Os erros do programa grego (I)

Todos sabemos que o programa de resgate da Grécia não correu bem. Não correu bem para a Grécia, porque os custos económicos e sociais do programa foram muito superiores ao que se esperava; não correu bem para os credores, porque acabaram mesmo por ter de suportar perdas no âmbito da reestruturação de 2012; e não correu bem para a Europa e para o BCE, que tinham apostado tudo em circunscrever a crise da dívida à Grécia e acabaram com mais quatro países no colo à beira da bancarrota.

Mas até que ponto é que os erros da Troika resultaram de incompetência grosseira? É que, apesar de ser óbvio que o programa teve erros – alguns dos quais foram reconhecidos publicamente -, parece-me menos claro que estes erros fossem fáceis de detectar na altura em que o programa foi desenhado. Se for esse o caso, os erros da Troika só parecem hoje óbvios e grosseiros porque temos o benefício de olhar retrospectivamente para o caso.

Vejamos o programa pelos olhos da Grécia. Sem dúvida que deixa poucas saudades. O PIB, que devia ter caído apenas em 2010 e 2011, recuperando gradualmente a partir daí, afundou mais de 25% em termos acumulados, e estava em 2014 a 78% do nível registado em 2009. Do desemprego é melhor nem falar.

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O que é que correu mal aqui? Ou, vendo as coisas de outro ângulo, como se justificam estes erros de previsão? Alguns economistas apontam para factores como a debilidade do sector exportador grego, ou a incapacidade do Governo de implementar reformas estruturais. Mas nenhuma das explicações se dá particularmente bem quando confrontada com os dados (ver aqui, aqui e aqui).

Felizmente, não é preciso tirar coelhos da cartola para explicar o colapso da economia grega. Bastam dois elementos para fazer uma boa história: contas mal feitas e austeridade redobrada.

A parte das contas mal feitas é simples de explicar. Até 2008, os modelos macroeconómicos utilizados pelo FMI assentavam, implícita ou explicitamente, em multiplicadores da ordem dos 0,5 (pelo menos, segundo o próprio director de investigação do Fundo). Mas a partir de 2012 começou a haver sinais de que este multiplicador podia, na verdade, estar próximo de um. Muita polémica depois, parece ter emergido um consenso: sim, os multiplicadores foram mesmo subestimados.

Já a segunda parte – a “austeridade redobrada” – não quer dizer consolidação “excessiva”. Designa apenas um facto trivial: a dose de austeridade foi sucessivamente reforçada com o passar do tempo. Como a consolidação afecta o crescimento, o reforço das medidas de consolidação acabou inevitavelmente por implicar uma recessão mais prolongada e mais profunda.

Fazendo alguns cálculos é possível demonstrar como estes dois factores chegam para explicar uma boa parte dos erros de previsão da Troika. O que fiz na imagem de baixo foi, partindo do “cenário inicial” da Troika para o PIB, construir três cenários contrafactuais: i) um em que o multiplicador da austeridade inicialmente programada é aumentado, de 0,5 para um; ii) outro em que mantenho o multiplicador em 0,5 mas reforço a dose de austeridade, para ela se assemelhar à dose efectivamente implementada; iii) e finalmente um terceiro em que conjugo ambos os factores1.

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O que nos diz esta imagem? De forma simplificada, que grande parte dos erros de previsão da Troika são apenas e só erros de previsão do impacto da política orçamental. Isto é: bastaria que a Troika tivesse antecipado correctamente o verdadeiro volume de medidas a exigir à Grécia, e que tivesse utilizado um multiplicador mais razoável (1, em vez de 0,5) para chegar prever que o PIB se comportaria como a linha vermelha tracejada. A previsão não teria sido perfeita, mas já dava para antecipar a depressão económica no horizonte.

E isto obriga-nos a colocar outra questão: em que medida é que estes erros de previsão eram evitáveis?

