Este post não vem na sequência de nenhum problema premente em particular – aliás, com a inflação nos 0,2%, duvido que haja muita gente a perder o sono com isto. Mas a propósito dos 30 anos da adesão de Portugal à CEE falou-se imenso acerca da inflação em 1986 (20%) e de como hoje em dia estamos muito melhor por causa da inflação “perto, mas abaixo” dos 2% garantida pelo BCE.
O que é provavelmente verdade. Mas não exactamente pelas razões que se costuma invocar.
A forma convencional de ver a inflação é como um imposto não legislado. Se os preços sobem muito, a inflação é alta e perdemos poder de compra. Se os preços não sobem, ou sobem menos, a inflação é baixa e o poder de compra é preservado. Do ponto de vista dos consumidores, o processo parece simples e intutivo. A inflação é obviamente uma coisa má.
Mas se olharmos para o mesmo fenómeno do ponto de vista dos produtores, a situação parece diferente. Na verdade, a situação parece exactamente simétrica: cada euro que a inflação ‘rouba’ ao poder de compra dos consumidores é um euro que a inflação ‘dá’ aos produtores, que assim aumentam os seus lucros. E vendo as coisas deste prisma a inflação parece menos um mecanismo de destruição de poder de compra e mais um mecanismo de transferência de poder de compra.
Por outro lado, há algo nesta história que não parece encaixar. Afinal de contas, a inflação foi quase sempre positiva ao longo das últimas décadas. Se ela está mesmo a ‘engolir’ os salários dos consumidores – e a engordar os lucros das empresas – há tanto tempo, já não devia haver muitos trabalhadores vivos por aí. De resto, os dados mostram que o peso dos salários no PIB costuma rondar os 2/3 ao longo do tempo, com oscilações razoáveis ao longo de períodos curtos mas sem grandes variações ‘seculares’ (na verdade, esta estabilidade é tão grande que até foi considerada como um dos principais factos estilizados do crescimento económico por um economista pioneiro deste ramo).
A solução para o puzzle é simples1. Numa economia, todos somos simultaneamente consumidores e produtores. A subida do nível geral de preços – e é esta a definição de inflação – significa que estamos a pagar mais para consumir bens, mas também significa que estamos a receber mais para os vender. No final, o saldo é rigorosamente zero: estamos todos a produzir e a consumir as mesmas quantidades. Só mudou mesmo a unidade de conta – o número na etiqueta associada a cada bem -, que ficou maior.
Vejamos as coisas de outra forma. Nos anos 80, a inflação rondava os 20%. Hoje em dia, circula sempre, ou quase sempre, abaixo dos 2%. Segundo a visão ingénua da inflação, o poder de compra deveria ter crescido imenso a partir daí, à medida que os mesmos salários nominais eram corroídos por um ‘imposto inflacionário’ cada vez menor. Mas a ‘visão convencional’ da inflação suge outro resultado: segundo esta perspectiva, à medida que a inflação fosse baixando os salários nominais simplesmente seriam actualizados a um ritmo inferior.
Agora imaginem o que aconteceu.
Calma. Isto não significa que a inflação não possa, por vezes, actuar como um imposto. Só nos obriga a restringir o ‘público-alvo’ deste imposto. E este público-alvo são todos os agentes que se limitam a consumir, ‘pagando o custo’ dos preços mais altos, sem contudo terem um papel activo no processo produtivo (que lhes permite, ao fim e ao cabo, beneficiar de preços mais altos).
Quem são estes agentes? Basicamente, estamos a a falar de dois grupos: pensionistas, que têm uma pensão fixa; e detentores de títulos de dívida de rendimento fixo (obrigações, por exemplo).
Mas mesmo aqui é preciso introduzir algumas ressalvas. Tomemos o caso dos pensionistas. É verdade que um surto de inflação pode – se nada for feito – diminuir o poder de compra de uma pensão fixa. Por outro lado, é sempre possível actualizar as pensões conforme a inflação. A partir do momento em que a inflação faz subir o volume da receita fiscal, é perfeitamente viável ‘distribuir’ este valor. Sim, perde-se poder de compra ‘se nada for feito‘ – mas não há nenhuma razão para que nada seja feito. E, de facto, muitos sistemas de pensionistas já incluem explicitamente alguma tipo de indexação à inflação.
