Nas entranhas do PIB

Nos últimos tempos perdi algumas horas a analisar a recuperação económica de Portugal, que começou em 2013 e acelerou na recta final de 2016. Como não sabia muito bem o que procurar, andei a vaguear aleatoriamente pelos quadros das contas nacionais do INE, à espera de alguma coisa que me chamasse a atenção. Depois de algum tempo, lá encontrei uma.

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O quadro de cima desagrega o crescimento do PIB (ou melhor, o crescimento do VAB – que é quase o mesmo mas não levanta problemas de aditividade) nas suas componentes mais básicas de sectores de actividade. O que é que ele nos diz?

Em primeiro lugar, que a recuperação económica ganhou solidez no último trimestre. Se durante 2014 e grande parte de 2016 o crescimento estava concentrado em dois ou três sectores, que faziam as despesas da casa – enquanto outros sectores continuavam a contrair – neste momento quase todas as áreas de actividade parecem estar a remar para o mesmo lado. Este perfil não é novo: em 2015 notou-se mais ou menos a mesma coisa no final do ano, que logo depois foi invertida. Mas é bom ver que a retoma está bem distribuída.

A segunda é que há um sector que se distingue dos outros: o sector assinalado pelas barras azuis claras. Que sector é esse? É a categoria ‘Comércio e reparação de veículos; alojamento e restauração’ (CRVAR). Cerca de metade do crescimento do VAB global é explicado por esta categoria.

Uma das coisas que queremos verificar quando encontramos algo aparentemente grande numa série estatística é o passado distante da série, para despistar a possibilidade de estarmos apenas a olhar para um efeito permanente ao longo do tempo, e portanto pouco relevante. Mas quando alargamos a série não é isso que vemos. O sector em causa tem tido de facto um crescimento notável nos anos recentes, bem para lá daquilo que foi o seu percurso histórico habitual.

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A impressão com que fiquei, ao ver esta séria, foi a de que tudo seria resultado da segunda categoria (“alojamento”), eventualmente como resultado do boom do Turismo e do advento alojamento local.

Mas quando fui às Contas Nacionais anuais do INE, que disponibilizam dados mais finos, não foi isso que encontrei. Entre 2013 e 2014, pelo menos – os últimos anos para os quais há dados – o crescimento vem todo da categoria ‘Comércio por Grosso e a Retalho’. E quando digo ‘todo’ é mesmo ‘todo’: em pouco mais de 600 milhões de euros adicionais de actividade económica, este agregado foi responsável por 650, sinal de que ainda compensou a redução da actividade dos outros sectores.

Haverá alguma explicação para isto? Eu confesso que nem sei muito o que é que suposto o VAB real do Comércio por Grosso e Retalho medir. Consigo perceber a que é que ele corresponde em termos nominais (a margem de intermediação do grossistas ou retalhistas), mas quando se passa para análise a preços constantes a natureza da variável parece-me mais complexa. Significa que os hipermercados estão a vender uma quantidade maior de produtos? Se algum dos leitores já tiver trabalhado no INE, eu teria muito interesse em saber.

18 comments on “Nas entranhas do PIB

  1. Tentando imaginar o que possa significar um aumento do VAB do comércio:

    – um aumento da quantidade dos bens vendidos

    – um aumento da qualidade dos bens vendidos (isto é, se passar a vender três bifes da pá em vez de um significa uma triplicação do VAB, fará sentido que vender um bife da vazia pelo triplo do preço – e proporcionalmente com a mesma margem – em vez de um bife da pá também significa uma triplicação do VAB)

    – um aumento do valor do serviço comercial, em termos de serviço prestado; p.ex., passar a ter um mecanismo para as filas de espera serem mais rápidas, como o sistem de marcar o lugar na fila via app e ir fazer outra coisa (mas parece-me impossivel na prática isto ser contabilizada nas estatísticas)

    Atenção que nunca trabalhei no INE e estou basicamente a inventar.

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    • Também pensei nisso, mas: i) Se for um aumento da quantidade/qualidade de bens vendidos então não teria de haver um aumento concomitante do VAB dos sectores que produzem esses bens? A não ser que seja tudo bens importados, mas parece-me difícil engolir isso; ii) duvido que no caso português haja mecanismos estatísticos suficientemente finos para apurar essas minudências do comércio a retalho.