O erro de subestimação dos multiplicadores gerou muita indignação, mas é certamente compreensível. A verdade é que não havia, até 2008, grande investigação empírica neste domínio, com diferentes estudos a apontarem para resultados muito diferentes. Os multiplicadores eram geralmente positivos, mas entre 0,1 e 1,5 havia muito por onde escolher. Tendo isto em conta, um valor de 0,5 não parece algo descabido.

É verdade que houve quem, em 2009, alertasse para as circunstâncias excepcionais que podiam levar a multiplicadores elevados. Estes alertas, porém, resultavam muito mais das propriedades de alguns modelos altamente teóricos do que da evidência empírica conhecida na altura. Os modelos teóricos não têm problema nenhum, mas dá-se a estranha coincidência de as pessoas para quem os erros da Troika são mais crassos e imperdoáveis serem, por norma, as mesmas pessoas que mais problemas levantam à utilização destes modelos em economia.

A verdade é que o erro do multiplicador acabou por se revelar um enorme “pecado original”. Não só agudizou as perspectivas económicas da Grécia, como levou ao falhanço das metas orçamentais (por via dos estabilizadores automáticos); e o falhanço das metas, por sua vez, obrigou a Troika a aumentar a dose da austeridade para tentar recuperar pelo menos algum do caminho perdido, o que voltou novamente a arrastar a economia para baixo.

Pelo meio aconteceram outras coisas, como o aparecimento de dívidas que ainda não tinham sido reconhecidas e de buracos no sector financeiro. O efeito foi, porém, o mesmo: uma degradação imprevista das contas públicas e, consequentemente, um reforço significativo das medidas de consolidação para “tapar os buracos”.

No calor da crise do euro pode ter sido difícil reconhecer estas questões e perceber as implicações práticas de cada uma. Mas até que ponto é que esta desculpa continuava a ser válida em 2013, depois de tanta tinta ser perdida a discutir precisamente estes temas?

Provavelmente, foi aqui que os constrangimentos políticos entraram. Num mundo ideal, a percepção de que os multiplicadores estavam ser subestimado teria levado a uma menor exigência de medidas de austeridade, relegando a consolidação para um período onde as vacas estivessem mais gordas – o less now, more later de Blanchard. No mundo real, porém, é difícil fazer estas interpretações cuidadas e matizadas. E, quando o FMI publicou o seu famoso estudo sobre multiplicadores, os jornais da periferia encheram-se de manchetes acerca do “erro do FMI”, do “mea culpa de Lagarde” ou da “esquizofrenia de Blanchard”.

O FMI ainda tentou emendar a mão, e partir daí passou a ter muito mais cuidado. Blanchard, por exemplo, passou a deixar bem claro que a opção de “modular” a austeridade só estava em cima da mesa para quem não tinha restrições de financiamento. Mas o mal estava feito: para todos os efeitos, no imaginário popular o FMI tinha provado que a austeridade “estava errada” e que era preciso “invertar a marcha”. O insight do FMI, que sustentava uma modulação na velocidade da consolidação passou rapidamente a ser visto como um ataque intelectual à consolidação.

No meio de tudo isto, não é de estranhar que a Comissão Europeia tenha resistido a qualquer mudança de percurso. Aos seus olhos, qualquer “admissão de erro” podia rapidamente ser lida em muitos países como um sinal de que a consolidação orçamental era contraproducente, e implicar assim a perda de controlo da situação. A inflexibilidade europeia terá sido um exemplo claro de path-dependancy: depois de se escolher um caminho, os custos de mudar de caminho eram tão altos que obrigavam todos a continuar em frente.

Com isto não estou a tentar ilibar ninguém, nem a sugerir que não houve erros provocados por falta de visão ou genuína estupidez. A incapacidade da Europa em facilitar a vida à Grécia do PASOK/Nova Democracia, em meados de 2014, parece-me claramente um erro desse género. Mas penso que, no geral, os principais “erros” que hoje constatamos são muito menos óbvios do que tendemos tendência para acreditar.

