O Tratado Orçamental (TO) é o mais recente instrumento legal a nível europeu para controlar as finanças públicas dos membros da Zona Euro. O Tratado já foi ratificado por Portugal em Abril de 2012, mas tem vindo a ser novamente debatido, no âmbito da conclusão do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) e dos constrangimentos económicos e financeiros que continuarão a vigorar após a saída da Troika de Portugal.
O texto legal introduz várias novidades na supervisão orçamental, como a clarificação do papel do Tribunal de Justiça da União Europeia (artigo 8º), mas os pontos mais polémicos têm sido, compreensivelmente, os artigo 3º e 4º. Segundo os quais:
a) O saldo orçamental ‘estrutural’ – isto é, o saldo orçamental corrigido de medidas extraordinárias e dos efeitos do ciclo económico – deve atingir os -0,5% do PIB;
b) A dívida pública não deve superar os 60% do PIB. Quando o limite é furado, a dívida deve ser reduzida à razão de 1/20 do excesso (face à fasquia de 60%) por ano.
Estas normas levantam duas questões importantes. A primeira questão é se os limites orçamentais inscritos no TO fazem sentido. A segunda questão é se o período temporal concedido aos signatários para que esses limites sejam respeitados é apropriado. Apesar de ambas aparecerem frequentemente misturadas numa amálgama argumentativa, convém separá-las.
Primeiro, a questão dos limites. A existência genérica de um limite à dívida dificilmente pode ser posta em causa. A pergunta não é tanto se deve haver um tecto para a dívida, mas sim se 60% é um valor razoável ou não. A experiência sugere que países desenvolvidos conseguem gerir razoavelmente bem montantes desta magnitude sem provocarem distúrbios nos mercados. Mas os casos recentes da Irlanda e Espanha mostramque mesmo uma dívida de 60% pode ficar acima do ‘nível de segurança’ na eventualidade de choques económicos de grandes dimensões. Neste contexto, a fasquia de 60% não pode ser vista como uma exigência desproporcionada (leia-se, a este propósito, o capítulo Fiscal Risks, Solvency and Sustainability do policy paper do FMI).
A regra do saldo estrutural próximo do equilíbrio, por sua vez, introduz um gatilho de segurança adicional que obriga os Governos a respeitarem a regra da dívida. Esta regra é frequentemente mal compreendida. Ao contrário do que se ouve com recorrência, um saldo estrutural equilibrado não obriga o Governo a consolidar contas em períodos recessivos; não é incompatível com política orçamental contracíclica; não impõe limites ao tamanho do Estado; e, finalmente, não significa ‘austeridade permanente’.
Imagine-se uma recessão que causa uma quebra profunda das receitas fiscais. Esta quebra aumentará o défice orçamental. Estará o Estado em causa obrigado a consolidar as contas para compensar este shortfall? Não – porque o défice orçamental é especificado em termos estruturais*. Uma subida do défice induzida pela recessão é obviamente cíclica, deixando o saldo estrutural inalterado.
A regra do saldo equilibrado também não obriga o Estado a reagir à recessão de forma meramente passiva. Há pelo menos duas formas de implementar um estímulo orçamental: invocando “circunstâncias excepcionais” (artigo 3º, ponto 1, alínea c) que justifiquem um desvio da regra; ou acumulando buffers orçamentais extra durante o período de vacas gordas, de maneira a que o saldo estrutural fique acima dos -0,5% quando a próxima recessão chegar (nota: foi precisamente isto que a Dinamarca e Finlândia fizeram até 2007, o que lhes permitiu ter estímulos orçamentais e manter o saldo estrutural equilibrado).
Como é óbvio, nada disto é incompatível com um Estado grande, médio ou pequeno. O TO limita a diferença entre despesas e receitas, mas deixa ao critério de cada país o nível específico de gastos e impostos. Aliás, é irónico que sejam precisamente os Estados com mais despesa pública (os nórdicos, tipicamente) que apresentam orçamentos mais próximos do equilíbrio.
A ideia de que isto implica ‘austeridade permanente’ resulta de uma confusão comum entre níveis e variações. Reduzir o défice é uma política contraccionista, com impacto negativo na actividade económica e no emprego. Mas manter um défice baixo é uma política neutra, sem influência macroeconómica. Ou seja: uma vez atingido o objectivo de saldo estrutural equilibrado, mantê-lo nesse nível não exige nenhum esforço adicional por parte dos agentes económicos. Uma analogia útil: a generalidade das pessoas, seja gorda ou magra, terá dificuldade em perder 5kgs num mês (variação de peso); mas não há nenhuma razão para acreditar que uma pessoa magra tenha uma vida mais difícil do que uma pessoa gorda (nível de peso).
