Há alguns anos, quando o pó da Grande Recessão começou a assentar, tornou-se habitual discutir a forma da recuperação em termos de letras. Havia retomas em L, em V, em U e até em W – o famoso double dip. Desde então o assunto deixou de aparecer na comunicação social, mas vale a pena destilar o tema porque ele permite lançar luz sobre alguns desenvolvimentos recentes.
A imagem de baixo, tirada de um estudo do FMI acerca de crises bancárias, ilustra vários tipos de retoma que se seguem após grandes choques.
Há retomas para todos os gostos. O caso mais benigno é o da Turquia: apesar de a actividade ter caído a pique em 2000, a recuperação foi rápida e robusta. Cinco anos depois, o PIB estava no nível que deveria vigorar caso não tivesse havido crise – as perdas da recessão foram pura e simplesmente eliminadas. O Japão está no extremo oposto: não só o PIB não voltou a convergir com a tendência de longo prazo como a própria taxa de crescimento se tornou permanentemente mais baixa.
A imagem de baixo serve para tipificar três tipos de recuperação. Se o choque for transitório, então a actividade voltará a convergir para o seu nível de longo prazo, tal como aconteceu com a Turquia. Isto é, a persistência do choque é zero (linha verde). O choque também pode ter uma persistência igual à unidade, o que significa que o PIB continuará a crescer ao mesmo ritmo do período pré-crise, mas a um nível permanentemente mais baixo, à semelhança do que se passou na Suécia (linha vermelha no gráfico de baixo). Finalmente, o choque pode afectar a própria evolução futura do PIB: a recessão não apenas coloca a actividade num nível mais baixo como afecta a taxa de crescimento. Na imagem de baixo, esse efeito faz com que o crescimento passe de 5 para 3% (azul claro).
O perfil da recuperação tem implicações importantes para as taxas de crescimento futuras expectáveis. No caso de um choque de persistência zero, por exemplo, a recuperação far-se-á com um crescimento mais alto do que aquele que vigorava no período anterior à crise – pelo menos até que o nível de actividade convirja com a tendência de longo prazo. Estas ‘taxas implícitas’ aparecem na imagem de baixo.
Perceber este mecanismo é importante não apenas para prever futuras taxas de crescimento mas também para interpretar desenvolvimentos correntes. Por exemplo, houve muitas críticas à previsão de crescimento económico elaborado pela Troika para 2014 (0,8%, inicialmente), em grande medida porque esse crescimento parecia incompatível com o novo pacote de consolidação orçamental.
Mas o grau de irrealismo deste cenário dependia crucialmente da natureza dos choque orçamentais anteriores. Se o choque fosse persistente, então seria possível fazer uma relação directa entre o volume de medidas de consolidação orçamental e a dimensão da contração do PIB (do tipo: se em 2013 houve 4.000 milhões de euros de medidas e o PIB caiu 2%, então 2.000 milhões de euros devem levar a uma quebra de 1%) . Se, por outro lado, os choques se dissipassem (como no caso do México), então à medida que o tempo passa a taxa de crescimento ‘de partida’ deverá aumentar, pelo efeito de reversão dos choques orçamentais de 2011, 2012 e 2013. Isto é, o pacote de consolidação de 2014 estaria a actuar sobre um ‘crescimento económico de base’ bastante maior do que se suspeitava.
O facto de a economia ter começado a crescer no segundo trimestre de 2013 é um indício de que os choques orçamentais terão uma persistência inferior a um. Se é a essa a dinâmica que está a operar, então a economia poderá agora ‘cavalgar’ o ‘efeito de coice’ dos choques orçamentais passados. Isto significa não apenas que o crescimento poderá ser melhor do que o esperado mas também que os saldos orçamentais que dependem crucialmente desse crescimento também serão revistos em alta. As implicações para a sustentabilidade da dívida são óbvias.
Ambas as conclusões assumem, obviamente, que o crescimento dos últimos três trimestres não está influenciado por nenhum factor one-off. Mas a aparente consistência de revisões em alta das previsões sugere que não há não factores deste género a enviesar a análise. De resto, o problema da teoria económica em identificar o perfil de recuperação após choques severos não é recente. Os modelos de previsão parecem sistematicamente subestimar a severidade dos choques quando eles estão a acontecer; e são irritantemente lentos a capturar a força da recuperação. A imagem de baixo ilustra as previsões do Governo americano para o desemprego feitas ao longo da crise dos anos 80 (fonte: Gregory Mankiw).
P.S.- Este post foi escrito antes de o Negócios noticiar que a Comissão Europeia vai rever em alta o saldo estrutural de vários países, mas é útil para perceber o que está a acontecer. Basicamente, a Comissão diz que o nível de Produto Potencial é mais alto do que se pensava, e que por isso o défice estrutural – o défice que se verifica quando a economia está a funcionar a ‘todo o gás’ – também terá de ser correspondentemente melhorado. Em termos do esquema apresentado neste post, isso equivale a dizer que Portugal ‘afastou-se’ da linha vermelha e ‘aproximou-se’ da linha verde. Isto é, a persistência dos choques orçamentais é menor do que se pensava e o crescimento dos próximos anos deverá ser revisto em alta. Sobre este tema ver também Mudanças no horizonte do PIB Potencial e O verdadeiro défice orçamental.