Salários e emprego no sector público

Em e-mail, um leitor chamou a atenção para um gráfico, difundido na comunicação social, que mostra como o sector privado foi, ao contrário do que se diz, mais afectado do que o sector público por cortes salariais. A imagem, reproduzida em baixo, é retirada nos relatórios de avaliação do FMI.

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Neste caso, o problema é mesmo uma incorrecta interpretação dos dados (que não é nova, infelizmente). Os Custos Unitários do Trabalho (Unit Labor Costs, em inglês) não são – ou não são apenas – uma medida da evolução dos salários. Para perceber como evoluíram os salários médios, é para as remunerações por trabalhador que temos de olhar. O mesmo relatório do FMI apresenta esses números.

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A diferença entre os dois é simples. A compensation per employee é a remuneração (salários + complementos) de cada sector, dividida pelo número de trabalhadores. Já os ULC são um índice que combina a evolução das remunerações com a evolução da produtividade (ver a fórmula exacta aqui).

Mas julgo que, neste caso concreto, não é muito fácil perceber a ideia de calcular os CUT, uma vez que o crescimento da produtividade do sector público é, por convenção estatística, quase necessariamente nulo. Aliás, julgo que não é por acaso que a Comissão Europeia não calcula ULC desagregados para o sector público e privado, e teve de ser o staff do FMI a produzir as suas próprias estimativas* (conforme assinalado no documento, em nota de rodapé).

Já agora, e apenas para reforçar que nestas coisas dos números é preciso ter algum cuidado, chamo a atenção para um problema perturbador de que me apercebi há alguns meses e que diz respeito a comparações público/privado – neste caso, o emprego público.

Basicamente, há (pelo menos) duas formas de apurar o número de funcionários públicos. A primeira é utilizar os registos administrativos da Direcção-Geral da Administração Pública. Estes números abrangem todos os funcionários que trabalham em entidades ‘públicas’ no sentido económico do termo, e independentemente da forma jurídica concreta que essas mesmas entidades assumam. Ou seja, incluem desde empresas públicas, como a REFER, até trabalhadores de repartições das Finanças.

Infelizmente, só a partir de 2011 é que a DGAEP começou a publicar estes dados. A série que apresento em baixo junta a série da DGAEP a uma estimativa provisória elaborada pelo INE, e que cobre apenas o ano de 2010. O emprego público até caiu mais do que o emprego privado, segundo estes dados.

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A outra fonte é o Inquérito ao Emprego (IE), um instrumento utilizado pelo INE calcular os principais indicadores do mercado laboral. O IE tem valores para um período bastante extenso, mas tem o inconveniente de não delimitar exactamente o sector público. Há uma única categoria claramente pública: ‘Administração Pública, Defesa e Segurança Social obrigatória’ – o resto, como hospitais, escolas e empresas dos transportes está espalhado pelo resto das categorias dispersas do INE.

Os quadros de baixo comparam o emprego do sector privado e do sector público utilizando dois métodos: i) Inquérito ao emprego, assumindo que apenas a ‘Administração Pública, Defesa e Segurança Social obrigatória’ é uma categoria pública; ii) Inquérito ao Emprego, assumindo que sectores da Educação e da Saúde são também públicas. Como se vê, a situação é tudo menos clara.

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* Uma nota para puristas. Os ULC são habitualmente calculados utilizando valores das Contas Nacionais. Os ULC calculados pelo FMI são, aparentemente, obtidos através de uma mistura de fontes: Contas Nacionais e Inquérito ao Emprego. A mistura explica-se, provavelmente, pelo facto de só com este mix ser possível calcular os ULC para períodos anteriores a 2011, para o qual as Contas Nacionais não dispõem de números para o número de funcionários do sector público. E também explica o porquê de não ser possível (eu, pelo menos, não consegui) replicar as contas do FMI utilizando os dados ‘canónicos’ das Contas Nacionais.

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6 comments on “Salários e emprego no sector público

  1. Carlos Duarte diz:

    Caro Pedro Romano,

    Só uma esclarecimento (parece que está na moda):

    – O valor base (100) do compensation per employee é em relação ao salário médio+ complementos antes de impostos no primeiro quartil de 2009? Há gráficos similares para compensação líquida?

    Em relação aos gráficos de emprego, é francamente díficil a interpretação. A única coisa que me ocorre é que a diminuição (inicial) na administração pública bem como a subida posterior foram compensadas (no primeiro caso) e aumentadas (no segundo) por aumento de admissão de funcionários na Saúde e Educação. Mas como se explica o primeiro quadro então? Será que o peso dos privados nesses dois sectores já é suficiente para ter influência em termos de contabilização de emprego?

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  2. Caro Carlos Duarte,

    Sim, é o total do pacote remuneratório. Não há gráficos semelhantes para a compensação líquida.

    Eu diria que os quadros mais fiéis da verdadeira situação da AP são o primeiro e o segundo – que, de resto, não são assim tão diferentes. O terceiro provavelmente mostra como houve transição de funcionários da saúde e educação pública para a saúde e educação privada (mas será que os fluxos de transição foram assim tão grandes? Parece-me difícil de acreditar).

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    • Carlos Duarte diz:

      Caro Pedro Romano,

      – A primeira questão está, de certo modo, ligada às últimas decisões do TC e à reforma do Estado. Em termos brutos e médios, portanto, os FP ganham menos que os privados (apesar de existir uma distorção nos privados, já que os escalões mais altos de rendimento “inflacionam” a situação real). Se a isso juntarmos os cortes, ainda poderemos vir a ver o TC a chumbar uma reforma da remuneração da função pública alegando que, ao contrário do que o Governo diz, a FP tem em média uma remuneração inferior ao privado?

      – Como escrevi, também não percebo. Diria – e concordando consigo – que a conclusão a retirar é a de que, grosso modo, o emprego caiu de forma equivalente nos dois sectores.

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  3. Carlos, isto pode parecer cínico, mas se há coisa que não consigo imaginar é o TC a recorrer a dados económicos finos para justificar as suas decisões.

    Só uma correcção: os FP não ganham menos do que os privados: a QUEBRA DE RENDIMENTO é que foi maior (o que é bastante diferente). Mas também por isso, a quebra de rendimento líquido também deverá ser ainda maior: como o aumento de IRS foi bastante progressivo, a % de FP apanhados na rede deve ter sido bem maior do que a % de funcionários privados.

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  4. Os famosos programas ocupacionais do IEFP não poderão andar por aí (p.ex., se o INE os contar e a DGAEP não, isso poderia explicar a diferença entre os dois dados?)

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  5. Em teoria, é possível. Na prática, parece-me difícil: é preciso mostrar que os programas ocupacionais são suficientemente numerosos para induzir esse efeito; e é preciso mostrar que os programas ocupacionais se concentraram sobretudo na educação e saúde.

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