1 Estas simulações não são difíceis de fazer. O FMI tem um modelo geral para analisar estas questões aqui.

18 comments on “Os erros do programa grego (I)

  1. ooo diz:

    Mencionar o paper do Christiano, Eichenbaum e Rebelo para defender que os multiplicadores seriam mais elevados no caso da Grécia é, no mínimo, estar a causar ruído na discussão daquilo que deviria ser a política fiscal. Relembro que o paper do Christiano, Eichenbaum e Rebelo aplica-se para uma situação de armadilha de liquidez em que o governo apresenta credibilidade para voltar a pagar a sua dívida, isto é, procurava analisar a situação económica dos EUA durante a recessão de 2008. Situação completamente oposta à da Grécia onde nem as taxas de juro estavam baixas, nem o governo tinha qualquer credibilidade.

    Sobre a história dos multiplicadores, acho que é muito mais interessante começar-se a pensar sobre as condições de crédito que permitem a um governo carregar na despesa pública e já agora sobre os papers que começam a aparecer que indicam que esses multiplicadores são geralmente muito baixos e até negativos quando um país se encontra numa crise financeira (em contraste com uma recessão normal) ou para uma economia emergente (em contraste com uma desenvolvida – e daqui acrescento que a Grécia tem uma economia com características mais próximas de um emergente).

    Da conclusão da meta-análise – o que quer que isso seja – sobre o baixo impacto da política de impostos na actividade económica é pouco ou mesmo nada informativo. O consenso actual entre os economista é que a política de impostos pode ser altamente perniciosa se esses impostos forem altamente perniciosos. Aliás, papers recentes publicados em prestigiadas revistas da especialidade até indicam que uma grande parte do afundamento observado na grande depressão são explicados precisamente pela política desastrosa de impostos da administração do FDR e o seu efeito na expectativas dos agentes económicos. Reconhecendo isso mesmo, o FMI terá tentado estabelecer uma regra de 2/3 despesa, 1/3 receitas e na parte das receitas concentrá-las em IVA e TSUs.

    Finalmente acho que os factores políticos não devem ser desconsiderados como irrelevantes. Tal como aconteceu na Argentina, 10 anos antes, foram as guerras de atrito político que, lentamente, empurraram a economia deles para o fosso com todos os seus avanços e recuos que também duraram 3 anos.

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    • ooo,

      O propósito da meta-análise é ultrapassar as discussões intermináveis que se geram sempre que alguém encontra “um estudo que mostra que”. E a conclusão que eu salientaria não é a diferença entre o impacto da despesa e da receita, mas sim a diferença que a posição cíclica da economia tem no impacto económico da consolidação.

      Quanto ao paper de Rebelo, talvez a referência não seja a mais apropriada.

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      • ooo diz:

        As meta-análises ponderam de igual forma uma grande maioria de papers com problemas metodológicos graves, publicados em revistas de impacto menor, com uma minoria de papers de elevada qualidade e altamente reconhecidos pela profissão. Por outras palavras, as meta-análises por si só já têm problemas de sobra. Daí não serem muito valorizadas na profissão.

        E quando os argumentos empíricos são fracos, o melhor é mesmo basearmo-nos numa boa história com uma intuição económica sólida. No caso da sua discussão, mais uma vez reitero, a ênfase não deve ser colocada na posição cíclica da economia, mas na capacidade de um governo “estimular a procura” através do recurso ao endividamento. Exemplo concreto: no caso de Portugal, não me parece sensível acreditarmos que, em 2011, depois de 2 anos onde a nossa divida aumentou 50B de euros, com a economia em recessão, um défice orçamental do ano anterior de 11%, taxas de juro a ultrapassar os 8%, um aumento da despesa pública ou diminuição de impostos fosse ter um impacto muito grande na economia – do tipo multiplicador 1 ou 1.5 que nos está a tentar convencer no seu artigo. A razão: porque tal política seria certamente interpretada pelos credores internacionais como despesista, implicando uma subida ainda mais intensa dos juros da dívida pública, com implicações semelhantes para o crédito das empresas e famílias. A acrescer a esta contracção do crédito dos privados, juntar-se-ia uma restrição financeira do estado que, para financiar partes inelásticas da despesa pública sem recurso a endividamento, ver-se-ia obrigado a subir impostos – muitos dos quais distorcionários. Mas perante tal expectativa de eventos, certamente que os privados começariam já a ajustar os seus padrões com menor consumo, investimento, e utilização de recursos. Para sintetizar: um aumento da despesa pública, provocaria uma diminuição do produto – uma história plausível para um multiplicador negativo.

