Boa parte do raciocínio dos posts anteriores assentou na desagregação do PIB em subcomponentes mais pequenas – emprego, produtividade, demografia, etc. Apesar de haver alguma macroeconomia envolvida, a maior parte dos dados apresentados, e das inferências produzidas, não exigiam qualquer econometria: bastava conhecer e transformar algumas identidades contabilísticas fundamentais.
Para ilustrar um pouco melhor o que estava a tentar dizer, apresento de seguida uma ‘decomposição’ da evolução do PIB em termos de vários contributos fundamentais – que podem, de forma mais ou menos rigorosa, ser identificados com alguns dos choques que referi anteriormente.
- O crescimento do PIB é igual à produtividade multiplicada pelo emprego. O crescimento da produtividade, por sua vez, pode ser ‘partido’ em duas componentes: o crescimento da produtividade de um país de referência, e a diferença entre o ‘nosso’ crescimento e ‘esse’ crescimento. O objectivo desta separação é perceber se Portugal está a ficar mais produtivo porque as economias mais avançadas estão também a ficar mais produtivas (“efeito Alemanha”, porque é a referência que usei), ou se está a convergir (ou divergir) desse benchmark – chamemos-lhe o ‘efeito catching up’.
- Já a evolução do emprego pode ser cindida em duas partículas: a evolução da demografia (que neste esquema é aproximada pela evolução da ‘população em idade activa’) e a evolução do emprego que não é explicada por esta primeira parcela. Eu chamei-lhe emprego por conveniência, mas na verdade o que está aqui em causa é um enorme resíduo, que agrega várias pequenas variáveis de natureza diferentes: choques de oferta, choques de procura, etc., etc. Ainda assim, a separação é útil.
Eu fui fazendo estes cálculos de forma parcelar antes de escrever os posts anteriores, mas ao tentar integrar tudo num único conjunto tive de proceder a alguns ajustamentos. Por exemplo, as contas da produtividade baseavam-se nas Contas Nacionais e no Inquérito ao Emprego, uma fonte que não estava acessível de forma imediata para calcular a produtividade alemã. A solução foi usar outra fonte (full-time equivalents da AMECO), harmonizando tudo e possibilitando comparações.
Mas ao passar de uma fonte para outra perdi também acesso a outros conceitos que não estão disponíveis nas Contas Nacionais da AMECO (como população em idade activa). A solução foi usar algumas hipóteses auxiliares para tentar ‘calcular’ esses conceitos dentro do quadro conceptual das Contas Nacionais, e rezar para que as conclusões se mantivessem1.
As preces foram parcialmente atendidas: no final a coisa bateu mais ou menos certo, embora com algumas qualificações aqui e ali. O resultado final foi este.
O quadro global é confuso e revela pouca informação. Ao agregarmos a coisa por períodos é possível tornar o gráfico mais legível.
Esta divisão mostra como o grande crescimento dos anos 60 e 70 se deveu em boa medida à produtividade, fosse por que os países do pelotão da frente estavam a caminhar a passos largos (barras azuis), fosse porque a própria economia nacional estava a conseguir encurtar a distância face aos líderes, medida pelas barras laranjas.
Isto não tem relevância nenhuma para a Década Perdida. Era só uma leitura acompanhada para se perceber a ideia da coisa. Mas com estes dados é possível calcular contra-factuais e ilustrar a importância relativa de alguns dos choques que afectaram a economia portuguesa ao longo do período 2000-2007.
Por exemplo, podemos isolar o efeito catching up para mostrar em que medida é que a produtividade portuguesa tem convergido com a alemã ao longo dos anos. Dada a enorme volatilidade destes dados, é conveniente apresentá-los com alguma média móvel para suavizar as variações bruscas.
A imagem mostra duas das ideias que avancei aqui: primeiro, os problemas de produtividade nacional datam do início dos anos 90, e não do período do euro: é a partir de 1994 que o ritmo de convergência cai a pique. E, segundo, a partir da segunda metade dos anos 2000 este movimento parece começar a inverter-se. Os valores e datas não são exactamente os mesmos que avancei nos posts iniciais, devido à alteração de fontes que discuti em cima, mas a mensagem central parece ser preservada.
