’ que nos deva levar a pensar que os aforradores estão a ser especialmente penalizados neste momento. Sim, juros negativos são piores do que juros nulos; mas juros de 0% também são piores do que juros de 2%, e juros de 2% também são piores do que juros de 4%. Se juros negativos atrasam a retoma será que devíamos subir os juros para 4 ou 5% para a estimular?

É óbvio que alguma coisa não bate certo quando se sugere, mesmo que sem dar por isso, que a política monetária funciona exactamente ao contrário de como os bancos centrais pensam que ela funciona. E não é difícil perceber como é que o coelho entrou na cartola. O problema aqui é que se está a fazer uma análise de equilíbrio puramente parcial, olhando para os efeitos em alguns agentes económicos, esquecendo os efeitos no resto  dos agentes e passando ao lado da interacção entre ambos.

Para compor as coisas, e ter uma ideia global, não podemos apenas olhar para um lado da história. Sim, os aforradores perdem com juros baixos – e daí advém, em princípio, uma redução da procura. Por outro lado, os devedores ganham, o que tem o efeito contrário. Por exemplo, em virtude da política do BCE o detentor de uma Obrigação do Tesouro ganha menos do que ganharia se os juros fossem mais altos; mas em contrapartida o Estado também paga menos. De um ponto vista estático, a descida de juros é neutra.

Mas agora é preciso introduzir dinâmica na equação. E permitir a possibilidade de haver transição de agentes económicos de um grupo para o outro.

Como é que isto funciona? A descida dos juros – seja de 4 para 2%, ou de 0% para -1% – faz com que os pedidos de empréstimo (=gastar dinheiro) se tornem mais apetecíveis, devido ao custo inferior. Ao mesmo tempo, torna a concessão de empréstimos (=poupar dinheiro) menos aliciante, por reduzir a sua remuneração. Ora, se os agentes económicos forem minimamente racionais vão responder a esta alteração de incentivos a) reduzindo a quantidade de dinheiro que poupam; e b) aumentando a quantidade de dinheiro que gastam. Isto é: apesar de a descida dos juros ter o efeito directo de prejudicar os mutuantes e beneficiar os mutuários, ela tem o efeito indirecto e composicional de aumentar a dimensão do segundo grupo.

E é este o equilíbrio geral que faz com que a política monetária provoque um aumento global da procura. (Mas, se não ficaram convencidos, podem sempre ler Expropriation of the saver, do BCE, e uma série de posts de Ben Bernanke acerca do mesmo tema (do I ao IV), bem como a longa lista de textos acerca das “taxas de juro artificialmente baixas” – ver aqui a nota número 3).

 

 

9 comments on “Juros negativos e a política monetária virada do avesso

  1. “De um ponto vista estático, a descida de juros é neutra.”

    eu diria que num sistema monetário de tipo fiat money, o efeito dos baixos juros (em termos de rendimento) é ainda menos (ou mais? não sei bem qual será a melhor palavra aqui…) do que neutro.

    [Total de dinheiro que os devedores devem] = [Total de dinheiro que os credores (excluindo o Banco Central) têm a haver] + [Total de dívidas ao Banco Central ~= Notas em circulação]

    Logo (excluindo o banco central), a divida dos devedores é maior que a dívida aos credores, de forma que quem ganha mais com os juros negativos ganha mais do que perde quem perde; os juros negativos podem ser quase considerados como um “subsidio” que o banco central dá ao resto da economia (no fundo, já serão uma espécie de helicopter money).

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    • Miguel, acho que não percebi bem a ideia. Não quer clarificar um pouco melhor?

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      • O Luis deve 10.000 euros; dessa dívida, 9.900 euros estão nas mão da Maria e 100 nas do Banco Central (essa divida de 100 euros no ativo do Banco Central tem como contraparte um passivo correspondente a 100 euros de notas em circulação). Assim, o que o Luis ganha com os juros baixos é mais do que a Maria perde.

        Em termos mais abstratos – vamos dividir os agentes económicos em duas categorias:a) o Banco Central; e b) todos os outros. Globalmente, o conjunto de “todos os outros” devem ao Banco Central, logo juros negativos equivalem a uma transferencia de dinheiro do Banco Central para “todos os outros”.