        A discussão sobre os multiplicadores elevados de 2009/2010 que os modelos DSGEs estavam a gerar em situações de ‘armadilha de liquidez’ não se aplicam no nosso ou no caso da Grécia pelo simples facto desses modelos ignorarem risco da dívida soberana (ou os que não ignoram são muito mas mesmo muito fraquinhos na sua inclusão).

        Eu diria antes que a queda superior à previsão do produto se ficou principalmente a dever à inadequação dos instrumentos de análise do FMI em interpretar as consequências de uma crise de dívida soberana, nomeadamente na contracção de crédito. Isto para além de algumas medidas não terem sido aplicadas como estavam inicialmente previstas: o frontload de redução da despesa e a desvalorização fiscal (bem sei que era muito pouco, e também sei que nunca teria a magnitude de uma desvalorização cambial, mas seria certamente melhor que uma subida de impostos marginais sobre o trabalho ou sobre o capital). E mais uma vez, factores políticos em democracias fracas como a nossa também não são facilmente antevistas – também nós tivemos uma boa dose de ‘guerras de atrito’ entre diferentes instituições ou grupos de interesses.

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      • Eu não conheço os tais papers especificos que estão a falar, mas no caso especifico da “armadilha da liquidez”, será que não poderemos considerar que países que tenham cambios fixos e livre circulação de capitais (e, por maioria de razão, países integrados em moedas únicas) estão permanentemente em “armadilha da liquidez”, seja qual for a sua situação macroeconómica?

        A respeito do mecanismo que o ooo sugere para multiplicadores negativos, isso não estaria dependente de estarmos a falar de politicas unilaterais do governo grego ou de politicas aprovadas num plano de auxilio? No segundo caso, suponho que os efeitos sobre o risco do país seriam menores.

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      • ooo,

        O mecanismo de que está a falar (inclusão de prémio de risco) estava inerte na Grécia. Recordo que o custo de financiamento estava fixado exogenamente pelo programa de ajuda, o que arrasa pela base a possibilidade de haver efeitos de feedback positivo como os que descreve, como lembra o Miguel Madeira.

        Podemos sempre contrar histórias mais elaboradas, que envolvam o contágio das yields das OT’s aos bancos, que daí passam para os custos de financiamento das empresas, etc. Mas i) os estudo disponíveis não mostram efeitos desse genero – pelo contrário, sugerem que os mercados podem reagir de forma “esquiofrénica” a medidas de consolidação; ii) os custos de financiamento do sector privado não evoluíram dessa forma. Por exemplo, as taxas de juro dos empréstimos às empresas gregas eram mais ou menos semelhantes às das empresas portuguesas.

        Ou seja, em termos puramente financeiros a economia grega não estava pior do que Portugal. Os juros cobrados ao soberano até eram mais altos e os juros cobrados às empresas eram semelhantes. Se a recessão não foi causada pela consolidação, então temos uma contracção de 20% do PIB por explicar. É muita “matéria negra” para varrer debaixo do tapete.

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      • ooo diz:

        O risco que eu descrevo é inerte? Claro, e no final do programa não é preciso fazer rollover da dívida actual. Mas a partir do momento em que considera como explicação para da crise a ‘esquizofrenia’ dos mercados, então já não há nada para explicar. É o tipo de explicação que explica tudo.

