Acções e obrigações: 30 anos a disparar ao lado

Bom, parece que não é só nos mercados monetários e de rendimento fixo – obrigações e coisas do género – que os economistas têm feito previsões sistematicamente enviesadas. As projecções para o retorno das acções (earnings per share) feitas desde 1985 também não são famosas:

economist

Isto é o que nos diz a Economist, num gráfico que eu já devia ter colocado aqui há muito tempo. Cada linha mostra como uma determinada previsão para os earnings per share evolui no tempo – ou, melhor ainda, a forma como os earnings per share efectivos divergem da previsão inicial à medida que o tempo passa.

A história que a imagem conta é clara: os resultados das acções têm sido sempre (ou quase sempre) inferiores ao inicialmente projectado. Os analistas estão a errar o alvo desde 1985 mas, por alguma razão difícil de perceber, não conseguiram incorporar este enviesamento sistemático no modelo de previsão. Como o atirador que dispara sempre à direita do prato, e não se apercebe de que se ajustar a mira para a esquerda deve, em princípio, reduzir a taxa de erro.

Onde é que já vimos isto antes? Parece-me que o padrão mimetiza o que está a acontecer nos mercados de obrigações, onde o consenso também tem sistematicamente apontado para rendimentos superiores aos que acabam por se verificar. Já falei sobre isso no meu post clickbait favorito: Os juros descem há 30 anos (e ninguém deu por ela):

bed2

Há uma explicação muito simples para a descida ‘secular’ das taxas de juro: factores demográficos e o abrandamento da produtividade. Se há menos pessoas a consumir, e se as inovações têm um retorno menor, a procura por investimento deve diminuir, o que faz baixar a taxa de juro (ver aqui).

Mas, sendo os mercados de capitais ‘porosos’, a descida das taxas de juro devia também forçar uma alteração no retorno das acções – caso contrário, os investidores trocariam um título pelo outro, lucrando com o processo de arbitragem. O gráfico da Economist sugere que esse processo pode já estar em marcha há já algum tempo.

Ou… talvez não. A verdade é que não tenho tanta facilidade em interpretar os earnings per share como a ler taxas de juro simples. Além do mais, a imagem mostra que as previsões têm sido sistematicamente optimistas, mas não revela o nível dessas mesmas previsões, o que torna mais difícil fazer uma comparação clara com as taxas de juro.

Será que é mais uma peça para perceber o puzzle da Estagnação Secular? Ou estou só a usar os óculos errados para ler um fenómeno trivial? Comentários são bem-vindos.

12 comments on “Acções e obrigações: 30 anos a disparar ao lado

  1. As previsões de earning per share não poderão ser uma profecia autodestruida? Previsões muito otimistas fazendo subir o valor das ações e assim reduzindo o rácio? Estou assumindo que o denominador é o valor de mercado das ações (se não for, nada do que estou a escrever faz sentido).

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    • André Gouveia diz:

      Boa tarde Miguel, no caso o denominador será mesmo o número de ações (eventualmente com ajustamentos para ações detida pela própria empresa, etc).

      Este enviezamento sistematicamente otimista já foi discutido em muitas ocasiões. Possivelmente existirão diversos fatores em ações, mas IMHO um dos principais é o facto dos analistas trabalharem para instituições que ganham com maior número de participantes e maiores número de transações. Vários estudos apontam para o facto de as recomendações de compra serem sistematicamente mais numerosas que as de venda.

      Por outro lado, como penso que neste blog já foi frisado, os seres humanos têm diversos bias (ancoragem das expectativas, recency bias) que dificulta a previsão de cenários extremos. E as recessões dão origem a números mais afastados da norma.

      Os meus 0.02 €

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  2. Sim, é o valor de mercado. Pois, pode haver efeitos dessa natureza a invalidar a minha hipotética conclusão. No geral, a evolução do earning per share parece-me muito mais difícil de interpretar do que uma taxa de juro. Gostava de poder prolongar a janela de análise até aos anos 60, mas a Economist não divulga esses dados (e eu sinceramente também não sei onde os encontrar).

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  3. As tendências das previsões ajustam-nas os “analistas” aos seus próprios interesses.
    Não há previsões grátis.

    Se um analista financeiro estivesse convicto da certeza das suas previsões não as divulgaria, utilizava-as em proveito próprio. Não seria analista, seria investidor, especulador. Se as divulga é porque espera dessa divulgação uma retribuição, que, em princípio, será tanto mais elevada quanto o optimismo com que embala as suas previsões.

    O analista financeiro é provavelmente o único profissional da “dismal science” que vê o futuro geralmente em tom de cor-de-rosa.