No caso dos obrigacionistas, a situação é mais delicada, pois não é possível ajustar a taxa de juro cobrada em cada título de dívida já emitido (daí o nome: rendimento fixo…) a uma inflação mais alta. Mas é sempre possível cobrar mais juros nas novas emissões de dívida, protegendo-se assim os credores da inflação mais alta. Não é por acaso que as taxas de juro durante os anos 80 eram muito mais altas do os actuais – sendo a inflação mais alta, os investidores exigiam compensações igualmente mais elevadas. Já na altura era difícil taxar o capital, fosse pela forma habitual, fosse pela inflação.
Isto é: na prática, o a possibilidade de impor um “imposto inflacionário” aos credores depende de duas coisas – o grau de previsibilidade da inflação (se for completamente previsível, as taxas de juro já irão incorporar esse factor) e a maturidade da dívida actual (quanto mais longa for, mais tempo ficará o credor preso num negócio mal feito2). O ‘imposto real’ é muito mais baixo do o valor efectivo da inflação – e, nalguns casos, ele até será mais bem descrito como sendo um subsídio (basta que a inflação seja mais baixa do que a inflação esperada).
Sei o que o leitor provavelmente está a pensar. Toda a gente, ou quase toda a gente, se queixa da inflação. A percepção generalizada é que a inflação age mesmo como um imposto. Poucas pessoas a encaram como o factor quase-nulo que acabei de descrever. Será que está toda a gente assim tão errada?
Não tenho uma resposta convincente (embora tenha algumas boas sugestões de leitura). O que posso dizer é que nos anos 90 essa questão inspirou um conhecido inquérito de Robert Schiller, com o original nome de… Why do people dislike inflation?. Uma das principais conclusões do estudo era precisamente que economistas e leigos divergem imenso na forma como vêem este fenómeno. Todos, ou quase todos, acham que a inflação não é coisa boa. Mas as razões que invocam são radicalmente diferentes.
A maior parte dos economistas não vê a inflação como erosão do poder de compra. Habitualmente, imputam-lhe custos muito mais subtis, com nomes tão particulares como menu costs, allocative efficiency, shoe lether costs e por aí fora. E estes custos não são apenas exóticos: são também muito, muito mais pequenos do que aquilo que seríamos levados a supor, tendo em conta a preocupação que ela costuma inspirar no debate público.
Talvez o que verdadeiramente incomode na inflação seja a incerteza spbre o seu valor, e provavelmente quanto mais alta a inflação, também mais oscilante é – penso que é mais normal uma inflação de 20% andar entre os 18% e os 22% do que uma inflação de 0,2% andar entre os -1,8% e os 2,2%.
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Ao nível dos bancos centrais, acho que sim: um dos problemas da inflação alta é que ela é também variável e, portanto, imprevisível. Mas duvido que a maior parte dos leigos preferisse ‘ver os preços a crescer 20% todos os anos’ a ‘ver os preços ora cair 10%, ora cair 2%’ (fiz agora a sondagem em casa, e os dois inquiridos deram a resposta prevista).
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Pedro,
Concordo com o geral do texto, mas gostaria de fazer só uma ressalva.
Nós somos, “em média” tão produtores como consumidores. Mas no que diz respeito a possuir activos afectados negativamente pela inflação (enquanto credor, ou simplesmente enquanto detentor de moeda) e no que diz respeito a possuir passivos afectados positivamente pela inflação (as dívidas que se tornam menores em valor absoluto), o balanço é, em média, negativo (porque pagando as dívidas todas ainda sobra moeda, que é afectada negativamente). Nesse sentido existe algum grau de tributação na inflação, em média. Há um ligeiro imposto.
Posto isto, os efeitos mais significativos são os que referiste, este efeito é mesmo discreto, e se a memória não me falha 4% como meta para a inflação até seria um valor mais amigo do crescimento do que os 2% que o BCE tem como alvo.
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João, acho que esse efeito residual é o efeito de senhoriagem. Que na prática é capturado pelo Banco Central, que o re-passa ao Estado. Por exemplo, os euros criados pelo BCE e emprestados aos bancos, via papel-moeda ou creditação de contas, rendem juros e permitem um lucro do qual se apropriam os seus accionistas [Bancos Centrais nacionais e, consequentemente, os Estados].
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