        E contracções de 10%-20% do PIB ou do emprego não são de todo incomuns nas experiências de economias emergentes que passaram por crises financeiras semelhantes. O que parece que lhe está a escapar é a relação de causalidade: a austeridade não é a causa da crise grega, mas uma consequência. Já sobre o tipo de austeridade, temos diferentes formas de o fazer. Umas mais inteligentes que outras. O última proposta de Tsipras e seus colegas é um bom exemplo de uma má escolha do tipo de austeridade: subida de impostos sobre grandes empresas e indivíduos mais produtivos. Já não bastava a contracção do crédito, e ainda temos uns ditos governantes a querer desincentivar quaisquer decisões de investimento ou esforço. E depois ainda se admiram que não conseguem atingir as metas de receitas.

        É tudo muito estúpido e é a minha opinião que explica muito da depressão que os gregos enfrentam.

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      • ooo diz:

        Aliás, a Grécia já está condenada a partir do momento em que se chegou à conclusão que o governo grego actual ia repudiar a sua dívida. O governo grego já está a suspender pagamentos a fornecedores – assim o défice até fica com melhor figura – enquanto as famílias e empresas tentam açambarcar o máximo de euros que podem. Percebendo esta dinâmica, os parceiros europeus não querem fazer mais transferências. E, ao que parece, todas as possibilidades de restruturação da dívida de credores oficiais por forma a quebrar este ciclo foi afastada. Entretanto a economia grega está suspensa e apenas sobra um governo de incompetentes/xenófobos/demagógicos a gritar que são de confiança e a culpar a austeridade!

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      • ooo,

        Nos modelos que menciona, a consolidação tem um multiplicador baixo porque o efeito negativo na procura é compensado por uma redução no prêmio de risco. Mas se o prémio de risco já é zero (por decisão administrativa), não vejo como é que esse efeito se pode dar.

        Quer dizer, consigo imaginar alguns mecanismos heterodoxos através dos quais o efeito pode ressuscitar por portas travessas, mas são mecanismos que não aparecem no tipo de modelos a que faz referência.

        Quanto às recessões de 10 ou 20%, eu estou ciente de que acontecem; mas normalmente há um mecanismo claro por detrás dessa contracção: falência bancária, derrocada cambial, subida dos juros, etc. Esses mecanismos deixam um traço que podemos rastrear – por exemplo, o câmbio. Mas no caso da Grécia esse traço está inexistente. Por muito que procuremos, não vamos encontrar condições financeiras que justifiquem uma recessão daquele tamanho. Mas se quiser avançar alguma possibilidade, sou todo ouvidos.

        Em relação à estratégia do Syriza, acho que temos a mesma opinião.

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      • ooo diz:

        Eu já não tenho muito mais tempo para responder, vou tentar ser sintético.

        Comecemos por colocar os modelos de lado. O prémio de risco de incumprimento não está fixado administrativamente porque 3 anos volvidos, no final do programa, a dívida contraída tem de voltar a ser paga com novos empréstimos. No caso da Grécia vamos supor que, devido a uma situação de falência eminente, os credores internacionais emprestam 100B a uma taxa 0% que tem de ser pago daqui a 3 anos. Se durante esse tempo nada for feito para alterar as condições de insolvência do governo, isto é manutenção do status quo, então o incumprimento só estará a ser adiado. Mas se é assim, toda a dívida com maturidade superior a 3 anos começa a ser transaccionada com desconto, por outras palavras, as txs de juro do soberano sobem; por arrasto também hão-de subir as taxas de juro dos privados; a expectativa futura de uma contracção futura, potencialmente financiada com impostos distorcionários, implicará uma poupança imediata dos agentes privados com reduções de consumo e investimento; isto gera uma recessão imediata, e já todos conhecemos esta história.

        De volta aos modelos. Implicações deste género são imediatas de um modelo neoclássico com umas pequenas alterações: mercados incompletos com responsabilidade limitada – o paper clássico é Eaton e Gersovitz 1982, com aplicações recentes em Arellano 2008 e Chatterjee Eyigungor 2012 – e impostos distorcionários – o paper clássico é Lucas e Stokey 1982. A ideia é que a política fiscal óptima – do tipo Keynesiana contra-cíclica que minimize as distorções ao longo do ciclo de negócios – é revertida quando a dívida é não-contingente e pode ser repudiada, isto é, pode as condições de acesso ao crédito são endógenas. Isto significa que a ‘austeridade’, chamemo-lhe política fiscal pró-cíclica, é uma consequência e não uma causa de nada. Eu vejo o paper do Mendoza e Vegh 2012 ou do Vegh e Vuletin 2012 (este último não publicado) como consistentes com esta história.