        Até já me ocorreu que naquelas equaçoes que se aprendem nos primeiros meses de macroeconomia, a equação do rendimento disponível se calhar, em vez de Yd = Y – T (Rendimento disponivel = Rendimento – Impostos), poderia ser Yd = Y – T – M*i (descontando também ao rendimento disponível os juros pagos pela divida detida pelo Banco Central, que em principio será aproximadamente o valor das notas em circulação – o “M” na fórmula seria o M0; isto faria mais sentido se o Banco Central emitisse dinheiro sobretudo emprestando dinheiro aos bancos comercias, mas se calhar já não fará tanto sentido num mundo em que o dinheiro é emitido comprando divida pública)

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  2. Joao diz:

    A ideia de que os aforradores perdem com juros baixos e errada. Quando os juros reais descem o valor dos activos sobe, como e evidente, e um aforrador pode sair a ganhar. Os efeitos distributivos de variacoes nas taxas de juro reais sao bastante mais subtis que isso, e dependem da duracao dos activos e passivos de cada pessoa, incluindo capital humano e planos de consumo no futuro.

    Click to access mp_redistribution.pdf

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    • Obrigado pelo link, João. Só dei uma vista de olhos na diagonal, mas uma coisa que me parece faltar aí (e no meu post, já agora) é o impacto macro da política monetária nos adoradores. Isto é: mesmo que um aforrador perca dinheiro em rendimentos que deixa de receber, se em virtude da descida dos juros ele mantiver o emprego o impacto é positivo. Mas vou ver o papel melhor na próxima semana.

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    • Mas atenção que uma coisa é juros baixos, outra coisa é juros a baixar (nivel vs. variação) – dá-me a ideia que os aforradores só ganharão dinheiro via valorização dos ativos no instante em que o juro baixa

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  3. Joao diz:

    Ha que distinguir aqui duas coisas. Uma e o efeito de uma descida dos juros sobre os aforradores, ou mais concretamente sobre o valor do seu patrimonio liquido. Esse efeito e ambiguo e depende da duracao dos activos e passivos, conforme mostra esse artigo (artigo alias muito recente, porque esta e uma questao pouco estudada). Quando os alemaes se queixam que perdem com a descida das taxas, e o Joao Salgueiro repete isso por ca, esquecem-se que o valor dos activos que detem aumenta cada vez que a taxa de juro cai. Se se pode dizer alguma coisa em termos gerais parece-me que e que quem detem activos de longo prazo beneficia e quem detem activos de curto prazo perde.

    Outra coisa diferente e o efeito da descida dos juros sobre o aforro em si, ou seja sobre decisoes de poupanca daqui para a frente. Esse e claramente negativo. Mas esse e precisamente o objectivo da descida de juros. Incentivar o investimento e o consumo, em detrimento da poupanca, para estimular a economia e recuperar o emprego. Este o principal mecanismo de estimulo da politica monetaria, amplamente estudado e validado (o que o artigo chama “traditional aggregate income and substitution channels”). Nao prejudica aforradores nem devedores, so cria incentivos para que todos (ou aqueles que podem) invistam e consumam mais no presente, de forma a aproximar a economia do seu potencial.

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    • Ah, ok. Bom, acho que isso é uma subquestão *dentro* da questão mais global do impacto macroeconómico (positivo ou negativo) da descida de juros. Já agora, sobre um related topic 🙂 http://www.brookings.edu/events/2015/06/01-inequality-and-monetary-policy

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      • Joao diz:

        Interessante, de facto e uma area pouco estudada que ganha relevo nestes tempos de politicas monetarias nao convencionais.

        Mas esta questao e importante porque a historia da expropriacao do aforrador alemao e mais um argumento na longa lista de argumentos que os alemaes vao apresentando contra uma politica monetaria expansionista do BCE, todos eles errados. Pelos vistos alguns economistas alemaes vao ao ponto de dizer que as taxas baixas tem efeitos recessivos (e nao so redistributivos), o que e absurdo, e o Joao Salgueiro repete o argumento esquecendo-se, ironicamente, que segundo essa teoria os efeitos redistributivos beneficiam Portugal enquanto pais devedor.

        Muita opiniao em Portugal segue de forma acritica o que dizem os alemaes (directa ou indirectamente atraves da enorme influencia dos alemaes nas instituicoes europeias), sem perceber que os alemaes defendem os seus interesses, nem sempre alinhados com os nossos, nem que muitas vezes, e especialmente em materias macroeconomicas, estao pura e simplesmente errados (ou pelo menos vao completamente contra aquilo que e o consenso profissional entre macroeconomistas mainstream).

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