Irlanda vs. Portugal

O desejo manifestado pela Irlanda em regressar aos mercados pelo seu próprio pé – isto é, sem a rede de segurança de um Programa Cautelar – gerou um debate acalorado em torno dos requisitos que viabilizam esta opção. Um dos argumentos mais repetido é que a Irlanda faz um ajustamento mais duro do que o português, e que foi este espírito voluntarista e espartano que a credibilizou junto dos mercados internacionais. Esta conclusão tem provavelmente um fundo de verdade; mas convém introduzir algumas nuances.

Vários jornais e artigos de opinião sugerem comparações e chegam a números que são, a todos os títulos, aberrantes. Por exemplo, é muito repetido um suposto “corte de despesa” irlandês no valor de quase 30 mil milhões de euros – cerca de 30% do PIB. Fala-se também em ajustamentos da ordem dos 20 pontos percentuais do Produto.

Grande parte desta confusão resulta do facto de se comparar o incomparável. O saldo orçamental irlandês de 2010 está artificialmente empolado pela ajuda à banca, que aparece nas contas como uma medida one-off nesse ano e que, desaparecendo daí em diante, produz uma melhoria automática do défice público. Essa ajuda, por sua vez, implica uma subida brutal da dívida pública. A despesa com juros correspondente faz disparar os gastos e torna difíceis as comparações de despesa corrente ao longo dos vários anos.

Não há formas perfeitas de medir a austeridade, mas há pelo menos alguns métodos que permitem ultrapassar estes inconvenientes. O primeiro é comparar a variação de saldos estruturais. O segundo consiste em somar as medidas de consolidação em volume (para perceber melhor as duas opções, ler este post). Os resultados, para o período 2010-2013, aparecem em baixo.

Sem título

As duas medidas dão resultados sensivelmente semelhantes e mostram que o ajustamento português até terá sido mais acentuado do que o irlandês. Apesar de os cálculos estarem ligeiramente enviesados devido à escolha do ano de base (2011, quando Portugal começou a consolidar mas a Irlanda já levava um ano de austeridade), corrigir este factor não alteraria substancialmente as conclusões: não parece haver razões para acreditar que o Governo irlandês foi mais duro do que o português.

Como se justifica então as condições que a Irlanda consegue obter nas emissões de dívida pública? Provavelmente, é uma questão de expectativas. Os mercados interessam-se com a solvência dos Estados – uma condição que não depende apenas da orientação da política orçamental hoje mas também da orientação esperada que a mesma política orçamental terá amanhã. As medidas de austeridade só são úteis se houver a certeza de que não serão revertidas num período posterior. A condição essencial é a credibilidade.

No caso português, os pacotes de austeridade melhoram a situação orçamental, mas não dão indicações seguras em relação ao futuro da política orçamental. As medidas são apresentadas como uma condição imposta pelos credores para concederem financiamento a Portugal, são permanentemente postas em causa pelas principais forças sociais e políticas e o espectro da renegociação da dívida paira sempre no horizonte. A isto soma-se o facto, bastante problemático, de a consolidação só ter efectivamente começado em 2011, quando a Troika aterrou em Portugal. Tudo isto reforça a percepção dos credores de que a austeridade é feita muito mais por obrigação do que por convicção. Os cortes salariais são muito mais uma medida do nosso desespero do que da nossa credibilidade.

A Irlanda, por sua vez, começou a consolidar as contas logo em 2010, bem antes de pedir ajuda formal ao FMI e à União Europeia. O plano de consolidação tem um apoio substancialmente mais sólido do que o português e não vive na incerteza permanente em relação àquilo que o poder judicial deixará, ou não, ser feito em sede orçamental. O facto de no imaginário colectivo a Irlanda não estar associada ao “estigma latino” também ajudará, reconheça-se, a reforçar esta percepção. Mas as percepções também se promovem, e a Irlanda soube, nos momentos certos, fazer um marketing apropriado.

A lição a retirar daqui não é, portanto, que quanto mais duro e violento for o ajustamento, melhor. Mas sim que dar segurança em relação à política orçamental futura é um activo inestimável. Na ausência de um historial de credibilidade e confiança como o irlandês, esta segurança terá de ser conquistada, à custa de sinais que confirmem o compromisso português: consensos políticos, alterações legislativas (do tipo “amarrar as próprias mãos”) e novos acordos entre os parceiros sociais.

1 comments on “Irlanda vs. Portugal

  1. Lucas Galuxo diz:

    Na Irlanda quem rege a política de austeridade também é quem impediu que as suas medidas tivessem sido aplicadas mais cedo? Pode ser. Pode ser que o facto de o actual poder ter sido eleito através da mentira institucional faça torcer o nariz a quem se dirige de mão estendida.

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