        Sobre a recessão da Grécia, na minha opinião, há vários factores fundamentais que quando conjugados a explicam: uma crise de dívida soberana (Mendoza e Yue 2012, Bi 2012, Bocola 2015), política fiscal desastrosa (Mcgrattan 2012), incerteza prolongada (Bloom 2009), economia relativamente fechada com um sector exportador fraco (Calvo, Izquirdo, Talvi 2003 – não publicado), e contracção de crédito (Holmstrom e Tirole 1997).

        O facto dos modelos DSGE serem desadequados para a inclusão de risco de dívida soberana prende-se com questões mais técnicas (essencialmente estes modelos são computados através de aproximações lineares de condições de primeira ordem sobre elaborações do neoclassical growth model – este método permite computar policy functions mas não value functions; daí, qualquer contracto ou preço que dependa de uma função de valor, por exemplo o valor de pagar a dívida ou o valor de não pagar, não possa ser computado através de uma aproximação sobre uma condição de primeira ordem; a alternativa é computar o modelo através da tradicional value function iteration que limita seriamente a inclusão de variáveis de estado para 3 ou 4 – esses dsge’s normalmente trabalham com 50 ou mais; outra alternativa é incluir uma elasticidade taxa de juro do soberano relativamente à dívida ou output que seja exógena, mas esta é uma solução fraca dado que estas elasticidade apresentam regiões altamente não-lineares o que torna a sua estimação particularmente difícil).

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      • ooo diz:

        E como não editei muito bem o comentário acima peço desculpa pelos erros ortográficos e partes mais confusas.

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      • ooo,

        Eu não pus em causa a coerência do mecanismo que expõe no primeiro parágrafo. Eu pus em causa que ele se ajustasse aos factos.

        Por exemplo, não há evidência de que os mercados financeiros tenham reagido da forma forward-looking que sugere. Pelo contrário, reagiram muito mais à evolução de curto prazo do PIB do que à revisão da trajectória de sustentabilidade da dívida pública:

        Click to access wp1594.pdf

        E as taxas de juro do sector privado também não seguem esse roteiro. O ooo propõe uma explicação em que o perigo de insolvência faz as taxas de juro privadas disparar tanto que levam o PIB a cair 25%; mas as taxas de juro exigidas às empresas gregas nunca foram diferentes das taxas exigidas às empresas portuguesas. Não é que o mecanismo não faça sentido. A questão é que não se verifica.

        Isto é um pouco como ver um cadáver com um tiro na cabeça, argumentar que não foi o tiro que o matou mas o arsénico que tomou antes, e depois ser incapaz de encontrar vestígios do composto na autópsia.

        Novamente: admito que existam explicações alternativas. Mas ou estão muito bem fundamentadas em termos empíricos, deixando um traço claro no tecido económico (juros, câmbio real, whatever) ou acho que só há uma forma de as ver: como pretextos preconceituosos para fechar os olhos aos efeitos de uma consolidação de mais de 15% do PIB potencial.

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      • ooo diz:

        Muito bem, os agentes não são forward-looking. A queda de 80% do principal índice de acções da Grécia em 2008-2009 nada tem a ver com isso. Ou o colapso do investimento ou de consumo de bens duradouros também não tem nada a ver com expectativas. Talvez as empresas e as famílias acordaram um dia e lembraram-se que era preciso pôr o pé ao travão. Não acredito! Na realidade os agentes económicos são pessoas (não são números), e são dotadas de inteligência suficiente para se precaverem quando o futuro assim o exige (ao contrário dos autómatos hand-to-mouth que populam nas lógicas das abstrações que apenas consideram análises de ‘multiplicadores’ e afins).