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    • jvgama diz:

      «Se um analista financeiro estivesse convicto da certeza das suas previsões não as divulgaria, utilizava-as em proveito próprio.»
      Eis um comentário que parece ignorar de forma grosseira a natureza humana, em particular a sua diversidade. Como se não existissem N pessoas para quem as “massagens ao ego” derivadas do reconhecimento social não fossem bem mais importantes que uns tostões acrescidos. Isto só para falar numa razão que até nem envolve um grau de cinismo menor. Existem inúmeras outras possibilidades.

      E isto verifica-se empiricamente. Desde os inúmeros participantes no projecto de Philip Tetlock algumas das quais proporcionavam gratuitamente previsões que eram mais certeiras que as dos (tão bem orçamentados) serviços de informação dos EUA, até ao Nate Silver (cujas previsões têm obviamente impacto nos mercados). E saber que as pessoas são motivadas por outras questões que não as financeiras também é trivial, logo a começar pelas inúmeras que ofereceram patentes valiosíssimas ao mundo, geralmente ficando a perder (monetariamente) com a dádiva. Isto já para não falar em toda a economia associada ao auxílio social.

      O problema das previsões em causa não é o facto de quem delas discorda ficar quietinho a ganhar o seu. Se assim fosse, os próprios mercados teriam antecipado a descida subsequente nos preços, e não se verificaria essa tendência ao longo de décadas.
      As pistas que o Pedro Romano dá são muito mais compatíveis com os dados.

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  4. JVGama,

    Há sempre N pessoas, claro. Há gente para tudo.
    Mas o artigo de Pedro Romano refere-se a projeccões de tendências de rendimentos em investimentos financeiros e não em massagens do ego.
    Ou li mal?

    Hoje no JN um “opinador” – vd. aqui : http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/investidor-cidadao – conclui num artigo disperso que deveríamos ter apostado na bolsa francesa em 2016.
    Perguntei-lhe: Por que é que não nos avisou no início do ano?

    No mesmo jornal pode ler-se que os investidores receiam o efeito Le Pen.

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    • jvgama diz:

      «Mas o artigo de Pedro Romano refere-se a projeccões de tendências de rendimentos em investimentos financeiros e não em massagens do ego.»

      Existem duas explicações para que quem faz projecções, seja no FMI, nos Bancos Centrais, na Economist, ou onde for, falhe da forma que tem falhado:

      a) A explicação do Pedro Romano: existe um enquadramento teórico que encara os choques como transitórios, e portanto assume que a melhor previsão de longo prazo é que que as coisas voltem mais ao menos ao estado onde estão. Como o enquadramento é desadequado, ele origina erros sistemáticos de previsão.

      b) A explicação do Rui Fonseca: existem pessoas capazes de fazer boas previsões, e outras incapazes. As que são capazes, ou as omitem ou apresentam previsões erradas, já que esta é a forma mais eficaz de lucrar o máximo com a sua capacidade.

      Aquilo que eu afirmei é que a explicação do Rui Fonseca é (na minha opinião) uma péssima explicação. Isto porque existem pessoas capazes e investidas em fazer boas previsões (como se pode ver por uma série de outras previsões certeiras que estas mesmas instituições fazem). Uma explicação para o facto de alguém capaz de fazer uma boa previsão preferir publicitá-la em vez de lucrar o máximo com ela é que para várias pessoas aquilo que recebem não-financeiramente por uma previsão reconhecidamente certeira (reconhecimento pessoal e profissional, etc.) é-lhes mais valioso do que aquilo que receberiam se mantivessem essa previsão para si próprios e tentassem lucrar financeiramente ao máximo. Exemplos de pessoas muito capazes com este tipo de prioridades podem ser encontrados no projecto de Philip Tetlock (os “superprevisiores”), mas sinceramente acho muito mais difícil encontrar um bom previsor do que encontrar alguém que valorize o reconhecimento (ou algo análogo) acima do dinheiro.

      Já a explicação do Pedro Romano parece acertar em cheio na forma como algumas assumpções simplificadoras muito comuns no mundo académico podem dar mau resultado no actual contexto.

      E até existe uma forma de testar quem tem razão. Se o Pedro Romano estiver certo, as instituições vão aperceber-se deste erro sistemático em particular, e alterar as suas previsões em conformidade. Se o Rui Fonseca tiver razão, ao longo das próximas décadas estas instituições irão continuar a sobrestimar sistematicamente a evolução de médio-longo prazo destes valores.
      Veremos o que acontece.

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      • JVGama,

        Não sei se o Pedro Romano subscreve as suas conclusões.

