O desemprego que insistia em descer

A descida do desemprego – que agora é compilada pelo INE numa base mensal – já foi explicada através de quase todas as maneiras possíveis e imagináveis – desde a sazonalidade ao regresso da ‘agricultura de subsistência’, passando pela emigração, pelo empregos a prazo, pelos estágios do IEFP e acabando no emprego público.

Nenhuma das hipóteses tem, por si mesmo, grande poder explicativo. Se neutralizarmos estes factores – o que pode ser feito, por exemplo, mantendo a população activa constante, ou contabilizando os empregos ‘públicos’ como desempregados – o quadro geral não muda muito: a taxa de desemprego continua a cair, e a cair muito.

Mas e se levarmos em conta todos estes factores ao mesmo tempo?

Foi mais ou menos isso que o blogue Ladrões de Bicicletas fez aqui, num post amplamente citado. O autor contabilizou três elementos: a emigração, os desempregados que não são considerados como tal (por não procurarem activamente emprego – inactivos desencorajados), e o número galopante de estágios profissionais. Este cocktail explosivo resulta na seguinte taxa de desemprego.

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A taxa propriamente dita não é muito relevante. Como é óbvio, se contabilizarmos como desempregados todos os inactivos desencorajados, todos os emigrantes e por aí fora, a taxa de desemprego será necessariamente mais alta – não apenas entre 2011 e 2014 mas em qualquer período que se queira analisar.

O interesse do gráfico não advém, por isso, de sugerir que os números oficiais subestimam a verdadeira dimensão do desemprego – isto é consensual e não levanta dúvidas. A novidade está no facto de mostrar que uma boa parte da descida da taxa de desemprego oficial (3,6 pontos percentuais) resulta, na verdade, dos três factores considerados. A verdadeira descida corresponde apenas a 0,4 p.p. – o resto são desempregados emigrados, desempregados ocupados pelo IEFP, ou desempregados que queriam estar empregados mas que já baixaram os braços por falta de oportunidades.

Ou será que não?

Na verdade, não. E este cálculo tem dois problemas graves. O primeiro é o das hipóteses subjacentes. O segundo tem que ver com uma questão estatística, de natureza mais ‘mecânica’ – que não é completamente perceptível a olho nu, mas que se torna óbvia analisando os dados em bruto (enviados pelo próprio autor, Nuno Serra, a quem agradeço).

Comecemos pela primeira questão. O cálculo da taxa de ‘desemprego real’ não tem grande ciência. Primeiro, contam-se todos os trabalhadores que emigraram de 2011 a 2014 (os valores de 2014 são uma projecção, utilizando dados do Observatório da Emigração) e somam-se todos os inactivos disponíveis – este lote é considerado ‘desempregado’ e é adicionado quer volume do desemprego, quer à população activa. Depois, contabilizam-se as pessoas empregadas em programas do IEFP, que transitam do ‘emprego’ para o ‘desemprego’.

A hipótese crucial aqui é que todos (repito: todos) os ocupados estariam desempregados se não houvesse programas ocupacionais e que todos os emigrados estariam sem emprego se não tivessem abandonado o país. Assim, este cálculo dá-nos apenas o limite máximo da taxa de desemprego que a lógica e os dados do INE permitem conceber.

Esta hipótese é obviamente irrealista, mas podemos alterá-la para obter resultados mais plausíveis. Assim, e para além deste cenário (a que chamarei de ‘trágico’), calculei igualmente um ‘cenário maravilha’, em que todos os emigrantes e ‘ocupados’ estariam, em qualquer situação, empregados; um cenário optimista em que 2/3 estariam empregados, e um cenário pessimista em que apenas 1/3 teria emprego. 

Taxas de desemprego reais

Em qualquer destes três cenários alternativos a ‘taxa de desemprego real’ baixa, reconciliando-se com os números oficiais. Não baixa tanto quanto a taxa do INE, mas baixa o suficiente para continuar a impressionar quem fizesse previsões para o desemprego em 2012 ou 2013. Mesmo a redução obtida no ‘cenário pessimista’ (1,7 p.p. num ano e meio) é  superior ao que seria sugerido pela associação histórica entre a actividade económica e o desemprego.

Ou seja, a estabilização do ‘desemprego real’ que se lê no gráfico resulta apenas do recurso a uma hipótese radical. Basta flexibilizá-la um pouco para que os resultados se tornem muito mais plausíveis.

O segundo problema do cálculo é mais subtil, e demora um pouco mais a explicar. Mas asseguro ao leitor que vale a pena perceber o que está em causa, porque entender a mecânica subjacente dá uma ajuda enorme para fazer leituras rápidas do Inquérito ao Emprego.