        A verdade é que, como mostra, as taxas de juro para os privados subiram para Grécia e Portugal. Podia também mostrar que o crédito contraiu muito nesse mesmo período. Essa contracção será explicada por factores relacionados com a procura e oferta, o que também explica as movimentações dos preços (e não esquecer que o preço de um empréstimo a privados deve incluir um valor esperado de recuperação do empréstimo em caso de incumprimento que varia consoante o nível de colateral concedido, quadro institucional, etc.).

        E tudo isto é normal. Apenas demostra que as crises em Portugal e Grécia tiveram factores comuns. Um desses factores foi a restrição de acesso ao crédito tanto por parte do soberano como dos súbditos. E quando não há crédito mas despesas para pagar, é necessário ou cortar noutras despesas ou subir as receitas. Pode-lhe chamar ajustamento, austeridade, realidade, não interessa. O meu ponto é que esse ajustamento é uma consequência e não a causa da crise da dívida, como parece ser o que está a defender. É na resposta a essa consequência que Portugal começa a divergir da Grécia. Apesar de termos tido uma ajustamento do lado da despesa de magnitude equivalente à da Grécia, esta última teve um arrecadação fiscal miserável do lado da receita quando comparada com a nossa experiência. E foi a escolha desastrosa do mix de impostos a aplicar nesse ajustamento que explica tal desempenho e muito do agravamento da crise (conjuntamente com outros factores nomeadamente políticos que aumentaram e em muito a incerteza na economia – 4 governos em 5 anos é obra!)

        É apenas isto que eu lhe estou a tentar explicar desde o início. Sinceramente a discussão dos multiplicadores começa a ficar estúpida porque vai-se sempre argumentar da seguinte maneira – se a economia caiu X, então o multiplicador a utilizar é x; se caiu Y então é y. Acho que hoje em dia toda a gente já sabe que os multiplicadores variam consoante as condições económicas. Como tal o que realmente importa é perceber-se a consistência lógica da história que se está a tentar defender. O Pedro está a dizer que a economia da Grécia caiu muito por causa da consolidação orçamental. Então e porque não caiu tanto em Portugal ou na Irlanda?

        Bem, sobre o paper que mostrou, já lhe expliquei num dos comentários anteriores a razão desse tipo de análises terem pouco interesse na profissão (para além do risco relevante na nossa discussão ser risco de incumprimento e não de o ‘risk premia’ relacionado com a correlação de activos; acho que uma referência bem mais interessante é o Panizza, Sturzenegger, e Zettelmeyer de 2009)

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      • Bom, eu acho que não disse que os agentes não são forward looking. Disse apenas que, no contexto da nossa discussão, não há grande evidência desse espírito prospectivo. Para além do estudo e do gráfico que linkei, temos alguns sinais de natureza mais circunstancial e casuística. Por exemplo, muitos downgrades de rating referiam explicitamente a degradação da situação económica dos países. Mas eram completamente mudos em relação à trajectória futura da dívida pública.

        E é a ausência de evidência deste efeito [ + dívida pública -> + risco -> juros + altos -> + contracção da procura ] que me leva a concluir que a história da “recessão induzida pela incerteza” ], que culminaria com um multiplicador “negativo ou nulo” não faz sentido.

        O ooo pergunta-me “porque não caiu [a economia] tanto em Portugal ou na Irlanda” se a consolidação foi de facto a causa da recessão. Mas isto não é puzzle nenhum. A economia grega caiu mais do que a economia portuguesa ou irlandesa porque teve de consolidar muito mais do que a economia portuguesa ou irlandesa. As métricas variam, mas as duas que eu conheço melhor (variação do saldo estrutural e compêndio individualizado de medidas) apontam para um esforço de consolidação entre duas a três vezes superior.

        E mesmo a natureza da consolidação provavelmente teve pouco que ver com os resultados diferenciados. Por exemplo, a relação cortes de despesa/subida de impostos no caso da Grécia foi mais ou menos semelhante ao caso da Irlanda: 60% / 40%.