        Mas a sua esperança de que “se o Pedro Romano estiver certo, as instituições vão aperceber-se deste erro sisitemático … e alterar as suas previsões em conformidade”, sem nenhum desprimor para a competência de Pedro Romano, que é reconhecidamente elevada, parece-me exagerada.

        Trabalhei dezenas de anos em mercados de comodities e nunca vi um vendedor reconhecer que o mercado vai cair, ou continuar a cair, nem nenhum comprador reconhecer que o mercado vai subir, ou continuar a subir. Simplemente reagem de acordo com aquilo que sabem ou pressentem. Salvo se, inside trading, tiram partido de posições privilegiadas.
        Mas havia vários analistas “independentes” a fazer projecções e … a vender relatórios. Era o negócio deles.
        Aqueles que se aventuravam a prever uma crise próxima em geral perdiam subscritores.

        Pergunte a um agente de imobiliário se o mercado está a subir ou a descer, apresentando-se o JVGama como comprador. Ou como vendedor, tanto faz. No primeiro caso, o prognóstico é que está a subir. No segundo caso, mais complicado porque mercado em queda não interessa ao negócio do agente, dir-lhe-á reticentemente que está a cair.

        Os mercados financeiros não se distinguem muito dos mercados de comodities. Os agentes financeiros ganham nas compras e nas vendas mas, obviamente, interessa-lhes mais um mercado vendedor (bull market) que um mercado comprador (bearing market) porque o volume de transacções é, neste último caso, muito menos compensador.

        Se para o JVGama tudo isto é, ou pode ser, contraditado pelo factor “massagem do ego”
        reconheço que não posso, porque não sei, contra argumentar nesse campo psicológico.

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      • jvgama diz:

        «Mas a sua esperança de que “se o Pedro Romano estiver certo, as instituições vão aperceber-se deste erro sisitemático … e alterar as suas previsões em conformidade”, sem nenhum desprimor para a competência de Pedro Romano, que é reconhecidamente elevada, parece-me exagerada.»

        Ahahaha, vejo que fui mal interpretado. Não se vão aperceber disto por lerem este blogue. Vão-se aperceber – e têm-se apercebido – da mesma forma que o Pedro Romano. Porque neste momento os dados já são relativamente claros, e o erro torna-se excessivamente grosseiro. Por exemplo, no Banco de Portugal ouvi comentários exactamente no mesmo sentido deste post. As pessoas começam a abrir os olhos para este erro sistemático, como o fizeram no passado em relação a outros erros. O conhecimento vai progredindo, como tem acontecido nas últimas décadas.

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      • jvgama diz:

        «Pergunte a um agente de imobiliário se o mercado está a subir ou a descer, apresentando-se o JVGama como comprador. Ou como vendedor, tanto faz. No primeiro caso, o prognóstico é que está a subir. No segundo caso, mais complicado porque mercado em queda não interessa ao negócio do agente, dir-lhe-á reticentemente que está a cair.»

        Não me custa nada acreditar nisso, já que as pessoas que escolhem ser vendedoras se não têm já à partida o perfil de personalidade para agir dessa forma, facilmente o ganham na procura de aumentar a sua competência profissional.
        Mas os relatórios a que o Pedro se refere não são exactamente a mesma coisa. Há instituições que fazem projecções, e elas têm outros incentivos diferentes dos do exemplo apresentado. A Economist, por exemplo, venderá mais por ter uma reputação de acertar do que por sobrestimar sistematicamente a evolução. Nesse caso, a explicação do Pedro Romano é melhor.

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  5. jvgama diz:

    «Pergunte a um agente de imobiliário se o mercado está a subir ou a descer, apresentando-se o JVGama como comprador. Ou como vendedor, tanto faz. No primeiro caso, o prognóstico é que está a subir. No segundo caso, mais complicado porque mercado em queda não interessa ao negócio do agente, dir-lhe-á reticentemente que está a cair.»

    Não me custa nada acreditar nisso, já que as pessoas que escolhem ser vendedoras se não têm já à partida o perfil de personalidade para agir dessa forma, facilmente o ganham na procura de aumentar a sua competência profissional.
    Mas os relatórios a que o Pedro se refere não são exactamente a mesma coisa. Há instituições que fazem projecções, e elas têm outros incentivos diferentes dos do exemplo apresentado. A Economist, por exemplo, venderá mais por ter uma reputação de acertar do que por sobrestimar sistematicamente a evolução. Nesse caso, a explicação do Pedro Romano é melhor.

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  6. ” A Economist, por exemplo, venderá mais por ter uma reputação de acertar do que por sobrestimar sistematicamente a evolução.”

    Os gráficos apresentados não representam as previsões do “Economist”.
    No “Economist” o articulista revela precisamente um erro sistemático que ninguém corrige porque a ninguém interessa corrigir.

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