A segunda questão, relativa à velocidade do ajustamento, é mais complicada, e só pode ser respondida caso-a-caso. Portugal, por exemplo, deve apresentar em 2014 um saldo estrutural de cerca de -2,6% do PIB. Para atingir a meta podem eventualmente ser necessárias medidas adicionais em torno de 2% do PIB, e a razoabilidade desta meta depende do horizonte temporal ao longo do qual tiver de ser atingida – um ano é irrealista; três anos parece é razoável.
A regra para a dívida pública cai na mesma categoria. Se o saldo orçamental estiver equilibrado, então até um crescimento nominal moderado (abaixo dos 4%) chega para cumprir a regra, pelo simples efeito de aumento do denominador (PIB). Caso o saldo seja fortemente negativo, a situação muda de figura, e abater 3p.p. à dívida exige um esforço orçamental hercúleo.
A bottom line é simples. Em termos genéricos, as regras do TO fazem sentido – sobretudo se forem acompanhadas pela devida monitorização macroeconómica. Mas em determinados casos específicos é possível que imponham, transitoriamente, um ajustamento orçamental desproporcionado – sobretudo tendo em conta que obrigam a uma consolidação transversal a nível europeu, sem diferenciar entre países com maior e menor margem financeira. As implicações políticas são óbvias: os países com maiores desequilíbrios deveriam passar menos tempo a criticar o TO – que acabará, a bem ou a mal, por ser aplicado – a ocupar-se mais a negociar junto das instituições mecanismos que mitigar um eventual “ajustamento desproporcionado” de curto prazo.
*Esta é outra crítica ao TO: o saldo estrutural é uma ficção contabilística. É verdade que o saldo estrutural é um indicador difícil de calcular, e portanto estará sujeito a grande ‘debate metodológico’ entre o Eurostat e os países signatários do TO. O problema é que a alternativa – focar a atenção no défice efectivo – é uma solução muito pior, porque não fornece uma avaliação correcta da verdadeira situação orçamental de um país. De resto, a prioridade dada às headline figures ao longo da última década também não impediu que as autoridades estatísticas nacionais divergissem frequentemente do Eurostat no que toca ao registo de várias operações.
“A existência genérica de um limite à dívida dificilmente pode ser posta em causa.”
Se considerássemos que cada país é responsável pelo pagamento da sua dívida, porque é que teria que haver limites? Ou mlehor, porque é que a UE haveria de impor limites aos seus membros? Fazendo uma analogia – se os Estados, normalmente, não fazem leis limitando a nível a que as famílias se podem endividar, porque é que uma união de estados há de limitar o nivel a que cada estado se há de endividar?
Eu consigo imaginar duas situações que têm lógica:
a) Cada país é responsável pelas suas contas, e endivida-se como entender (e conseguir)
b) A UE assume a responsabilidade (total ou parcial) pelas dívidas dos seus estados-membros e é natural que exerce uma tutela sobre eles
Agora a combinação entre regras comunitárias e responsabilidade nacional pelo pagamento das dívidas é que não me parece fazer grande sentido (bem, faz sentido se se assumir que há realmente uma garantia implicita que a UE vai apoiar os seus membros em dificuldades, mesmo que isso não esteja estabelecido formalmente)
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Já agora, uma dúvida acerca do “deficit estrutural”: se, numa recessão, o Estado decide aumentar a despesa pública e/ou baixar os impostos para tentar estimular a economia, isso conta como “despesa não estrutural”, ou só conta como “não estrutural” os deficits resultantes de estabilizadores automáticos?
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Miguel, para todos os efeitos a dívida já está, de certa forma, mutualizada: um incumprimento português, por exemplo, teria impacto nas entidades europeias que emprestaram a Portugal (Mecanismo Europeu de Estabilização e, indirectamente, o BCE).
Não há dívida mutualizada ‘daqui para a frente’, mas como há o risco de que o mercado considere que essa mutualização pode vir a acontecer (a ‘no bailout clause’ já foi rompida), penso que o seu argumento perde força.
Sobre o saldo estrutural: em princípio, as medidas de política são não estruturais – só a estabilização automática é que é capturada como ‘factor cíclico’. Isto em princípio, porque na prática o cálculo do saldo estrutural é sujeito a vários enviesamentos. (sobre isso veja, por exemplo, este post:https://desviocolossal.wordpress.com/2013/11/01/mudancas-no-horizonte-no-pib-potencial/ )
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