        Só mais uma achega, para comentar este trecho: “O meu ponto é que esse ajustamento é uma consequência e não a causa da crise da dívida, como parece ser o que está a defender”.

        Se não for muito claro o que estou a defender, pode ser mais fácil deixar o raciocínio nos bastidores e discutir antes as suas implicações práticas. Uma delas seria a seguinte: neste momento, flexibilizar as metas para o saldo primário da Grécia teriam como efeito aumentar o crescimento do seu PIB, por via do efeito multiplicador, em vez de o reduzirem, pelo efeito que as novas perspectivas orçamentais teriam sobre as taxas de juro cobradas. Outra seria: programas de consolidação orçamental mais brandos (digamos, ajustamentos estruturais na casa de 1% ao ano, em vez dos 3% exigidos) teriam tido o mesmo efeito: mais, e não menos, actividade económica.

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  2. Carlos Duarte diz:

    Caro Pedro Romano,

    Esqueceu-se de uma decisão absolutamente desastrosa: perdoar metade da dívida dos credores privados. Não devia ter sido metade, devia ter sido um valor que garantisse, à partida, que a Grécia cumpriria os tratados orçamentais (i.e. o haircut devia ter trazido a dívida para baixo dos 40-60%). Ao fazer um “meio-perdão” caíram na situação de nem deixar o paciente morrer (por dívida alta, com default total) nem recuperar. Mantiveram-no em coma a ver se, por milagre, recuperava…

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  3. Carlos,

    Acho que hoje é óbvio que a reestruturação devia ter ido um pouco mais longe. Mas 40-60% é utópico. Isso significava que todos os problemas orçamentais gregos seriam automaticamente eliminados, às custas dos outros contribuintes europeus (que teriam de tapar a totalidade dos buracos criados pela reesturutração nos respectivos sistemas financeiros).

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    • Carlos Duarte diz:

      Pedro,

      Estava a falar de um haircut inicial sobre (na altura e maioritariamente) credores privados, antes do resgate. Os contribuintes europeus iriam pagar? Em parte sim, se os seus governos nacionais salvassem os bancos – mas tinha a virtude de, numa primeira fase, “limitar” a crise aos reais intervenientes, devedor e credores, em vez de vir meter, à posteriori, “fiadores involuntários”.

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  4. “as pessoas para quem os erros da Troika são mais crassos e imperdoáveis serem, por norma, as mesmas pessoas que mais problemas levantam à utilização destes modelos em economia.”

    Em Portugal parece-me ser o caso (ainda que na prática esses críticos dos modelos teóricos acabem por também não ser, ao que me parece, particularmente empiristas), mas nível internacional parece-me que tem havido muitos economistas a criticar duramente a política da troika com base em modelos teóricamente fundamentados.

    De qualquer forma, seria interessante saber disto o que foi realmente um erro do programa aplicado à Grécia, e o que foi simplesmente um erro da politica macroeconómica europeia (a consolidação orçamental em quase todos os países ao mesmo tempo e mais o BCE ter demorado muito a começar a descer os juros), que ao fazer baixar o PIB europeu, terá feito a contração do PIB das várias componentes da UE ser maior do que seria de outra maneira.

    Já agora, há duas coisas na tal polémica dos multiplicadores que não sei terão sido abordadas em algum estudo:

    a) há algum estudo sobre os multiplicadores pan-europeus da despesa? Tal como é de esperar que o multiplicador da despesa para Portimão seja inferior ao da economia portuguesa no seu todo (já que grande parte dessa redução da despesa traduz-se em redução de bens “importados” de outros concelhos, reduzindo o impacto sobre a economia portimonense), será de esperar que o multiplicador para a UE seja superior ao multiplicador para cada país individual.

    b) há algum estudo sobre multiplicadores nominais, isto estudando o efeito de cortes nominais da despesa sobre o PIB nominal, em vez de efeitos sobre cortes reais sobre o PIB real? é que no contexto de economias fortemente endividadas, o PIB nominal pode ser mais relevante que o real.

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