Comecemos com a pergunta óbvia. Como é que a taxa de desemprego ‘oficial’ pode estar a descer e a taxa ‘real’ permanecer estável? Há apenas duas possibilidades:

i) A descida do desemprego pode processar-se por ‘via estatística’ – não porque os desempregados encontram trabalho, mas porque desaparecem dos números, saindo do país ou cessando a procura de emprego;

ii) Os empregos criados são falsos empregos, pelo que na verdade deveriam ser registados como desempregados. Talvez seja exagero considerar que os estágios ou programas de inserção profissional são postos de trabalho artificiais, mas é consensual que não são empregos gerados espontaneamente pelo mercado, pelo que devem ser levados em conta em cálculos deste género;

O factor ii) já foi abordado neste blogue no início de 2014. Na altura, concluí que o impacto era praticamente marginal. Entretanto, a criação de emprego abrandou um pouco e o ritmo de criação de programas deste género aumentou, pelo que as conclusões são agora ligeiramente diferentes. Mas apesar de o ‘factor IEFP’ ter ganho preponderância como factor explicativo do emprego (e, portanto, da variação da taxa de desemprego), ele está, ainda assim, longe de explicar muita coisa.

No caso do factor i), os problemas são ainda mais notórios. É que quase toda a descida do desemprego, que se verifica desde o segundo trimestre de 2013, tem sido acompanhada de criação de emprego no mesmo montante. Ora, se a explicação para a descida do desemprego fosse a emigração ou o desencorajamento, então a redução do desemprego seria acompanhada de uma redução (na mesma magnitude) da população activa.

Claramente, não é isso que acontece. O gráfico de baixo mostra a variação do desemprego relativamente ao ‘pico’ do segundo trimestre de 2012. As barras mostram como a descida do desemprego se ‘divide’ entre ‘desempregados que encontraram emprego’ (vermelho) e ‘ ‘desempregados que desapareceram da população activa’ (verde).

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Sim, alguns portugueses (menos de 30 mil) desapareceram das estatísticas da população. Mas a esmagadora maioria continua a aparecer no Inquérito ao Emprego – simplesmente deixou de surgir como ‘desempregado’ e passou a contar como empregado (pouco mais de 200 mil). Onde é que é suposto os emigrantes entrarem nesta equação?

Felizmente, esta é uma questão contabilística. É possível ‘descascar’ os cálculos da ‘taxa de desemprego real’ e perceber exactamente onde está a explicação para aqueles números.

E a resposta é: na população activa.

A questão é mais ou menos a seguinte. Se somarmos à população activa registada os valores da emigração e os valores dos inactivos desencorajados (a fórmula ‘embutida’ no cálculo) obtemos uma população activa crescente. A ‘taxa de desemprego real’ está estável não porque os desempregados estejam a ‘desaparecer’ do Inquérito ao Emprego, mas porque o cálculo em que ela se baseia assume um crescimento acelerado da população activa, crescimento que é automaticamente imputado ao desemprego.

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Quando se percebe o que está a acontecer ‘no backoffice‘ da fórmula, não é de espantar que os cálculos conduzam a uma taxa de desemprego estável. Com a população activa a ganhar quase 80 mil pessoas por ano – pessoas que, por definição, são automaticamente consideradas desempregadas – é quase impossível encontrar alguma taxa de criação de emprego suficiente para contrariar este efeito.

Por que é que a população activa deveria estar a crescer tanto? Não é fácil perceber. A população esteve praticamente estabilizada entre 2003 e 2011, e tendo em conta as pressões demográficas até seria expectável que diminuísse ligeiramente. Não há nenhuma razão razoável para que cresça em mais de 200 mil pessoas entre 2011 e 2014.

O meu palpite é que a fonte utilizada para calcular a emigração é pouco fiável. De facto, o Observatório costuma avançar dados para o volume de emigrantes que superam em muito os valores estimados anualmente pelo INE. As implicações absurdas dos seus números só reforçam a minha convicção de que o Observatório tende s sobrestimar bastante a emigração*.

A título de exemplo, calculei outra ‘taxa de desemprego real’, mas introduzindo uma restrição adicional: um ‘limite superior’ ao valor que a população activa pode atingir, de modo a eliminar automaticamente todos os resultados pouco realistas. O quadro seguinte compara essa ‘taxa real’ com a ‘taxa real’ inicial. A descida do desemprego passa de 0,5 p.p. para 2,7 p.p., mostrando a importância decisiva que população activa crescente

Taxas de desemprego por PActivaEm todo o caso, a avaliação do estado do mercado de trabalho não depende verdadeiramente do nível de população activa que consideremos mais ou menos plausível. Se levarmos a sério ‘aquela’ população activa, então concluiremos, de facto, que a taxa de desemprego está de facto estável – mas concluiremos igualmente que essa estabilização está a ser ‘produzida’ pelo ingresso maciço de mão de obra no mercado de laboral, e não por incapacidade da economia em criar empregos.

Ou, posto de outra forma: assim como é importante perceber se a descida da taxa de desemprego é benigna (criação de emprego) ou maligna (redução da população activa), também é importante levar em conta esses factores quando a taxa de desemprego sobe (ou, para o caso em apreço, quando ela estabiliza). Ironicamente, um cálculo que foi feito para dar uma imagem mais depurada do ‘verdadeiro desemprego’ acabou por ser, ele próprio, vítima de um ‘artifício estatístico’ – que, neste caso, acaba por ocultar a sua descida.

* Há uma hipótese alternativa: o INE subestima a dimensão da emigração mas também subestima a dimensão da imigração.

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