O fim do programa de ajuda externa (não é o que se diz por aí) – 2

O pós-Troika não é bem o que a maioria das pensa que é. Concluir o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) é sobretudo um acto simbólico, uma forma de mostrar aos mercados que os próprios credores oficiais confiam o suficiente em Portugal para abdicarem, voluntariamente, do controlo e supervisão constantes. Mas, por baixo deste formalismo, há pouco de substancial a mudar.

A consciência deste facto tem levado alguns observadores a concluir que Portugal entrou num admirável mundo novo, em que a austeridade deixa de ser um mecanismo esporádico de correcção de desequilíbrios para se tornar a norma. Por exemplo, o próprio Tratado Orçamental deixa claro que os países com um rácio de dívida pública elevada (isto é, praticamente todos) devem fazer um esforço contínuo no sentido de a reduzir até aos 60%. Em suma, as próximas duas décadas não serão significativamente diferentes dos últimos dois anos.

Este raciocínio está parcialmente correcto. É verdade que o principal objectivo da política orçamental continuará a ser reduzir a dívida pública; não é verdade, porém, que esse objectivo implique necessariamente grandes custos sociais e económicos.

E não é verdade porque o que torna o período actual extraordinariamente difícil não é tanto a obrigação de controlar o défice, mas as circunstâncias em que este controlo está a ser exigido. Isto é: através de uma política orçamental activa (aumentando taxas de imposto e reduzindo despesas), com multiplicadores elevados, num contexto de contracção dos principais parceiros comerciais e com a economia a desalavancar.

Com este pano de fundo, a consolidação torna-se um desafio quase impossível. Aliás, esta era a mensagem profunda do policy paper lançado pelo FMI. Os técnicos do Fundo, que  disseram algo um pouco mais complexo do que um simples “a austeridade não funciona”, chamaram apenas a atenção para o facto de as condições actuais não serem as melhores para grandes aventuras orçamentais, pelo que os países com margem de manobra deviam consolidar a um ritmo mais lento (aqui o conceito-chave é “países com margem de manobra”).

Felizmente, estas são condições extraordinárias. Num cenário mais convencional em que a economia está a crescer, a procura externa dá um apoio adicional ao Produto e os multiplicadores são mais típicos, tanto a dívida como o défice não só não crescem como de facto se reduzem sem que o Governo tenha de fazer seja o que for. Basta que o crescimento do PIB arraste as receitas fiscais e a despesa pública cresça a um ritmo inferior – por exemplo, mantendo-se constante em termos reais.

Longe de ser uma hipótese exótica, a ‘consolidação passiva’ já aconteceu em inúmeros países e por diversas vezes. Veja-se o que aconteceu na Zona Euro entre 1995 e 1998.

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Na década de 90, a Zona Euro reduziu o seu défice tanto ou mais do que Portugal nos últimos três anos, muito embora sem provocar os efeitos colaterais que se verificaram por cá. Porquê? Porque enquanto Portugal consolida ‘em contra-relógio’, sob a pressão da ausência de financiamento, a Zona Euro pôde ‘surfar’ um período de crescimento económico. Veja-se que o défice caiu a pique apesar de a despesa pública nominal ter subido.

Como é óbvio, uma estratégia de ‘cavalgar o crescimento’ implica, ainda assim, que o Estado respeite pelo menos algumas restrições – por exemplo, que a despesa pública cresça abaixo da receita fiscal, que por sua vez dependerá da evolução do PIB nominal. Mas, a partir do momento em que a economia estiver a funcionar perto do seu potencial, a consolidação far-se-á sem qualquer efeito nefasto na actividade económica, porque não haverá, por esta via, qualquer redução da procura agregada. A partir daqui, não há razões para pensar que o controlo das contas públicas seja especialmente doloroso. Basta responsabilidade.

P.S.- Uma questão diferente é perceber se as exigências do Tratado Orçamental são compatíveis com uma estratégia desta natureza. O objectivo do post é mostrar que não há necessariamente qualquer incompatibilidade teórica entre crescimento económico e consolidação orçamental. O que não implica que determinados objectivos orçamentais não obriguem, de facto, a sacrificar crescimento económico. Mas esta é uma questão empírica.

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