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  2. Luis diz:

    Terá alguma relação com as alterações fiscais que levaram a um controlo acrescido da facturação das oficinas ? Por um lado, as alterações à facturação/guias de transporte que dificultaram a evasão, por outro o incentivo do benefício fiscal ao cliente final via e-factura terão contribuído para trazer à superfície uma parte da actividade que escapava. O mesmo é válido para a restauração, que também beneficia do efeito da redução do IVA (que na pratica significa facturar mais com o mesmo PVP).

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    • Luís, o que está a acontecer – pelo menos até 2014 – é exactamente o contrário. Isto é, o crescimento vem todo do único sector daquele agregado que o Luís não refere no seu comentário: o comércio por grosso e retalho.

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  3. Já agora, um aumento da margem de lucro do comerciantes teria esse efeito, ou desapareceria na transformação de valores nominais para reais?

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    • Em teoria, acho que a margem de lucro teria de vir associada a um aumento da quantidade real do ‘Valor acrescentado’ do sector, para ter impacto no crescimento real. Mas isso reconduz-nos aos dois pontos que eu levantei: a que é que corresponde exactamente (em teoria) o VAB real dos retalhistas? E a que é que corresponde na prática, de acordo com o método seguido pelo INE?

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      • Eu queria dizer a margem de lucro em proporção das vendas (ou então por unidade, o que vai dar ao mesmo); p.ex., se o preço da água destilada no fabricante baixar mas no hipermercado se mantiver igual, isso conta como um aumento real do VAB?

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      • «Eu queria dizer a margem de lucro em proporção das vendas (ou então por unidade, o que vai dar ao mesmo); p.ex., se o preço da água destilada no fabricante baixar mas no hipermercado se mantiver igual, isso conta como um aumento real do VAB?»

        Pois, não sei. E não sei duas coisas diferentes: não sei se ‘em teoria’ isso ‘devia’ contar como aumento do PIB (parece-me que não, porque está apenas a haver um desvio do excedente de um agente económico para outro) e não sei se ‘na prática’ conta ou não.

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    • “não sei se ‘em teoria’ isso ‘devia’ contar como aumento do PIB (parece-me que não, porque está apenas a haver um desvio do excedente de um agente económico para outro)”

      Não confundir PIB com VAB – mesmo que não deva contar como um aumento do PIB, será que não deve contar como um aumento do VAB do comércio (e uma redução do VAB da indústria)?

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  4. E quais são exatamente os mapas que o Pedro Romano viu, dos tais das Contas Nacionais do INE?

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  5. Então, olhando só para o mapa C.1.1.1. (A38), comparando 2014 com 2015, o comércio (a coluna V do ficheiro excel) tem um aumento de 3,68%, a agricultura de 4,06% e a indústria (coluna C) de 7,53% (imagino que seja estes ramos que produzem os bens à venda no comércio), ou seja, parece-me estar aí o tal aumento concomitante do VAB dos sectores que produzem esses bens; se alguma coisa, o comércio parece ter proporcionalmente crescido menos que os outros.

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    • Miguel, penso já percebi a origem da discrepância. O Miguel está a olhar para o crescimento do VAB nominal. Eu estou a olhar para o *contributo* do crescimento do VAB real para o crescimento do PIB. Ou seja, eu peguei primeiro nos deflatores de cada área, deflacionei os valores nominais para obter os reais e depois vi qual era o sector que mais contribuía para o crescimento desse agregado. Acho que está aí o rato.

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      • Ou seja, se percebo bem, isso quer dizer que os preços subiram mais na agricultura e na industria do que no comércio; e, já agora, o que é o preço (no sentido do deflator) no comércio? Imagino que seja algo relacionado com a margem de lucro e não com o preço final (isto é, se em 2013 eu comprar torradeiras por 15 euros a torradeira e vendê-las a 17 euros, e em 2014 comprar por 16 euros e vender por 19, suponho que o deflator aumente 50%; ou será que aumenta 11,8%?)

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  6. Pois, essa é a questão com que eu comecei. Não faço ideia como é que o INE faz o breakdown volume/preço na questão do comércio. A minha suspeita é que esse breakdown é altamente sensível à metodologia concreta que é seguida, e daí ter dificuldade em interpretar este ‘contributo’.

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