Também podemos usar esta metodologia para perceber ‘quanto teria crescido a economia portuguesa durante a Década Perdida sem os ventos adversos da demografia’ (o que neste caso concreto corresponde a ‘trancar’ a evolução demográfica no valor médio da década de 90). E o resultado é:
Novamente, podem reparar que os valores não são exactamente iguais aos que aparecem aqui, mas ainda assim as diferenças são não são substanciais. Em média, o crescimento do PIB durante o período 2001-2007 passa de 1,2 para 1,5%, com as diferenças a concentrarem-se sobretudo na fase mais tardia deste período. Sem este efeito, o PIB poderia ter crescido perto de 3% em 2007, o que é uma taxa bastante apreciável.
Este esquema tem algumas limitações. Apesar de permitir distinguir a importância relativa de elementos como a produtividade alheia, a capacidade de convergência da economia (catching up) e a demografia, é silenciosa em relação a todos os outros factores. Que parte do abrandamento resulta de choques de procura? Em que medida é que reformas laborais que afectem a decisão de participar (ou não) no mercado de trabalho influenciam a evolução da população activa? Tudo isto é incluído no enorme resíduo a que dei o nome de “Emprego”, mas que na verdade é uma enorme caixa negra.
Ainda assim, e apesar de já termos espremido deste esquema tudo aquilo que havia a espremer no que diz respeito à análise de 2000-2007, podemos renovar-lhe o prazo de validade se o usarmos para analisar o período mais recente. Sai um pouco fora do âmbito destes posts, mas as conclusões são tão interessantes que se justifica um ligeiro desvio.
Por exemplo, sugeri há umas semanas que a retoma actual representa um salutar, mas ainda assim trivial, regresso ao mercado de trabalho da população que antes tinha perdido o emprego. Dentro do esquema proposto acima, isso devia reflectir-se contributo acentuadamente negativo do factor ‘emprego’ durante a crise, compensado por um contributo simétrico no período seguinte. O quadro seguinte põe em evidência este contributo, agregando todos os outros para tornar a conclusão mais clara.
A história dos últimos oito anos, interpretada à luz da imagem de cima, é muito fácil de explicar. Entre 2009 e 2013, a economia passa por um período intenso de eliminação de empregos. Mas a partir do momento em que ‘bate’ no fundo, o movimento inverte-se e enorme destruição de postos de trabalho dá lugar a uma igualmente enorme criação de empregos.
Mais interessante ainda é a influência cresce que a demografia tem nos números do crescimento económico. Mostrei ali em cima como esse efeito já se faz sentir, mesmo que de forma mitigada, desde 2002. Mas qual é a dimensão deste contributo nos anos mais recentes, quando a emigração disparou?
Uma forma de responder a esta questão é recalcular o crescimento do PIB entre 2008 e 2016, retirando o contributo da demografia e fixando-o no valor médio do período anterior (à semelhança do que fiz lá em cima para 2001-2007). Obviamente, o cálculo assume que a demografia é completamente exógena e que quaisquer variações na sua taxa de crescimento se traduziriam mecanicamente num idêntico crescimento do emprego e do PIB, mas em todo o caso as hipóteses parece-me mais aceitáveis do que a alternativa muitas vezes sugerida (que há um ‘número fixo de empregos’, e que os movimentos demográficos são meras reacções a este número).
As diferenças são abissais. Em 2014, por exemplo, o crescimento do PIB seria de 2,2%, e não de 0,9%. Em 2016, a diferença seria de um ponto percentual. Sem as variações demográficas, o crescimento médio do PIB durante a ‘fase de recuperação’ (2014-2016) seria de 2,4, e não de 1,2%. Estamos a falar de metade do crescimento registado (!).
Penso que a lupa à luz da qual avaliamos os dados ‘agregados’ actuais não pode ser a mesma que usamos para avaliar os dados do passado, porque entre um período e o outro há enormes diferenças demográficas que deviam ser tidas em conta. Fará sentido comparar o crescimento económico de um país africano em expansão demográfica com o crescimento de um país como Japão, onde a população está a mingar? Se não faz – e claro que não faz – então também não devíamos ignorar essa subtileza em comparações longitudinais.
Já agora, esta proposta não é nova. O Banco de Portugal tem vindo a alertar para este problema nos últimos boletins económicos, onde complementa sempre a análise ‘bruta’ do crescimento com uma análise do crescimento per capita (vejam , por exemplo, a caixa 5.1 deste boletim).